Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Isaías 35.1-10
Leituras: Mateus 11.2-11 e Tiago 5.7-10
Autor: Michael Kleine
Data Litúrgica: 3º Domingo do Advento
Data da Pregação: 12/12/2010
1. Introdução
Isaías 35.1-10 fala da vinda do Senhor para a salvação de seu povo (v. 4). O texto realça os sinais dessa vinda, perceptíveis na transformação de pessoas e de seu meio ambiente. Outro aspecto importante é o “caminho” aberto por Deus para conduzir seu povo libertado até Ele. – Mateus 11.2-11 trata de Jesus como “aquele que estava para vir” (v. 3) e cita Isaías 35.5s para falar dos sinais de transformação (as “obras de Cristo”, v. 2) que o Messias esperado produz por onde passa. O evangelho também menciona o “caminho” (v. 10), mas a ênfase é na preparação do caminho que servirá para a vinda do Senhor (cf. Ml 3.1). Tiago 5.7-10 anima a comunidade a ter paciência e confiança, “pois a vinda do Senhor está próxima” (v. 8). Esse aspecto do consolo/ânimo diante do sofrimento, baseado na expectativa da vinda salvífica de Deus, também está presente em Isaías 35.3s. Os três textos propostos possuem vários pontos de contato e podem reforçar-se mutuamente numa pregação que procure esclarecer aspectos da “vinda do Senhor” (Advento).
2. Exegese
O livro de Isaías é uma coleção de textos produzidos ao longo de um extenso período da história do povo de Judá. Normalmente, o livro é dividido em três partes, de acordo com três grandes etapas históricas desse povo: cap. 1-39 (monarquia, tempo em que viveu e pregou o profeta Isaías), cap. 40-55 (destruição do reino de Judá e exílio babilônico), cap. 56-66 (tempo da restauração de Judá sob domínio persa). A redação final do livro deve ter ocorrido por volta do ano 400 a.C. Essa redação deixou suas “marcas” no livro todo, produzindo uma releitura pós-exílica dos textos mais antigos (cf. Croatto, p. 11-14).
Apesar de pertencer à primeira parte do livro, Isaías 35 é claramente um texto da época pós-exílica. Ele é dirigido aos “exilados”: “os resgatados do Senhor [que] voltarão e virão a Sião” (v. 10). Seu objetivo é convencer judeus exila- dos para que retornem a Jerusalém (cf. Croatto, p. 209). Após a queda do império babilônico, os judeus deportados receberam dos persas a permissão para retornar à sua terra natal. Há bons motivos para supor que essa autorização não gerou muito entusiasmo entre os “exilados”. A maioria estava plenamente integrada à sociedade babilônica. Além do mais, o antigo reino de Judá havia sido reduzido a um pequeno território ao redor de Jerusalém, cercado de vizinhos hostis. A área disponível era árida e pouco apropriada para a produção agrícola. O pouco que era produzido estava sujeito aos pesados tributos cobrados pela administração persa. A subprovíncia de Judá tinha pouco a oferecer aos descendentes de seus antigos habitantes deportados.
Apesar das condições extremamente desfavoráveis, havia um grupo muito empenhado na edificação de uma comunidade judaica em Jerusalém. Isaías 35 expressa a esperança desse grupo, baseada na vinda do “vosso Deus” (v. 4). O texto começa e termina com o tema da alegria. Chama a atenção a ligação entre a “alegria” da natureza (v. 1-2a) e a alegria do povo que chega a Jerusalém/Sião (v. 10). Essa ligação é sublinhada pelo acúmulo de sinônimos (alegria, júbilo, exultação, gozo), que aparecem tanto nos v. 1-2a como no v. 10.
A “alegria” da natureza fica visível quando a terra árida na Palestina (o deserto, a terra seca e o ermo/a estepe) fica fértil e floresce. A “glória do Líbano” são as suas árvores (cf. 60.13), cuja madeira foi usada na construção do templo (1Rs 5.15ss). O Carmelo e o Sarom são regiões conhecidas por sua fertilidade. A beleza e o esplendor desses lugares são dados a Jerusalém (como em 60.13), como indica o sufixo feminino (lit. “foi dado a ela”). Os mesmos termos “glória/esplendor” são atribuídos também a Javé. Ou seja: a glória de Deus manifesta-se na transformação do deserto em uma região fértil e rica. Em Isaías 4.2, os frutos da terra servem de ornamento e glória para o povo resgatado (cf. Wildberger, p. 208). A glória de Deus é visível na fertilidade, na vida que brota onde só havia morte.
