Proclamar Libertação – Volume 33
Prédica: Isaías 11.1-9
Leituras: Lucas 2.1-7 e Romanos 1.1-7
Autor: Acir Raymann
Data Litúrgica: Noite de Natal
Data da Pregação: 24 de dezembro de 2008
1. Introdução
Leão comendo capim! Lobos vivendo com cordeiros! Leopardo deitando-se junto aos cabritos! Impossível? Verdade? Verdade! Mais: todos sendo guiados por um menino. Parece um conto de fadas ou uma narrativa metafórica, típica de C. S. Lewis. Mas assim está no texto de Isaías 11, no reino do Messias. É uma nova realidade que desponta no horizonte sombrio, descrito no capítulo 10, com a ameaça cruel e iminente da Assíria. O que parece impossível está para se concretizar. O contexto do evangelho apresenta o que é impossível: “Como será isso…?” (Lc 1.34). Mas “para Deus não haverá impossíveis em todas as suas promessas” (Lc 1.37). E no próprio evangelho do dia: como a promessa, atrelada a circunstâncias humanas desfavoráveis como uma gravidez, pode vencer a inóspita geografia? Mas é o povo, não a geografia, que determina as fronteiras do Messias. O impossível acontece: de Nazaré a Belém. Ali “completaram-se-lhe os dias” (Lc 2.6). E o Messias torna-se o evangelho encarnado. Deus se faz gente para habitar entre a gente. Impossível? Na epístola, Paulo compartilha com os cristãos de Roma o fato de ter sido “separado para o evangelho de Deus”. Logo ele, um fariseu e perseguidor da igreja de Cristo. O nome fariseu significa “alguém separado”. O fariseu separava-se da grande massa do povo para devotar-se escrupulosa- mente ao cumprimento da lei e, por meio disso, tornar-se agradável a Deus. Esse Deus, entretanto, inverte a direção que aquele fariseu toma. Deus separa-o por meio daquele que foi “prometido por intermédio de seus santos profetas nas Sagradas Escrituras” (v. 2) e que, “segundo a carne, veio da descendência de Davi” (v. 3). Esse Deus encarnado separa agora o apóstolo para a proclamação de seu evangelho. Impossível?
2. Exegese
O profeta Isaías acabara de descrever o destino e a repentina destruição da ameaçadora Assíria. A floresta de seu orgulho nada mais é do que um campo devastado de troncos. Assim também acontece com o povo de Deus (6.11-13). Jacó, assim como a Assíria, caíra sob o julgamento de Deus. Mas com uma diferença. Quando a Assíria foi derrotada em 609 a.C. pela coalizão entre Babilônia, Média e Pérsia, nada mais cresceu daqueles troncos. Em 612 a.C., Nínive foi completamente destruída. Seus escombros foram nivelados pelo tempo. Alexandre Magno ouvira falar de Nínive. Procurou-a, mas não a encontrou. Em 1845, ela foi achada. Nínive é o retrato da ira de Deus sobre o orgulho humano. Mas com Israel Deus foi complacente e gracioso. A árvore foi cortada, mas aqui o tronco não pereceu. Dele, um pequeno rebento teria sobrevida (6.13ss).
V. 1 – O “tronco de Jessé” mostra a origem humana do rebento. O rebento mostra-se saudável; desenvolve-se numa árvore capaz de frutificar. A palavra para “renovo” é netzer no texto; ela é a única conexão que Mateus tem ao referir que o Messias seria chamado profeticamente no Antigo Testa- mento de “Nazareno” (Mt 2.23).
V. 2 – As expressões relacionadas aqui são familiares em alguns contextos luteranos, especialmente porque são mencionadas por ocasião do ritual de Confirmação. Mas antes elas são atributos messiânicos. O renovo do tronco de Jessé é divinamente equipado. O verbo nãhã(h) (de nûah), “repousar”, é palavra diferente daquelas que ocorrem em relação a Espírito. Literalmente significa “descansar”. O normal no Antigo Testamento é “o Espírito revestiu a Gideão” (Jz 6.34), “o Espírito de Deus se apossou de Saul” (1Sm 11.7 [ARA 11.6]) ou “se apossou de Davi” (1Sm 16.13). O Espírito do Senhor veio sobre esses homens no passado por um tempo limitado e para um propósito específico e temporário. Mas o Espírito que “repousa” ou “descansa” sobre o Filho maior de Davi não terá tempo determinado. Nele, o Espírito terá presença perene, vitalícia. Os seis atributos, arranjados em pares de três, ecoam o significado do mesmo número de nomes dado ao rei em Is 9.6. Ele é o governante perfeito. Está em contraste flagrante com os frágeis monarcas que subiram ao trono de Judá no período do Antigo Testamento. Aqueles foram insatisfatórios; esse nada deixa a desejar.
