Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: Isaías 33.13-17, 22
Leituras: João 14.1-12 e Colossenses 3.1-11
Autor: Everton Ricardo Bootz
Data Litúrgica: Ascensão do Senhor
Data da Pregação: 17/05/2012
1. Introdução
João 14 é um texto de Ascensão por excelência. Jesus Cristo está se despedindo de seus discípulos, pois sua hora está próxima (morte, ressurreição e ascensão). Jesus procura consolar seus discípulos (v. 1), pedindo que, a despeito de sua ausência, eles poderão continuar a confiar e a fazer as mesmas coisas (ações) que ele fez e até maiores (v. 12). Tudo isso se houver sintonia (unicidade) com Deus Pai (v. 9ss). Entre essas ações podemos considerar aquelas do texto de Colossenses.
A Carta aos Colossenses pode ser dividida em dois grandes blocos: teológico (1.3-3.4) e ético (3.5-4.6). Nosso texto encontra-se exatamente no meio desses dois blocos, exprimindo-os resumidamente. Os v. 1-4 transmitem a ideia da sintonia (como em João) que os novos conversos devem ter com o Jesus ressuscitado, para que fiquem a salvo das más influências gnósticas (aspecto teológico); por sua vez, os v. 5-11 discriminam quais atitudes refletem uma sintonia com Cristo e quais com o velho Adão. Essas ações são de cunho subjetivo, ou seja, referentes basicamente ao indivíduo.
Isaías 33 oferece outro tipo de ação promovida por quem está em sintonia com a aliança feita entre Deus e seu povo. Essas ações são de cunho mais social, como demonstraremos mais abaixo. Portanto os três textos podem ser utilizados nesta linha de raciocínio: o texto mais recente (João) introduz a temática da Ascensão e a importância da sintonia com Jesus para as possibilidades de ações evangélicas; os outros dois textos apresentam mais especificamente quais podem ser essas ações.
2. Exegese
Isaías 33 está localizado no primeiro bloco do livro (1-39) conhecido como Primeiro Isaías, referente à época anterior ao exílio babilônico (746-700 a.C.). Contudo, o capítulo 33 em si pertence à época posterior ao exílio, ou seja, 500 a.C. É um enxerto, com a finalidade de fechar o bloco até 32. Nele há duas liturgias proféticas (v. 1-6 e 7-24). A primeira é uma oração que procura evocar a esperança a despeito da força do inimigo. O Senhor tem misericórdia de Jerusalém (v. 2) e destruirá o destruidor (v. 1). A Assíria é a grande opressora e será queimada, pois rompe alianças (v. 7, 8b), assola o território ao redor da capital (v.8a) e destrói cidades (v. 9). A segunda liturgia é uma lamentação (onde se situa o nosso texto), lembrando que o Deus de fogo pode fazer perecer não somente o inimigo, mas também os habitantes de Jerusalém.
O v. 13 expressa que tanto o agressor (longe) como o próprio povo (perto) devem reconhecer o poder devorador de Deus. Pois (v.14) em Jerusalém há pecadores e ímpios que se perguntam: “quem dentre nós habitará com o fogo devorador?” (parte da liturgia de entrada). São pessoas que não seguem a vontade de Deus ao oprimir o justo. O v. 15 descreve quais são elas: a) aquele que não pratica a justiça, e sim a prática de pureza ritual vazia; b) o que não fala/decide com retidão, lembrando a posição de um juiz; c) aquele que ocupa cargo de poder e faz uso para extorquir, lucrando com isso; d) aquele que ocupa cargo de poder, aceitando suborno em detrimento do necessitado; e) aquele que é parcial no julgamento de homicídios, dando ouvidos a falsidades; e f) enxergando o mal onde não há. Essas ações pressupõem questões de ordem social e de justiça. Pressupõem atitudes de pessoas com poder e que fazem mau uso do mesmo, beneficiando a si em detrimento do resto. Esses serão destruídos juntamente com o inimigo pelo fogo eterno.
Mas aqueles que agirem com justiça e forem obedientes a Deus, beneficiando o necessitado, ou seja, usando de misericórdia, subsistirão ao fogo e serão abençoados com uma fortaleza e sustento (v. 16 e 17). Não apenas isso, como também serão agraciados a ponto de ver o messias (Jesus?) chegar para reinar na terra prometida restaurada. O v. 22 traduz a concepção de Deus como um rei assumindo os três poderes nele mesmo. O v. 22 (segundo o Almeida) usa três substantivos para descrever o poder de Deus: juiz (v. 22a), legislador (v. 22b) e rei (v. 22c). Conclui afirmando que, com esses três poderes, Ele nos salvará (v. 22d) dos poderes inimigos (pecado estrutural internacional – v. 7-13a) e de nós mesmos (pecado social – v. 13b-17).
No antigo Israel, fé e ação política encontravam-se estreitamente relacionados. Desde os primórdios, os israelitas guerreavam por terra, e depois, para defendê-la de seus inimigos, pactuavam com Deus (por meio de alianças) para ajudá-los nessa empreitada no tabuleiro político do primeiro milênio antes de Cristo. Às vezes, a fé era subordinada à política e, outras vezes, vice-versa. Os profetas, contudo, sempre lembravam que a fé deveria ser o referencial último para a política, e não o contrário. Nesse texto, os exemplos de atos justos são mormente reflexos de ações políticas (juiz, pessoas em cargos de poder econômico e político). Pois é por intermédio de ações justas que a salvação surge, ou seja, por meio de políticas públicas devidas e justas. Os dirigentes de um povo são os responsáveis diretos pela direção do povo de Deus – isso, pelo menos, no antigo Israel.
O inverso também é verdadeiro: mediante as ações enunciadas no v. 15, um povo é devorado pelo fogo de Deus, ou seja, pelos inimigos enviados por Deus. Essa ideia (v. 1,6) presente no texto remonta ao período posterior ao exílio, quando o povo havia desenvolvido o entendimento de que Deus havia permitido à Babilônia destruir Jerusalém e seu templo como sinal de que a aliança firmada com Davi havia sido rompida pelo povo ao não respeitar mais suas leis. O Deus de Israel é um Deus que governa com justiça. Isso pode ser percebido segundo a interpretação política do v. 22, que expressa o que hoje conhecemos como os poderes do Judiciário (juiz), Legislativo (legislador) e Executivo (rei).
Pode-se dizer que o v. 15 implica, assim, que Deus age por meio de pessoas para governar seu povo, esperando desses ações devidas ao mandato delegado. O texto expressa que Deus sempre de novo delega na esperança de que seu povo aprenda a viver em harmonia (paraíso) com Deus, ou seja, aplicando as regras sociais de justiça e solidariedade (amor). Com o tempo, esse aprendizado gerou constituições, tais como as que temos hoje em nosso mundo. Constituições que estruturam o Estado a partir de três poderes: o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. Poderes estruturados com autonomia um do outro para poder agir com imparcialidade, mantendo assim, dentro das possibilidades, um Estado Democrático de Direito, com função social, onde leis e normas regulam a vida dos cidadãos, permitindo-lhes viver em liberdade e direitos como nunca antes.
Ao relacionar o v. 22 com o atual Estado político brasileiro, trazemos para hoje o que no antigo Israel todo profeta concebia como natural: a ação política deve estar pronta a reconhecer a sua impotência, a não se basear na própria força e sabedoria e a renunciar à autossuficiência, e a ação política só é possível para quem sabe ter sido chamado por Deus, para quem passa pela experiência de estar na presença de Deus, que sempre que necessário sai da obscuridade, mostra a borda de seu manto, dá a sua ajuda e concede as suas promessas.
3. Meditação
A temática desenvolvida na parte anterior é específica para momentos políticos ou eventos de cunho político (ex.: Dia do Trabalho, Dia da Independência, Proclamação da República, celebrações a partir de ações conjuntas entre a comunidade e o poder público etc.). Mas o texto de Isaías está previsto para o Dia da Ascensão de Nosso Senhor. Muitos de nossos membros não aceitam uma abordagem bíblica com tamanha clareza política. Portanto sugiro uma abordagem não tão direta, mas igualmente política, pois esse é o teor teológico básico do texto.
3.1 – Contexto
a) Inicialmente, sugiro trabalhar o momento histórico do texto, apresentando a época anterior ao exílio, a invasão da Assíria, a destruição de Israel (norte) e a subjugação de Judá (sul), onde vivem o nosso profeta Isaías e o povo desobediente.
b) Importante mencionar o aspecto teológico da aliança rompida, que levou Deus a levantar sua proteção prometida e a permitir a destruição de seu povo pelos assírios.
c) Mostrar a diferença entre castigo e descumprimento da aliança, ou seja, que Deus não castiga o povo, apenas retira sua proteção, deixando que vivam segundo sua arrogante independência.
d) Recordar que Deus é um Deus do povo e não tanto de indivíduos; a individualidade só tem sentido quando relacionada com o todo social.
3.2 – Contextualização
a) Então, trazer para os dias de hoje, mencionando inicialmente que Deus não age de maneira invisível, mas assim como em Salomão e Isaías, sempre envia pessoas para guiar o povo, segundo os preceitos do Senhor. No caso de Salomão e seus descendentes, Deus envia governantes que guiam o povo segundo seus preceitos, ou seja, segundo uma maneira harmoniosa e justa de convivência humana. Mas, quando esses reis usurpam o poder e fazem o que não é justo diante dos olhos do Senhor, então ele também envia pessoas (profetas) que procuram corrigir esses governantes, pessoas como Isaías. Podem-se usar os atos do v. 15, por exemplo, como um referencial para a comunidade ouvinte.
b) Mencionar que, se hoje vivemos numa sociedade em que podemos ir e vir em liberdade e segurança, é porque Deus, por intermédio de governantes e profetas, ou seja, através da história, tem desenvolvido seu reino de justiça entre nós, na forma de sociedades como as que conhecemos e nas quais vivemos. Que há governantes bons e não tão bons e que por isso há também pessoas que lutam contra as injustiças e que todas elas, governantes e profetas, são enviadas por Deus com um propósito: possibilitar vida abundante para todos (função social do Estado).
c) Então trazer nesse ponto a pessoa de Jesus, segundo João 14, lembrando que também foi enviado como um profeta para guiar a nós todos, apontando as injustiças contra pobres, viúvas, doentes e criancinhas e prenunciando um reino com mais justiça a partir de nossas ações. Sua ascensão, nesse escopo, pode ser interpretada como a vitória sobre todo tipo de força que promove a morte ou pode ser interpretada como o sinal de que Deus continua ainda hoje a promover seu reino de amor e justiça, ao não permitir que seu enviado terminasse morto na cruz, mas lhe permitindo viver até os dias de hoje.
