Prédica: Isaías 35.1-10
Leituras: Jo 5.24-29
Autor: Günter K. F. Wehrmann
Data Litúrgica: Dia de Finados
Data da Pregação: 2 de novembro de 1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:
1. Ponderações sobre o evento e a perícope
1.1. A palavra finado significa morto, falecido. No Dia dos Finados, 2 de novembro, segundo a Enciclopédia brasileira Globo, a Igreja reza por todos os mortos. O nome do dia em latim é commemoratio omnium fidelium defunctorum (memória de todos os fiéis ou piedosos falecidos).
Essa reza ou missa pelos mortos pressupõe a imortalidade da alma (dogma na Igreja Católica Romana desde 1513) e a existência do purgatório (sobre isso pode-se ler mais em Estudos Teológicos, v. 25, n. 2, p. 198ss., 1985). Fico impressionado e preocupado com o fato de essas ideias estarem amplamente difundidas em nossas comunidades luteranas brasileiras. A tradição luterana, porém, tem celebrado a memória dos falecidos no Último Domingo do Ano da Igreja, também denominado Domingo da Eternidade. É bom e justo que a comunidade se lembre, em gratidão a Deus, da vida de seus falecidos e que interceda pelos entristecidos e enlutados. E é bom fazê-lo na perspectiva da esperança da vida eterna. Mas se hoje realizamos com as nossas comunidades cultos de memória no Dia dos Finados, seja nos templos ou nos cemitérios, pode acontecer que favoreçamos a propagação de ideias alienantes em relação ao evangelho. Pois o evento e o rito do dia e toda a propagação alusiva à imortalidade da alma, veiculada pelos meios de comunicação de massa, podem exercer bem mais influência nas pessoas do que nossa breve pregação neste dia, por mais evangélica que possa ser. A força do evento me parece inestimável. Por isso venho me perguntando se não ajudaríamos mais aos nossos membros se realizássemos a referida memória e intercessão no Último Domingo do Ano da Igreja. Mas se isso faria sentido apenas se fosse uma recomendação a nível de toda a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
Enquanto isso, preguemos o evangelho tão claramente quanto possível!
Os participantes do culto trazem consigo a predisposição para encarar a finitude desta vida, ainda mais se perderam um ente querido nos últimos 12 meses. Os mais variados sentimentos pairam no ar: dor pela perda; a conscientização de que a despedida foi definitiva, de modo que nada mais pode ser feito pelo ente querido, nem palavras de gratidão ou de perdão podem ser ditas para o morto, as flores não mais podem alegrá-lo elas só alegram a nós que estamos aqui reunidos; as mais variadas maneiras de morrer nos lembram de que min podemos escolher o nosso jeito de morrer; perguntas e dúvidas nos assaltam: algo fica depois da morte? Existe reencarnação? O que haverá entre a morte e a insurreição dos mortos? … Perguntas sobre perguntas. Precisamos ver e decidir quais podemos e devemos enfocar à luz do nosso texto e quais não.
1.2. Nas Séries de Perícopes para Prédica e Leitura, o texto de Is 35.3-10 faz parte da Série V e é destinado ao 2° Domingo de Advento. Na OLM, chamada de Lecionário Ecumênico, Is 31.1-10 é destinado, juntamente com l Co 15.50-58 ou 2 Pe 3.8-14 e com Mt 22.23-33 ou Jo 5.24-29, ao Dia dos Finados. Mateus 22.23-33 enfoca a questão da ressurreição dos mortos; nela não mais valerão os velhos valores e parâmetros, mas totalmente novos. E Jo 5.24-29 destaca que existirá a ressurreição para a vida e a para o juízo, dependendo de se ter praticado o bem ou o mal, de se ter crido ou não em Jesus Cristo; o destino futuro já se antecipa hoje no presente.
2. Ponderações sobre o texto e seu contexto
O texto pode se estruturado da seguinte maneira:
vv. 1-2: O deserto transformado em jardim explodirá em alegria e júbilo, em
vista da glória do Senhor
vv. 3-4a: O imperativo de animar os que estão abalados
v. 4b: A fundamentação: Eis o vosso Deus! Ele mesmo vem para julgar e salvar vv.
5-10: As consequências:
5-6a: cegos, surdos, coxos e mudos não apenas serão curados, mas esbanjarão vitalidade
6b-7: águas arrebentarão no deserto; a terra seca se transformará em banhado; a natureza não apenas será recuperada, mas trans¬bordará de fertilidade e vitalidade
8-10: haverá Caminho Santo para o retorno a Sião
8-9: Caminho Santo somente para o seu povo; nele não haverá impuro nem incrédulo/louco nem ameaça por parte de animais ferozes
10: nele os resgatados voltarão a Sião; júbilo e alegria espantarão tristeza e gemido.
Preciosos detalhes exegéticos encontram-se em Kirst, p. 159-164, e Schaper, p. 237s.
O cap. 34 fala do juízo de Deus sobre as nações que injustiçaram o povo de Deus. A ligação do nosso texto com o cap. 34 está no fato de Deus ser o mesmo, seja julgando, seja salvando.