Nosso texto fala para dentro de uma realidade de desespero. A edificação da comunidade judaica em Jerusalém e arredores esbarrava em inúmeros empecilhos: ameaças dos povos vizinhos (samaritanos, edomitas), situação econômica difícil, sincretismo religioso. Aqueles que se mantêm fiéis a Javé estão em minoria, e os “exilados” se recusam a voltar. A destruição do país e o exílio são vistos como castigo de Deus a seu povo infiel. Por isso, nos v. 3-4, um grupo é instruído a animar pessoas enfraquecidas pelo desespero: “fortalecei”, “firmai”, “dizei”. O motivo para o novo ânimo está na vinda do “vosso Deus”. Ele mesmo toma a salvação de seu povo em suas mãos. Ele traz “vingança”, quer dizer, ele defende a causa de seu povo (cf. 34.8) e restabelece a justiça, inclusive punindo os inimigos que o oprimem (cf. Is 34). “Vingança” é uma ação que procura corrigir uma situação marcada por delito e culpa. “Restituição” significa colocar em ordem uma situação de desgraça (cf. Wildberger, p. 197s.).
Os v. 5-6a descrevem os efeitos da presença de Deus: as deficiências físicas não impedirão as pessoas de perceber a salvação (cegos e surdos) nem de expressar sua alegria (coxos e mudos). Cegueira e surdez podem ser usadas para descrever a dificuldade do povo de Deus em ouvir sua palavra e andar no seu caminho (cf. Is 42.18-25). Esse foi o motivo do castigo e da ira (cf. 42.25). A salvação manifesta-se quando o povo de Deus reconhece a verdade (cf. 32.3-5). Os v. 6b-7 comparam a vinda de Deus com a chegada da água em regiões áridas. Assim como a vida depende da água, o povo depende de Deus. Sua ausência é morte certa, sua presença traz vida em abundância.
Os v. 8-10 introduzem um novo tema: a volta dos “libertados/resgatados” (v. 9b-10a) a Jerusalém. O caminho que leva a Sião é santo, por ser Santo aquele a quem ele pertence. A imagem do caminho aberto no deserto aparece outras vezes, sempre em conexão com a vinda de Javé para libertar seu povo (cf. 40.3), com a volta do povo de Deus disperso (cf. 11.16) e com a manifestação da glória de Deus a todos os povos através da restauração de Jerusalém (cf. 62.10). O “caminho” é uma alusão à libertação do povo de Deus da escravidão egípcia (cf. 11.16), quando o próprio Deus guiou o seu povo pelo deserto (cf. Êx 13.21s.) rumo à terra prometida. Foi nesse caminho que Israel foi constituído como povo santo (cf. Êx 19.6) através do recebimento dos mandamentos e da aliança com Deus.
“Impuros” podem ser aqueles/as que justamente andam por outros caminhos e assim se afastaram de Deus (cf. Is 64.5s.). Quem teve olhos e ouvidos abertos e deixa-se guiar pelo caminho santo é purificado. “Louco” é quem não conhece Deus (cf. Jr 4.22) e pratica a maldade (Is 32.6). “O temor do Senhor é o princípio do saber, mas os loucos desprezam a sabedoria e o ensino” (Pv 1.7).
Podemos dividir Isaías 35.1-10 em duas partes. A primeira (v. 1-7) trata da transformação da natureza e das pessoas provocadas pela vinda de Deus. A segunda parte (v. 8-10) descreve uma outra consequência da vinda de Deus: o seu povo é colocado em movimento sobre o Caminho que leva até Ele (= até Sião, que é a Sua morada).
Isaías 35 fecha uma seção (os cap. 28-35), cuja característica é a alternância entre palavras de juízo e anúncio de salvação. O cap. 35 é a contraparte positiva do cap. 34, que fala da vinda de Javé para o juízo. Isso deve ser dito para lembrar que a expectativa da vinda de Deus para a salvação só é possível onde se experimenta a realidade da ausência e do juízo de Deus. Para Isaías, ela é consequência da rebeldia do povo (Is 54.8; 57.17; 63.10,17; 64.5,7; 65.1-7) e manifesta-se no sofrimento e na desolação.
3. Meditação
É muito clara em todo o livro de Isaías a compreensão de que a desgraça de Israel é resultado da ira e do juízo de Deus sobre seu povo por esse ter virado as costas a seu Deus: “rejeitaram a lei do Senhor… e desprezaram a palavra do Santo de Israel. Por isso se acende a ira do Senhor contra o seu povo, povo contra o qual estende a mão e o fere” (5.24s). Deus transforma sua “vinha” num “deserto”, retirando sua proteção e permitindo que ela sirva de pasto e seja pisada (5.1-7,26-30). A destruição do país, a dispersão e a deportação de uma parte do povo, as invasões de povos vizinhos, a consequente diminuição do território e a dominação de impérios estrangeiros são sinais visíveis e concretos de que Deus se retirou e entregou seu povo à própria sorte.
Nessa mesma linha, a fé bíblica proclama que existe uma relação intrínseca entre o pecado humano e a miséria deste mundo como um todo. O ser humano quis ser como Deus (Gn 3.5) e acabou transformando a vida numa luta pela sobrevivência (Gn 3.14-24). O ser humano carrega a culpa de ter corrompido a boa criação de Deus. Assim como a rebeldia contra o Criador trouxe consequências bem concretas para a criação como um todo (luta, sofrimento, dor, morte), a redenção do ser humano traz consigo também a redenção de toda a criação (cf. Rm 8.15-23).