3.3 – Compromisso
Mencionar, em seguida, o texto de Colossenses, onde o apóstolo Paulo, outro profeta, exorta para que vivamos em sintonia com as normas desse Deus de amor e de justiça, e não em sintonia com as leis que escravizam as pessoas nelas mesmas. Mencionar os v. 5 e 8s como exemplos negativos, culminando na exortação para sermos iguais a Cristo (v.10), ou seja, ações (sociais) que partem do conhecimento de que não há diferença entre pessoas, mas onde Cristo é um em todos, assim como, em João, Cristo é um com o Pai (Jo 14.9-11). Concluir, mencionando que Deus (do povo) chama a todos para ser bons cidadãos, segundo os preceitos de seu reino de justiça, exemplificados em Isaías, João e Colossenses, pois se assim o formos, então estaremos nos despindo (morrendo) da antiga roupa e revestindo-nos de nova roupagem (Cl 3.10), tricotada com atitudes de amor e de justiça, uma ação social que exemplifica nossa ascensão para patamares mais elevados de vida. Um patamar onde o outro conta mais do que eu mesmo; onde a outra é tão importante quanto a pessoa mais querida em minha família; onde passo a entrar em sintonia com Cristo, ascendido juntamente com Ele, juntamente com todos, vivendo em pleno reino de amor e de justiça. Amém.
4. Imagens para a prédica
História:
Para a finalização da mensagem, pode-se contar uma história. Sugiro a história “O vestido azul”. Procurar em “As mais belas parábolas de todos os tempos”, v. I, p. 87, ou digitar o título no Google. Essa história dá subsídios para conectá-la com a mensagem recém desenvolvida: uma simples ação de solidariedade pode desenvolver um efeito dominó, a ponto de transformar um bairro. Tais ações evangélicas são testemunhos concretos da Ascensão de Nosso Senhor e de seu reino de amor e de justiça. Reforçar a ideia de que estamos todos envoltos por uma teia, uma rede de relações sociais, na qual uma ação afeta todos inevitavelmente. Se essa for nociva, todos sofreremos as consequências, até quem deu início ao efeito dominó. Se for evangélica, igualmente todos sairemos beneficiados. Pode-se, contudo, apenas contar a história e deixar que produza seu efeito dominó por si mesma, sem maiores explicações.
5. Subsídios litúrgicos
Pelo fato de Isaías 33 conter duas liturgias com diferentes teores, podemos fazer uso disso, aplicando-as em nossa liturgia. Assim, sugiro os seguintes subsídios litúrgicos:
a) Versículo de abertura: “Haverá, ó Sião, estabilidade nos teus tempos, abundância de salvação, sabedoria e conhecimento; o temor do Senhor será o teu tesouro” (Is 33.6).
b) Voto Trinitário: “Em nome de Deus o Pai, sempre em sintonia com Seu Filho; em nome de Jesus Cristo, nosso Salvador Ascendido; e em nome do Espírito Santo, que nos anima a viver em harmonia comunitária. Amém!”.
c) Confissão de pecados: “Senhor, tem misericórdia de nós; em ti temos esperado; sê Tu o nosso braço manhã após manhã e a nossa salvação no tempo da angústia!” (Is 33.2).
d) Absolvição: É nosso Senhor quem nos garante que, se nossa confissão (fala) for reta (v. 15a), somos elevados (ascendidos) às alturas, onde encontraremos morada de proteção e descanso, como um castelo; onde teremos fartura de pão e água, que saciam nossa sede por paz e nossa fome por justiça (v. 16).
e) Oração do dia: “Tu, Senhor, prometeste tempos de abundância de vida e salvação; prometeste nos ensinar tua sabedoria e nos compartilhar teus conhecimentos; prometeste a nós um tesouro, mediante nosso temor diante de ti (v. 6). Pois estamos aqui, prontos para ouvir teus ensinamentos. Fala, Senhor, porque teu servo ouve somente a ti” (v. 15c).
Bibliografia
CROATTO, J. Severino. Isaías – O profeta da justiça e da fidelidade. V. I: 1-39. São Paulo: Vozes/Sinodal, 1989.
EISELEN, Frederick Carl & et alii. The Abingdon Bible Commentary. New York: Abingdon Press, 1929.
FOHRER, Georg & SELLIN, E. Introdução ao Antigo Testamento. V. II. São Paulo: Paulinas, 1977.
FOHRER, Georg. Estruturas Teológicas Fundamentais do Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).