Ao perguntar pela intenção do nosso texto, convém auscultar a situação para dentro da qual ele se dirige. Quase todos os comentaristas afirmam que o texto é pós-exílico. Talvez os exilados já tenham voltado. Nesse sentido encontraram-se uma terra natal devastada, gente pobre e explorada por pesados imposto, pagos aos persas. Dessa forma nem lugar haveria para os que voltaram. Os sonhos alimentados junto às águas da Babilônia não se concretizaram. Talvez os exilados tenham ganho, recentemente, licença para voltar. Nesse sentido estariam diante de um novo desenraizamento, pois após 40 anos de exílio, forçosamente se adaptaram a muitas coisas da vida e cultura babilônicas. Seja como for, a situação não é nada animadora. As pessoas sentem-se como diante de um deserto e vêem somente terra árida, rachada pela seca, sem sinal algum de vida na flora e fauna, sem sinal de perspectiva e futuro. As pernas balançam, os joelhos não sustentam o corpo; impossível dar passos firmes. A situação, seja ela bem específica ou típica, é de um profundo desânimo diante de tanta adversidade. O senso do povo se perdeu. Solidão e autocomiseração conduzem à depressão e ela pode levar à morte. A situação faz ficar cabisbaixo. Enxerga-se somente a própria impotência.
Para dentro de tal situação desanimadora e desalentadora é que a mensagem se dirige. Ela se dirige a essas pessoas desesperadas, quer tenham ficado na terra natal, quer tenham recebido recentemente licença para voltar, quer já tenham voltado há pouco. Por causa dessa relativa indefinição quanto ao destinatário a mensagem penetra, com facilidade, em outra situação de desalento.
Quem fala? O profeta ou alguém que fala com a autoridade dele (Kirst, p. 60).
Ele tenciona animar, dar novo fôlego aos que perderam o fôlego, fazer o povo cabisbaixo erguer a cabeça, fortalecer as mãos frouxas e as pernas bambas.
Com que meio ele quer despertar novo alento? Em que fundamenta a sua mensagem animadora? Eis o vosso Deus! Não é qualquer um, mas é vosso; aquele que conheceis, aquele que ouviu o vosso clamor no Egito; aquele que, através da organização promovida por Moisés, vos libertou da escravidão para a liberdade dos filhos do povo de Deus; aquele que vos sustentou na caminhada pelo deserto; aquele que fez um pacto convosco e o manteve fielmente, apesar de toda a vossa infidelidade; aquele que vos deu terra para morar, plantar e colher. Esse Deus vos sustentou na Babilônia e na terra natal devastada. Esse Deus operou, través de Ciro, a vossa libertação e reunificação. Esse Deus fez triunfar o direito e a justiça. Eis que o vosso Deus vai fazer triunfar o direito e a justiça também na terra natal devastada e sugada. Esse Deus salvará, pois Salvador é o seu nome. Dá para perceber como tal mensagem se torna transparente para o NT?
Então cegos enxergarão; surdos ouvirão; coxos não apenas andarão, mas saltarão como cervos; mudos não apenas falarão, mas cantarão/jubilarão. Quatro tipos de deficiência física não apenas estarão curados, mas a cura extrapolará o normal; a vida esbanjará! O mesmo acontecerá com a natureza. O deserto não apenas receberá chuva, mas será irrigado por ribeirões; terra árida será transformada em banhado. Saúde e vida exuberantes para o povo e a natureza.
Será por ali que passará o Caminho Santo, o caminho preparado e apartado por Deus. Por ele passará somente o povo de Deus, louco/tolo/incrédulo não passará por ele, nem animais ferozes estarão ali para ameaçar a caminhada dos remidos em direção ao Sião, alvo definitivo do povo de Deus; gozo e alegria espantarão a tristeza e o gemido. Dá para perceber como essa esperança trans-tende a si mesma e aponta para o NT?
3. O texto à luz de uma reflexão teológico-sistemática
O que o profeta vislumbrou cumpriu-se apenas em parte. Só alguns exilados retornaram. A reintegração na terra e a reconstrução da mesma foram muito sofridas. A história de sofrimento continuou (lembremos o jugo dos gregos e depois dos romanos). Mas… Eis aí o vosso Deus! Escondido (absconditus) sob a miséria de um estábulo, sob a fraqueza de uma criança pobre, sob sinais de cura de pessoas portadoras de deficiência, sob sinais de saciar famintos de pão e de alegria de casamento, sob sinais de perdão e aceitação imerecidos, escondido sob a vergonha da cruz. Esse Deus, que se despojou de todo o seu poder, honra e glória, fez triunfar a vida sobre a morte na Páscoa. Ele foi e está sendo experimentado como aquele que vive e faz viver (Jo 14.19). Como tal ele foi e está sendo testemunhado por mulheres, publicanos, crianças e outras pessoas —- tal qual eu e você — não muito impressionantes aos olhos do mundo. Mas… Ele há de voltar em majestade e glória, no final dos tempos. Então há de ressuscitar, com novo corpo, para a vida eterna todos os que nele creram; todos os que com ele viveram em sua comunidade; todos os que se deixaram agraciar por ele e como agraciados praticaram o bem (Jo 5.24-29), promovendo vida para todos, especialmente para os que dela mais necessitam. Então o veremos face a face (l Co 13.12). Então a última inimiga da vida, a morte, estará eliminada em definitivo (l Co 15.26). Dela e de todos os promotores da não-vida e da morte não mais haverá lembrança. Deus enxugará toda lágrima dos olhos dos seus (Ap 21.4). Haverá comunhão íntima com Deus. Nada e ninguém nos poderá separar dele. Então Deus será tudo em todos (l Co 15.28).
