Deus enxugará as lágrimas de todos os rostos
Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: Isaías 25.1, 8-9
Leituras: João 11.1-5, 17-21 e Romanos 8.31-39
Autoria: Eloir Enio Weber
Data Litúrgica: Dia de Finados
Data da Pregação: 2 de novembro de 2019
1. Introdução
Dia de Finados! Para ministras e ministros que atuam em comunidades é um dia cheio. Celebrações em cemitérios e igrejas. Muita correria e muitas mensagens de esperança para proferir. No entanto, pouco tempo para refletir sobre seus próprios sentimentos diante da finitude da vida e a saudade das pessoas queridas e familiares. A pessoa ministra, nesses dias de muita movimentação, em geral só consegue pensar em dar conta da agenda e de conseguir transmitir a mensagem, especialmente nos cemitérios, nos quais as estruturas não são adequadas para as celebrações. Para as pessoas da comunidade (e o público em geral) é um dia para prestar homenagens a seus familiares e amigos que faleceram. Um dia de saudades e de comoção, de esperança e de fé. Esses sentimentos precisam ser levados em conta quando se preparam as celebrações do Dia de Finados.
O conjunto de textos bíblicos do lecionário, previsto para a data, é bem tradicional. O texto do evangelho – João 11.1-5,17-21 – é um recorte da narrativa da ressurreição de Lázaro. A perícope, recortada de forma estranha no meu ponto de vista, narra a doença e a notícia da morte de Lázaro, a chegada de Jesus à casa das irmãs Marta e Maria e uma parte do diálogo de Jesus com Marta.
O texto de leitura – Romanos 8.31-39 – traz uma importante reflexão do apóstolo Paulo sobre a relação de cuidado de Deus para conosco e a afirmação central de que nada pode nos afastar do amor de Deus a partir de Jesus Cristo.
Já o texto de pregação – Isaías 25.1,8-9 – traz uma palavra de consolo e conforto ao povo de Israel, anunciando que Deus acabará com a morte e que enxugará dos olhos as lágrimas.
Um bom conjunto de textos para consolar as pessoas que estão à procura de uma palavra em meio à saudade e ao luto!
2. Exegese
a) O livro de Isaías – É largamente aceito o conceito de que Isaías, o livro profético, é dividido em três grandes blocos: os capítulos 1 a 39 formam o Primeiro Isaías; os capítulos 40 a 55, o Dêutero-Isaías; e o último, chamado de Trito-Isaías, compreende os capítulos 56 a 66. A perícope em questão neste estudo, portanto, encontra-se no primeiro bloco. O lugar existencial do profeta e da palavra proferida encontra-se em Jerusalém.
Nesse cenário, o profeta faz uma forte oposição ao poder instituído e coloca-se na defesa para promover o resgate da esperança de um povo pobre, injustiçado e sofrido. A luta e a busca do profeta é que Sião seja um lugar no qual as pessoas empobrecidas encontrem abrigo (14.32). Ele denuncia o comportamento de ricos e latifundiários, das pessoas que vivem em grandes festas custeadas pelo trabalho dos pobres. Opõe-se à exploração sofrida pelo povo quando lhe é negada a justiça (5.8-24). No entanto, não deixa de acusar, também, o povo, quando diz que o boi e o jumento conhecem o seu dono e sabem onde ele coloca a comida para eles, mas que o povo de Israel não o compreende (1.3).
Por outro lado, o anúncio é parte importante em Isaías. A profecia de que virá um descendente do rei Davi, que será como um ramo que brota de um toco, faz menção a essa nova esperança que deve surgir. A profecia de que o povo terá autoridades que governarão com justiça e honestidade (32.1) está presente para trazer alento ao povo sofrido. O profeta aponta para a reconstrução da esperança nos momentos mais difíceis desse povo. O texto de Isaías, por vezes, está carregado de uma linguagem simbólica, enigmática, mas tem como meta clara a mensagem da salvação, pois Deus acompanha e salva o seu povo. Isaías é tido, desde os pais da igreja, como o “Evangelista do Antigo Testamento”, pois descreve de forma detalhada e completa a obra e a pessoa do Messias.
b) O contexto maior – O capítulo 25 está colocado dentro de um contexto maior, bem característico do livro de Isaías. Esse pequeno bloco, destacado do conjunto maior, é denominado de “Apocalipse de Isaías”. Trata-se de um conjunto de profecias que nos remetem para a salvação do povo, exaltando a confiança em Deus, pois ele intervém na terra, no mundo, não mais numa realidade específica. O descontentamento com os poderes estabelecidos fica fortemente marcado com a profecia da iminente vontade de que Deus mesmo venha e reine (24.21-23). O sofrimento do povo precisa ter fim; sendo assim, é anunciada a vinda do reino de Deus.
c) O contexto menor – O texto em estudo encontra-se dentro da mensagem do banquete oferecido por Deus, em Sião, para todos os povos (v. 6 e 7). O banquete é uma expressão forte no contexto bíblico (p. ex. Sl 23 e evangelhos) do reino de Deus. Na imagem do banquete está a ação de Deus que alimenta as pessoas famintas de pão, vida, justiça e dignidade. Ser convidado para compartilhar a mesa na presença do próprio Deus, participar da comunhão com ele e fartar-se confere dignidade e valor à vida, que é acolhida pela própria misericórdia de Deus. O anúncio é que a comunhão realizada no banquete destruirá a coberta que envolve todos os povos e o véu que está posto sobre todas as nações (v. 7), trazendo paz entre os povos que estão envoltos em tristeza e choro. Neste sentido, lamento que no recorte do texto os v. 6 e 7 tenham sido deixados de lado.
d) O texto – O capítulo 25 (e o nosso texto de estudo) inicia com uma confissão de fé: Ó Senhor, tu és o meu Deus. Essa confissão reconhece o poder de Deus e, de forma intrínseca, a fragilidade da vida humana. A confissão de fé é uma consequência do primeiro mandamento. E, especialmente, em um estudo sobre o Dia de Finados, a confissão de fé precisa estar presente de forma clara. É Deus quem nos consola, nos fortalece e nos faz levantar a cabeça diante da realidade da finitude da vida ou do falecimento de alguém próximo.
A confissão de fé tem como consequência o louvor, a exaltação a Deus e o reconhecimento de que ele tem feito maravilhas. O rumo da humanidade e, consequentemente, da nossa própria existência está aos cuidados de Deus. Ele tem planos para a vida desde os tempos remotos. Ele executa os seus conselhos antigos, fiéis e verdadeiros.
O versículo 8 traz uma esperança característica dos textos apocalípticos. Tanto que o livro de Apocalipse cita parte desse versículo em duas ocasiões: 7.17 e 21.4. A morte será tragada, Deus acabará com ela para sempre. Essa “boa nova” trará consequências: as lágrimas daquelas pessoas que choram diante da crueldade e da implacabilidade da morte serão enxugadas de seus rostos. Essa esperança traz como outra consequência a promessa de que Deus tirará de toda a terra o opróbrio do seu povo. Compreende-se como opróbrio uma grande desonra pública, degradação social, ignomínia, vergonha, vexame, caráter daquilo que humilha, degrada, estado ou condição que revela alto grau de baixeza, torpeza, abjeção, degradação. A degradação humana é objeto de preocupação da parte de Deus. A morte ataca a dignidade humana concedida por Deus. Por isso ela precisa ser vencida.
Interessante observar que essa promessa de resgate é estendida para “toda a terra”. Ganha força o olhar de que a ação salvífica de Deus não se limita a uma parcela da humanidade, um povo, e sim ao “povo de Deus em toda a terra”. O versículo 9 volta ao tema do versículo 1: confissão de fé e louvor. A consequência da ação de Deus é o reconhecimento da sua grandeza, fidelidade e amor. Um coração que consegue perceber a ação salvífica de Deus age em forma de gratidão. A confissão de fé e o louvor são sempre respostas à ação primeira de Deus. O texto termina falando da alegria que resulta da fé e da esperança. As lágrimas dão lugar ao sorriso.
3. Meditação
Cada geração de seres humanos tem seus dramas, suas lutas, suas dificuldades e suas dores. À medida que o tempo vai passando, geração após geração, as pessoas e seus conceitos vão sendo transformados. Havia uma geração que pensava que a terra era plana, hoje já temos condições de lançar um olhar diferente sobre a cosmovisão.
Fico me perguntando se há algum drama humano que acompanha todas as gerações de pessoas que já existiram e que ainda nascerão. Em uma geração remota, o risco de ser devorado por um animal selvagem era real e até mesmo comum. Não é mais uma realidade, um drama ou uma preocupação para nós. Nossa geração tem o drama da violência urbana, o medo de assaltos e o sempre iminente risco de sofrer um acidente automobilístico. Esse não era um drama para muitas gerações passadas.
Faço essa reflexão porque acredito que há um drama que acompanha todas as gerações humanas, em todos os tempos e em qualquer idade. A partir da consciência da finitude da vida, o drama da realidade da morte está presente para todas as pessoas. Nós, seres humanos, diferente de qualquer outra espécie animal, tomamos consciência da finitude da vida porque temos contato com a realidade da morte dos nossos semelhantes. De forma geral, os outros animais se defendem e percebem o que representa um risco à sua vida por meio do instinto. Nós, além do instinto de sobrevivência, temos a consciência que gera a preocupação com a finitude e a fragilidade da vida.
Esse fato mobiliza a humanidade. Ele provoca uma verdadeira corrida atrás da cura de doenças, da fonte da eterna juventude. Vivemos em um mundo no qual a preocupação com a morte está mais latente do que antigamente. As pessoas faleciam em suas casas, rodeadas pela família. Seu corpo morto era higienizado, preparado e vestido pelas pessoas próximas. Havia um ritual maior que possibilitava uma despedida mais humana, próxima e consoladora. Essa não é mais uma realidade nos dias atuais. Toda essa passagem acontece em ambientes estranhos, com pessoas estranhas, pagas para fazer o trabalho. As últimas coisas não são mais uma atitude de amor, de carinho e de despedida, mas um gesto profissional. Tudo isso mudou a concepção de morte e luto. Aquilo que sempre foi tabu aumentou ainda mais nas últimas décadas. Ao lado disso, o afastamento de muitas pessoas (e famílias) da vida eclesial também torna a realidade da morte mais cruel. Na medida em que estamos expostos a essa realidade, contra a qual, efetivamente, não podemos lutar, sentimo-nos desamparados e o tamanho do inimigo aumenta. Cresce muito nas grandes cidades o número de velórios (quando eles acontecem – por vezes não há nem um tempo de velório e despedida porque demanda aluguel de sala) que acabam sem uma celebração de despedida, sem uma palavra de esperança. A sensação é de que a vida acabou, e com ela a esperança. A espiritualidade auxilia-nos a lidar com esse drama, com essa dor, com o luto.
Mas, por outro lado, a consciência da finitude da vida tem um lado positivo. Ela pode servir como uma espécie de freio para a humanidade que muitas vezes deseja ignorar seus limites. A ganância humana, o desejo de superar as outras pessoas e ganhar cada vez mais são elementos muito danosos nas relações sociais e na forma como vivemos a vida.
Todas as religiões têm no centro da sua dogmática a preocupação com a realidade da finitude da vida. O cristianismo firma sua esperança nos eventos da Sexta-Feira da Paixão e da Páscoa. A morte e a ressurreição de Jesus Cristo nos consolam, nos confortam e nos fortalecem na vivência do luto. A esperança de vida eterna, por meio da espera pela ressurreição dos mortos, nos auxilia quando nos defrontamos com o falecimento de uma pessoa amada ou pensamos sobre nossa própria finitude.
Nesse sentido, o conjunto de textos bíblicos previsto para o Dia de Finados auxilia-nos na reflexão. Jesus sofre com essa realidade. Ele chora o falecimento do seu amigo Lázaro. Ele dá o sinal de que a morte será vencida de forma definitiva. Lázaro volta à vida por meio do seu agir.
Com base na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, o apóstolo Paulo e todas as gerações depois dele podem afirmar que nada pode nos afastar do amor de Deus, nem mesmo a morte. Essa é a articulação da fé cristã que nos faz esperançar, olhar a realidade da finitude com um olhar diferente. E isso nos auxilia a ler o texto do profeta Isaías, que afirma que a morte será tragada e que Deus mesmo enxugará todas as lágrimas dos rostos.
4. Imagens para a prédica
Eu iniciaria a mensagem do Dia dos Finados fazendo uma reflexão sobre o maior drama da humanidade, refletido na meditação. A finitude da vida é o maior drama que acompanha as pessoas em todas as épocas. Enfrentar a realidade da morte traz dor, sofrimento e vazio. A fé em Jesus Cristo renova a esperança e nos dá consolo e alento.
Há alguns anos alguém me contou uma história, que rememoro aqui. Pode ser que seja útil para alguém usar na pregação no Dia de Finados.
Havia uma senhora de idade muito avançada. Estava muito bem de saúde, considerando sua idade. O melhor é que ela era muito lúcida. Certo dia, ela pediu para sua filha, com quem morava: “Quando eu morrer, gostaria que fosse colocada entre as minhas mãos, para ser enterrada junto comigo, uma colher de sobremesa”. A filha, muito surpresa, achando que a mãe estava “meio caduca”, disse: “Que papo estranho. Nada a ver. Nunca vi ninguém ser enterrado com uma colher de sobremesa nas mãos”. A senhora, no entanto, insistiu: “Mas é um desejo meu”. A filha, então, quis saber por que ela desejava algo tão curioso. A mãe respondeu: “Quando eu era criança, aos domingos, era o dia em que a minha mãe, sua avó, fazia sobremesa. Ela sempre avisava durante o almoço que era para deixar a colher de sobremesa limpa porque o melhor ainda estava por vir depois do almoço. Eu acredito que a vida é boa, assim como eram os almoços de domingo na minha infância, mas que o melhor ainda está por vir, pois Jesus ressuscitou e tenho a esperança de que ele tem guardado algo melhor do que a vida terrena”.
5. Subsídios litúrgicos
Poema de acolhimento – Caminhantes
Cada pessoa que passa em nossa vida
nos toca de forma única…
Porque cada pessoa é única,
e nenhuma substitui a outra…
Cada pessoa que passa em nossa vida
faz de nós uma pessoa mais plural,
mas não vai só…
Cada pessoa que passa em nossa vida
leva um pouco de nós mesmos,
e nos deixa um pouco de si mesmo.
Há aquelas que levam muito,
mas não há as que não levam nada.
Há aquelas que deixam muito,
mas não há as que não deixam nada.
Esta é a mais bela realidade da vida,
a prova tremenda
da importância de cada ser humano:
é que ninguém se aproxima
da outra pessoa por acaso…
Somos caminhantes!
Palavra de despedida (oração)
Conduz-nos, Senhor, da morte à vida, da falsidade à verdade.
Conduz-nos, Senhor, da desesperança à esperança, do temor à confiança.
Conduz-nos, Senhor, do ódio ao amor, da guerra à paz.
Permite que o consolo inunde nosso coração, nosso mundo, nosso universo.
(Vancouver Worship Book, 1983. Tradução: Eloir E. Weber).
Bibliografia
SCHMIDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal; EST, 1994.
RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: ASTE; Targumim, 1992. v. 1 e 2.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).