V. 3-5 – O texto move-se dos atributos do Messias à descrição da maneira pela qual ele desempenha seu domínio. O Messias não governará baseado na aparência, mas na justiça. Muita controvérsia tem surgido em torno da primeira frase do v. 3. Alguns optam por ser uma ditografia com o v. 2b. A raiz do verbo significa “cheirar” e poderia ser uma alusão à linguagem sacrificial em que Deus cheira e o sacrifício lhe é agradável. Mas, se entendermos hãrîhô (a forma é um infinitivo construto do Hiphil com sufixo) por “e ele [Espírito] o inspirará no temor de Yahweh”, como sugere Bartelt, então a primeira parte do versículo faz sentido. Logo o temor do Senhor não é uma carga opressiva, mas um prazer. Dispense-se a ditografia. O Messias será inspirado pelo Espírito a uma atitude de interesse reverente pelos caminhos de Deus, assim como Deus deleita-se ao cheirar o incenso. “Não julgará segundo… os olhos… os ouvidos.” É uma referência que diferencia o Messias de um rei comum. Um rei humano não pode senão confiar no melhor uso de suas faculdades naturais no intento de bem julgar. Esse rei vai mais além. Justiça absoluta requer conhecimento absoluto. Fica claro que o rei aqui é alguém maior do que a edição de um novo representante da monarquia. Seu reinado – e seu reino – é diferenciado (Jo 18.36-38). Impossível?
Esses versículos são uma amostra do que o Rei fará ao exercer justiça. Os destacados são os mansos e pobres. Se esses têm seus direitos assegurados, os outros também terão. Pois esse é o teste ácido da administração imparcial dos deveres de um rei, a saber, não desconsiderar as pessoas menos favorecidas. Ele também sabe como lidar com os rebeldes, aqui designados de “terra” ou “terrenos”, e os “perversos”. (Na poesia hebraica, “terra” está numa relação sinonímica com “perverso”.) A decisão não é política, mas moral. Decisões em tal nível dificilmente poderiam ser tomadas por um monarca humano. “Vara de sua boca… sopro de seus lábios.” Esse Rei não precisa de armas. Sua palavra é sua arma (Hb 4.12; 2Ts 2.8b; Ap 1.16b; 28.22). Vestimentas esvoaçantes não o atrapalham em sua ação, porque elas são envolvidas pelo longo cinto que o impedem de se enroscar no exercício da justiça.
V. 6 – O cessar de hostilidades entre os seres humanos, empregado em 2.1-4 para descrever o tipo de paz a ser desfrutado pelos servos do Rei, estende-se aqui para eliminar o medo entre animal e animal e entre animal e ser humano, que existe desde a ruptura causada pela invasiva ação do pecado no paraíso. “O lobo habitará com o cordeiro”: o verbo gûr significa “peregrinar” e expressa o sentido desses versículos em que o aparentemente forte torna-se dependente do aparentemente fraco. O verbo “peregrinar” é usado no Antigo Testamento para um estranho cuja sobrevivência em terra desconhecida depende da boa vontade dos nativos. Da mesma forma, esses animais selvagens são descritos como dependentes da liderança de uma criança, supostamente a menos indicada para controlar os instintos vorazes daqueles. A menção de um “menino” lembra um tema recorrente nos capítulos 7-12: um menino, não um pomposo monarca, é quem Deus escolhe para governar a grandeza deste mundo. Na inocência, simplicidade e humildade está a salvação de um mundo envelhecido pela sofisticação, cinismo e violência. Impossível?
A contradição de uma criança brincando junto à toca da serpente venenosa causa arrepios. A vontade é arredar a criança diante da iminente morte. A imagem quer mostrar que o Messias efetivamente enfrenta a morte. A criança nasceu exatamente para desafiar e vencer a morte. “Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (1Co 15.55). Toda a natureza volta a seu estado original.
V. 9 – “Santo monte” não implica uma restauração física do universo ou a formação de um império político mundial. A expressão está relacionada à linguagem messiânica para descrever a Jerusalém que será construída de “pedras vivas” sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo “o próprio Jesus Cristo a pedra angular” (28.16; 1Pe 2.4-8; Ef 2.19-22). Não se trata de um ponto geográfico na terra; essa Jerusalém não possui limites terrenos. Ela abarca “estrangeiros e peregrinos” de todas as nações. A segurança nessa cidade está fundamentada no conhecimento de Deus e seus caminhos.
3. Meditação
a – A árvore foi cortada, mas o rebento cresce. O impossível torna-se possível. Leões vegetarianos, crianças brincando com cobra. Alguém pode afirmar: um leão que come capim já não é mais leão, é uma esquisitice. Um pecador que foge do pecado torna-se uma grande esquisitice. Ele é o leopardo que mudou suas manchas (cf. Jr 13.23). Na verdade, ele é um leopardo que está deixando de ser leopardo. Esse é o mundo do Messias. Alguns consideram Isaías 1.18 uma pergunta. Embora não seja, para efeito teológico é oportuno considerar como pergunta para enfatizar o milagre do perdão. Parece absurdo que Deus seja capaz de tornar o pecado escarlate em brancura de neve e a transgressão carmesim na pureza da lã. Mas é o que Deus faz. Uma manjedoura vazia adornada com a plenitude da divindade. Impossível? O Espírito que age na Palavra e nos sacramentos nos persuade a crer que isso é verdade. Leões que comem capim? Criança que brinca com cobra? A que outro milagre se pode comparar o fato de que Deus perdoa os nossos pecados?