A vida eterna será totalmente nova e diferente, incomparavelmente mais bela do que a vida passageira de agora. Para descrever a vida eterna nos faltam palavras e parâmetros adequados (Mt 22.23-29). Podemos falar dela somente por meio de figuras, assim como a Bíblia o faz. Nesse sentido também o nosso texto de Is 35 fala do eterno que lança os seus raios para dentro do nosso tempo transitório.
4. Entre texto e evento a caminho, em direção à prédica
As sepulturas nos falam diante da efemeridade e transitoriedade da vida. Elas nos falam de despedida definitiva. Convidam-nos a agradecer a Deus por tudo de bom que ele nos fez através dos entes queridos. Fazem-nos perceber o tarde demais para um gesto de carinho, amor e perdão. Elas nos perguntam pela nossa esperança diante do nosso luto e diante da nossa própria última hora.
As tentativas de reagir ao confronto são multiformes. Existe o jeito de ignorar o questionamento e se afogar no ativismo. Existe o jeito de resignar de maneira fatalista e viver enquanto se puder; mas nem isso a maioria do povo pode, por falta de condições financeiras ou falta de saúde. Existem outros jeitos. Todos eles, de uma ou de outra forma, espelham desesperança.
Deus vê o seu povo desalentado hoje, assim como ele o viu por volta dr 520 a.C. Deus viu o seu povo desanimado diante de um novo início sem perspectiva e sem futuro, viu o seu povo cabisbaixo e de pernas bambas.
Deus reanima o seu povo, ergue-lhe a cabeça e fortalece-lhe os joelhos a fim de que possa caminhar com rumo e futuro. Vejamos o texto.
Eis o vosso Deus! Lembrar daquilo que Deus fez: Egito, deserto, pacto, terra, libertação, … cruz. Páscoa, ascensão. Lembrar daquilo que Deus ainda vai fazer: ver algumas das figuras do texto de Is 35 e perceber como transcendem a si mesmas, apontando para aquilo que Jesus Cristo vai fazer quando da sua volta (cf. item 3!).
Vejamos a figura que ilustra o texto:
Por tua mão me guia… (HPD 174)
Só nimm denn meine Hande… (EG 369)
A luz que vem do alto a nossa frente ilumina o nosso rosto e o nosso caminhar. Reconhecemos o braço forte que nos quer guiar. Assim iluminados e guiados somos capacitados a dar passos firmes e confiantes. Podemos emprestar um ombro par quem precisa encostar-se. Podemos ter dois ouvidos, dois olhos e o coração para quem anseia por um lugar para chorar e desabafar. Assim, visitando os nossos enlutados e integrando-os em grupos de enlutados. Deus estará fortalecendo mãos frouxas e firmando joelhos vacilantes, através de nós. Assim podemos concretizar algo do ser comunidade solidária a caminho, no Caminho Santo.
5. Subsídios litúrgicos
Com leitura bíblica sugiro Jo 5.24-29.
Como texto de aclamação desrecomendo Ap 14.13b, visto que, sem explicação, pode ser mal entendido. Recomendo, pois, Jo 16.22.
Como hinos recomendo: Hinos do povo de Deus (HPD) n° 74, 67, 174.
A leitura dos nomes daqueles que faleceram nos últimos 12 meses pode ser introduzida da seguinte maneira: Confiantes na insondável misericórdia de Deus, queremos lembrar, agora, com coração grato, daqueles nossos irmãos e irmãs que faleceram nos últimos 12 meses. Enquanto leio os nomes, queremos interceder silenciosamente pelos respectivos familiares e parentes enlutados. Após determinado número de nomes convidarei a vocês, por meio das palavras ‘Oremos com o salmista’ a orarem comigo a prece do Sl 90.12: ‘Senhor, ensina-nos a usar bem os dias de nossa vida, para que possamos nos tornar sábios.’
Bibliografia
DOBBERAHN, Friedrich E. Um manifesto de Advento. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1988. vol. XIV, p. 115-123.
FISCHER, Joachim. Cultos em memória dos mortos? Estudos Teológicos, v. 25, n. 2. p. 198- 210, 1985.
KIRST, Nelson. 2° Domingo de Advento. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1984. vol. X, p. 158-169.
LANGNER, Christl. 2. Sonntag im Advent. In: Meditative Zugänge zu Gottesdienst und Predigt. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1994. p. 5-9. (Predigttexle — Reihe V).
SCHAPER, Valério. 16° Domingo após Pentescostes. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1993. vol. XIX, p. 237-240.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia