O reinado pacífico do Messias
Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Isaías 11.1-9
Leituras: Lucas 2.1-7 e Romanos 1.1-7
Autor: Jorge Batista Dietrich de Oliveira
Data Litúrgica: Noite de Natal
Data da Pregação: 24/12/2014
1. Introdução
Os textos indicados para a noite de Natal formam uma unidade em torno daquele que vem para governar com justiça e estabelecer a paz e a harmonia sobre toda a criação. O profeta Isaías anuncia as transformações que a vinda do Messias trará. Virá um descendente de Jessé, sobre o qual repousará o Espírito do Senhor. Ele terá sabedoria, conhecimento, capacidade e poder. Por isso julgará o seu povo com justiça e defenderá o direito dos pobres e necessitados. E a criação voltará a viver em paz e harmonia. Essa realidade sonhada é expressa em termos inusitados: lobos e cordeiros viverão em paz, leopardos e cabritos descansarão juntos, leões e bezerros pastarão juntos.
O evangelho, ao relatar o nascimento de Jesus, anuncia que esse reino de paz e justiça, anunciado pelo profeta e esperado por todos, já chegou. Lucas apresenta a situação social da época. Sob o poderio do imperador Augusto, todos os cidadãos do império precisam participar do censo a fim de ser feita uma contagem da população. José e Maria viajam até Belém, onde ela dá à luz um menino numa estrebaria, pois não havia lugar para eles na hospedaria. O Messias compartilha da dominação a que seu povo está sujeito e identifica-se com o povo sofredor ao nascer de forma tão humilde.
Paulo, nos primeiros versículos da Carta aos Romanos, apresenta-se como servo e apóstolo de Cristo. Afirma que recebeu a tarefa de levar adiante a mensagem desse Messias prometido pelos profetas nas Sagradas Escrituras. Fala dessa boa-nova que é a salvação em Jesus Cristo e de sua responsabilidade em fazer esse tesouro chegar a todas as nações.
2. Exegese
O livro de Isaías é uma obra extensa, dividida em três partes que são atribuídas a três profetas distintos que atuaram em épocas e contextos diferentes, reunindo assim tradições proféticas de vários séculos. A perícope em estudo está inserida quase no final do primeiro bloco de textos, assim chamado de “Palavras contra Judá e Jerusalém” (Cap. 1-12), que pertence ao Proto-Isaías (Cap. 1-39), profeta com atuação em Jerusalém e Judá no final do século VIII a.C.
O gênero literário é a poesia. A forma pode ter sido adaptada de oráculos reais recitados por ocasião da entronização de algum rei, pois expressa o que se esperava de um governante. Trata-se de uma profecia messiânica que se assemelha a Is 9.1-7. Quanto à data e à autoria, não há consenso. Em geral, prevalece o Isaías histórico do século VIII a.C. Entretanto, há exegetas que atribuem os versículos 6 a 9 à inserção pós-exílica, pois a visão escatológica do reino da paz universal que apresentam é uma concepção bem mais tardia.
V. 1 – Do tronco de Jessé surge um rebento (netzer – renovo). O tronco indica a casa real de Davi que sofreu o juízo de Deus e foi “cortada”, voltando a uma posição insignificante (cf. Is 10.33s). Dessa árvore derrubada surgirá um broto, possibilitando um recomeço na história do povo de Deus, pois traz em si a promessa de uma nova glória. Ele virá de Jessé (pai do rei Davi e cabeça de sua linhagem, cf. 1Sm 16.1ss), indicando que o Messias será diferente de Davi, pois estabelecerá um governo de justiça que trará paz e harmonia a toda a criação (cf. Is 9.1-7; Mq 5.2-5). Percebe-se aqui uma crítica e uma palavra de juízo ao davidismo. Por isso a profecia não menciona o termo “rei” porque o governante esperado será totalmente diferente dos reis que governaram Israel.
V. 2 – O verbo repousar literalmente significa descansar. Traz a ideia de permanência e habitação, diferente do que se entendia no tribalismo a respeito do Espírito de Deus que tomava temporariamente alguém vocacionado para uma tarefa específica. Ele receberá a ruah, o Espírito do Senhor, que será nele presença permanente e o capacitará para governar.
Os atributos que a ruah concede relacionam-se com o nome dado ao Messias, cf. Is 9.6, e estão divididos em três pares complementares:
1º – Sabedoria e entendimento são qualificações fundamentais ao governante. Sabedoria é a habilidade administrativa de governar com retidão e justiça. O entendimento é a capacidade de discernir a natureza das coisas, circunstâncias e relacionamentos.
2º – Conselho e fora: É a capacidade de formular conclusões, tomar as de- cisões corretas e a energia necessária para executá-las. É comum em todas as monarquias haver um grupo de “conselheiros reais”. Aqui a plenitude do conselho e a capacidade de concretizar o que se deseja na prática do governo vêm da ruah.
3º – Conhecimento e temor do Senhor: São aspectos que descrevem a piedade dos homens justos do Antigo Testamento. O temor a Deus, no sentido bíblico, não é medo, mas uma atitude de profundo respeito, que inclui a adoração, o amor, o serviço a Deus e a obediência a seus mandamentos.
Diferentemente de outros governantes, o Messias recebe a sabedoria, a força e o conhecimento do Espírito Santo, que impede a busca desenfreada por poder, enriquecimento e prestígio pessoais.
V. 3 – A consequência dos atributos da ruah está no modo como o Messias exerce seu poder e domínio, baseando-se na justiça de Deus e não nas aparências ou pressões sociais. Aponta para o exercício efetivo do governo, pois o Messias fará o que se esperava dos reis (cf. Sl 72), não apenas obras públicas, mas basicamente justiça. Será um governante capaz de combater os poderosos, defender o direito dos indefesos e anular as injustiças. Deleitar-se-á ou alegrar-se-á, alude à linguagem sacrificial e ao aroma agradável que vem dos incensos sacrificiais, indicando que o temor do Senhor não é medo ou fardo, mas inspiração e prazer.
V. 4-5 – O novo governante não necessita de força militar para se impor, pois o seu poder reside na palavra (“vara de sua boca/sopro dos seus lábios”). Palavra e espírito são base para uma liderança comprometida com a justiça e a honestidade. “Quanto a pobres, trata-se de uma categoria abrangente e não apenas sociológica: envolve empobrecidos, deprimidos, fracos e tidos como insignificantes. O juízo é exercido contra os perversos porque são os responsáveis pelo empobrecimento e injustiças. Tal como um cinto mantém a roupa no lugar, assim o padrão divino de justiça e fidelidade será uma constante e unificadora força do governo do Messias.”
V. 6-9 – Estes versículos apontam para o retorno do paraíso criado por Deus, conforme Gn 2. A figura dos animais carnívoros vivendo em paz com os animais domésticos e permitindo que um pequenino os guie simboliza a remoção de toda hostilidade, ferocidade e temor. Também entre os seres humanos não haverá mais inimizades e violências.
A base dessa paz e harmonia será o conhecimento pleno e adequado de Deus que toda a humanidade possuirá. Esse conhecimento será absolutamente universal e se refletirá em toda a criação. Jr 31.34 afirma que esse conhecimento de Deus resulta da nova aliança que Deus faz com o seu povo.
A menção de um menino é um tema recorrente em Isaías e aponta para o Messias esperado. Aquele que vem para “redimir a criação do cativeiro da corrupção” (cf. Rm 8.2). Já a imagem da criança brincando junto à toca da serpente venenosa pode ser uma indicação de que o Messias desafiará e vencerá a morte.
A expressão “santo monte” está relacionada à linguagem messiânica e faz uma alusão ao monte Sião, onde se situa Jerusalém, pois dali se irradia uma esperança não apenas para Israel, mas para toda a terra.
Isaías tinha muitas esperanças no futuro reinado de Ezequias, herdeiro de Acaz. Mesmo não sendo Ezequias o cumprimento da profecia, o judaísmo incorporou essa esperança messiânica na oração diária pela vinda do Messias. Mais tarde, o cristianismo a assumiu, atribuindo-lhe uma leitura cristológica. Assim, a fé cristã proclama que a profecia se cumpriu no nascimento de Jesus, mas continua na esperança de que, um dia, o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a criação será redimida do cativeiro da corrupção.
3. Meditação
Proponho que a pregação leve em conta os três textos bíblicos indicados para esta noite de Natal, priorizando o texto de Isaías, que nos convida a sonhar com um novo tempo, quando do tronco de Jessé brotará um rebento. Sobre ele repousará o Espírito do Senhor, que lhe concederá sabedoria, conhecimento, capacidade e poder. Ele julgará os povos com justiça, e sua justiça afetará todas as relações, tanto do ser humano como dos animais. A paz reinará em todos os âmbitos da vida, a ponto do lobo habitar com o cordeiro, o leão comer capim junto ao boi e a criança brincar na toca do basilisco. Claro, isso é poesia que requer uma interpretação diferenciada, pois é metáfora que mexe com nossa imaginação. E, mesmo que o evangelista Lucas tenha interpretado que essa profecia se cumpriu no nascimento de Jesus, ainda assim existe uma grande distância entre nossas celebrações natalinas com o reinado pacífico do Messias. Talvez Paulo nos ajude a compreender que nossa tarefa é viver e proclamar a boa-nova da salvação em Cristo Jesus.
Mais uma vez é Natal. Por toda a cidade encontramos símbolos e enfeites que nos lembram isso. O brilho das luzes, a decoração das árvores e das casas e a música ditam o clima. O “espírito natalino” contagia, despertando em nós sentimentos que a rotina da vida fez adormecer. Tornamo-nos mais sensíveis e mais suscetíveis ao apelo consumista do comércio, que “precisa” lucrar nesta época. Também nossas comunidades são contagiadas pelos tantos papais-noéis, presentes, festas e comemorações. Esse corre-corre e essa agitação chegam também à igreja, que, nesta época do ano, multiplica suas atividades. Certamente teremos, mais uma vez, a “casa cheia” com lotação máxima e muitas apresentações ao ritmo das músicas natalinas. Entre tantas não faltará “Noite Feliz”.
Mas será que Natal é só isso: papais-noéis, presentes e festas que enchem o estômago e esvaziam a alma? Claro que não! Cremos que a esperança de um novo tempo anunciada pelo profeta se cumpriu no nascimento de Jesus. No primeiro Natal, Deus enviou seu Filho único ao mundo. O Salvador nasceu humilde. Jesus pequenino não ficou sempre deitado na manjedoura. Ele se tornou pessoa humana e anunciou: “Arrependei-vos e crede no evangelho, o tempo está cumprido – o Reino de Deus está próximo”. Cremos que na vida e obra de Jesus o reino de Deus se tornou presente, pois sua justiça afetará todas as relações, tanto dos seres humanos como dos animais. É bem verdade que a profecia de Isaías não se cumpriu em toda a sua plenitude. Ainda vigora entre nós a lei do mais forte, segundo a qual o poderoso oprime o mais fraco e o lobo devora o cordeiro. Por isso vivemos na dimensão do já e do ainda não do reino de Deus, aguardando, segundo a sua promessa, um novo céu e uma nova terra, onde habitará a justiça (2Pe 3.13).
O Natal que celebramos não é a festa do consumo. É antes palavra de esperança para os desamparados, pobres, humilhados e oprimidos. É também palavra de juízo para os perversos, os que exploram, escravizam e diminuem o ser humano. Natal é anúncio de esperança e de justiça. É convite para assumir o compromisso de não entrar nessa lógica do consumo. Que tal fazer uma ceia sem exageros e desperdícios? Que tal fazer uma troca de presentes simples? Que tal reunir a família para compartilhar a palavra de Deus e cantar hinos natalinos? É Natal! É tempo de celebrar o nascimento do Salvador, pois o que o profeta anunciou se cumpriu em Jesus Cristo. Ele é o renovo da raiz de Jessé que veio trazer a esperança de uma nova vida. Não só para o povo hebreu e para todos os povos da terra, mas para toda a criação, incluindo os animais e a natureza. Lembro que os presépios que montamos nesta época trazem esta imagem – animais em torno do Menino Jesus. Toda a criação celebra o nascimento do Salvador, pois será por ele redimida.
Enquanto esperamos que esse reinado de paz e justiça se estabeleça definitivamente, podemos, já agora, perceber pequenos gestos de amor, de solidariedade, de partilha e de bondade, que são sinais do reino de Deus presente entre nós. Podemos ver e também participar desse reino, colocando sinais de esperança, praticando a justiça, vivendo o amor para com todos, especialmente para com os mais necessitados. Também o cuidado com a natureza, a boa criação de Deus, faz parte do testemunho cristão e da espera pela plenitude do reino. Que tal, neste Natal, assumir o compromisso de reflorestar as matas, despoluir os rios, reciclar o lixo, proteger os animais? Que tal repartir um pouco do muito que temos com aqueles que não têm nada? Que tal sonhar com a justiça e a equidade deste novo tempo que certamente virá porque ele repousa em Deus, que prometeu: toda a terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar.
Agindo assim, alimentamos a esperança de um novo mundo que Jesus veio trazer e colaboramos para fazer brotar a vida em meio a tantos sinais de morte que presenciamos todos os dias. Nossa realidade necessita dessa esperança de vida renovada. Por isso, ao repicar dos sinos em cada Natal, anunciamos ao mundo que está chegando um novo tempo de paz e justiça para todos em Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador.
4. Imagens para a prédica
Conta-se que dois peregrinos decidiram visitar a cidade de Belém por ocasião das celebrações do Natal. Partiram muitos meses antes, de modo que a chegada coincidisse com as festas natalinas.
Um deles só pensava na chegada a Belém e demais cidades e lugares santos. E, nesse espírito, fez sua peregrinação: em demanda dos santos lugares, não parou em outros lugares; nada viu na viagem longa e demorada, só lhe interessava chegar. O outro, à medida que caminhava e percorria as estradas, observava os lugares por onde passava. Quando descobria alguma necessidade, algum problema a resolver, demorava-se ali e ajudava a resolver o problema e a atender à necessidade. Por isso jamais chegou a Belém para participar dos festejos natalinos, no mesmo lugar onde Jesus nascera há dois mil anos.
No entanto, dos dois, foi o segundo quem realmente festejou o Natal de forma apropriada. O primeiro só viu a festa, só a teve no dia de Natal; o segundo, embora não visse os acontecimentos de Belém, participou integralmente e durante toda a viagem do verdadeiro espírito de Natal. E, enquanto o outro viveu aqueles dias só para si, esse viveu a viagem inteira para os outros, dando-se e proporcionando a muitos a felicidade do amor que nasce também em Belém na pessoa daquele menino querido.
5. Subsídios litúrgicos
Entre outros, sugiro os hinos 235, 310 e 312 dos HPDs.
Bibliografia
CROATTO, J. Severino. Isaías. A palavra profética e sua releitura hermenêutica,
V. I: 1-39, o profeta da justiça e da fidelidade. Petrópolis: Vozes, 1989.
KAMP, Peter W. van de. O profeta Isaías: comentário a Isaías 1-39. São Leopoldo: Sinodal, 1987.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).