A linguagem cósmica de nosso texto não é simplesmente simbólica. O surgimento do renovo, a vinda do Messias, do próprio Senhor Jesus Cristo, apresenta ao mundo caído a ilógica força de sua vitória sobre a cruz. O pecado colocou o mundo e a humanidade pelo avesso. A redenção de Cristo vem restaurar a imagem original.
b – O impossível torna-se possível porque o Espírito repousa sobre o renovo. Textos bíblicos falam que o Espírito do Senhor se apossou de várias pessoas. Em 1 Samuel 16.13, afirma-se que “daquele dia em diante, o Espírito do Senhor se apossou de Davi”. Embora os juízes e até Saul tenham recebido o mesmo Espírito, deles, entretanto, não se diz “daquele dia em diante”. Numa hora podem ser apossados pelo Espírito, e noutra desamparados por ele. Sobre o Messias, da descendência de Davi, o Espírito “repousa” em caráter permanente. As manifestações do Espírito no texto hebraico são seis, formando três pares de dois. A LXX transforma-as em sete, donde surge a septiforme manifestação como sinônimo de plenitude, que adorna a cabeça e vida dos confirmandos, queira Deus, para sempre.
O sermão/prédica poderá contemplar tais manifestações na pessoa e obra de Jesus. Talvez na noite de Natal seja oportuno relacionar “conselho e fortaleza”, contrastando os pastores e Herodes. Os pastores ouvem a mensagem e, guiados pelo Espírito de conselho, alegram-se. Herodes, fraco no Espírito, ouve e treme. Ele é poderoso e aniquila inocentes, mas não consegue aniquilar o menino Jesus e sua obra.
A ênfase no Espírito mostra que o renovo é um milagre divino. Em meio ao horizonte sombrio, violência ameaçadora, densas trevas, surge a luz divina. Sem ela, o ser humano vive e caminha para a catástrofe. Picasso, em sua talvez mais importante obra chamada Guernica, retrata a realidade da morte, destruição, aniquilamento. Não sei se é intenção do autor, mas está lá. Em meio ao desdobramento do terror e do desespero aparece, no centro da pintura, uma pequena flor iluminada por uma luz que vem de cima. É uma oportuna ilustração para a noite de Natal. Apenas o Espírito pode fazer com que do tronco de Jessé, símbolo de aniquilamento e destruição, possa brotar um rebento, um renovo para dar vida à realidade da morte que permeia o mundo. Esse Espírito atua em Jesus e pode ser encontrado apenas em Cristo. c – O impossível torna-se possível porque o renovo é o juiz. Esse juiz
fará um julgamento objetivo e não político. Justiça e equidade são o seu modo de fazer. Será condescendente com o manso e o pobre, porém inflexível com o perverso. Mansidão e pobreza não devem ser avaliadas por padrões sociais ou econômicos. Riqueza, no Antigo Testamento, não é objeto de repreensão, exceto quando leva a usura, torpeza e opressão. Mas o manso e pobre é aquele que, ao contrário do rico, crê ser dependente de Deus, daquele Deus que, embora aparentemente impossível, se fez pobre assumindo a fragilidade da natureza humana, para que nós fôssemos tornados ricos, presenteados com a coroa da justiça divina.
4. Subsídios litúrgicos
Confissão e absolvição:
O: As palavras de Jesus “Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados” nos dão autoridade e garantia neste momento de confissão e arrependimento. Confessemos, pois, diante do Deus justo e santo com humildade todos os nossos pecados, os conscientes e os inconscientes. E arrependidos aceitemos o seu gracioso perdão.
O e C: Senhor Deus, quem sou eu diante da tua pureza, santidade e justiça? Sou apenas uma pessoa dividida ao meio, pois não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero. Ao querer fazer o bem, encontro a lei de que o mal reside em mim. Tenho prazer na tua Lei, ó Deus, mas ao mesmo tempo me sinto prisioneiro da lei do pecado. Assim dividido estou eu, por isso sinto-me desventurado. Nesse estado, suplico a tua graça e o teu perdão em Cristo.
O: Agora já não há mais condenação para os que estão em Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida em Cristo te livrou da lei do pecado e da morte. Em ti habita o Espírito daquele que envia o seu Filho Jesus, que assumiu a nossa natureza humana na noite de Natal, para que nos livrasse da morte e da condenação eternas. Esse mesmo Espírito vivifica também a ti mediante o seu perdão e reconciliação. Perdoados estão os teus pecados. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
C: Amém!
Bibliografia
BARTELT, Andrew H. The Book around Immanuel: Style and Structure in Isaiah 2-12. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1996.
OSWALT, John N. The Book of Isaiah: Chapters 1-39. Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company, 1986.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).