Aqui está a característica principal de Isaías 35: o texto proclama a salvação como um processo de transformação de toda a realidade material. Deus vem e liberta/resgata seu povo de uma situação de opressão e o conduz de volta para casa, para junto de si. Mas a vinda de Deus produz ainda outros efeitos: o florescimento da região árida de Judá, a cura dos cegos, surdos, coxos e mudos, o restabelecimento da justiça. Segundo nosso texto, a salvação não acontece apenas para os seres humanos, mas também para a terra habitada por eles. Não apenas o ser humano experimenta a proximidade e a presença de seu Deus como nova criação e vivificação, mas também a natureza a seu redor – o mundo que pertence a Deus e que sofre por causa da rebeldia do ser humano contra o Criador.
“Eis o vosso Deus… ele vem para vos salvar” (v. 4). A salvação acontece quando Deus vem a este mundo (Advento). Para Isaías 35, salvação acontece com a volta do povo de Javé a Sião. Somos lembrados/as de que “Deus vem” e manifesta sua glória também hoje, enquanto aguardamos sua vinda definitiva. Mateus 11.2ss mostra-nos que, antes de vir definitivamente, Deus veio a nós em Jesus Cristo e que essa vinda já traz sinais da revelação definitiva da glória no fim dos tempos: “nós vimos a sua glória” (Jo 1.14). Isaías 35 fala dos sinais dessa glória/salvação na renovação e no novo nascimento de pessoas e de seu meio ambiente. A vinda de Deus ao mundo de morte produz frutos e nova vida. A vinda de Deus abre olhos e ouvidos, produz alegria onde só havia sofrimento e liberta lá onde só há limitações e opressão.
Jesus Cristo vem ao mundo de forma concreta, audível, palpável e degustável. Ele vem com sua palavra que consola, liberta e mobiliza. Através do Batismo assume e transforma cada indivíduo, pessoalmente, e integra-o a seu povo. Ele liberta oprimidos/as e deprimidos/as pela culpa através do perdão e absolvição de pecados. Ele se oferece como alimento na jornada, dando seu corpo e sangue. Com esses seus meios de salvação e de vida, Jesus Cristo nos emprega para transformar nossos relacionamentos pessoais (perdão), as relações sociais (justiça, igualdade) e a relação com o meio ambiente. Isso ainda não é o reino de Deus, mas manifestações concretas desse já agora.
Aqui entramos no segundo aspecto do texto: a vinda de Deus coloca o seu povo em movimento (v. 8-10). Os/as cansados/as e abatidos/as são fortalecidos/ as com a vinda/presença de Deus, “cegos” e “surdos” percebem novamente o caminho de Deus. Deus não apenas liberta e revigora, mas ele coloca os/as libertados/as no caminho que ele mesmo abriu e que leva até ele. Eles/as não precisam abrir caminhos novos nem ficar procurando trilhas escondidas. A estrada está aí, o Caminho Santo (v. 8). No meio do deserto e protegido dos perigos, um caminho conduzirá aqueles/as que tiveram seus olhos e ouvidos abertos para a promessa da vinda de Deus. O caminho conduz seguramente ao objetivo posto por Deus: a “Sião”, a morada de Deus.
Só existe um caminho que leva a Deus, o caminho que ele mesmo estabeleceu. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6). Esse é o “caminho da vida”; qualquer outra opção é “caminho de morte” (Jr 21.8; cf. Mt 7.13). O caminho é para “os resgatados do Senhor”, o povo que Deus forja para si e que se deixa guiar por ele. “Impuros” e “loucos” são os que escolhem outros caminhos e/ou não reconhecem o verdadeiro caminho. Mas, uma vez que o reconhecem, são “purificados” e conduzidos ao alvo certo.
O povo de Deus vive de seu Advento. A vinda constante de Jesus Cristo aos seus, em Palavra e sacramentos, coloca-os e mantém no caminho que leva ao Reino – nele próprio! Assim ele os fortalece, mobiliza e organiza para transformar e vivificar o meio em que vivem: seu círculo familiar e de amizade, seu ambiente de trabalho e moradia, a sociedade como um todo. Ali promovem inclusão, partilha, luta por justiça e paz, reconciliação. A ação de Jesus Cristo em nós, principalmente através do Batismo e da Santa Ceia, atinge-nos de forma concreta e material. Envolve nosso corpo e todos os membros: mãos, pernas, coração, olhos, ouvidos, boca, que empregamos para perceber a realidade de miséria (“deserto”) ao nosso redor e para lutar contra ela. Jesus Cristo vem ao mundo através daqueles/as que foram incorporados/as nele (Batismo), nos/as quais ele mesmo se incorpora e materializa (Ceia). Neles/as, sua glória torna-se concreta e visível. Dessa forma, ele prepara o caminho para o seu Advento definitivo.
4. Imagens para a prédica
O texto está repleto de imagens. Basta escolher! A vinda de Deus a este mundo é comparada com a vinda da água aos lugares desertos. A água é elemento essencial à vida. Necessitamos dela tanto quanto a terra e os demais seres vivos. Somos feitos de água, o elemento essencial e comum a todos: “Creio que Deus me criou a mim e a todas as criaturas” (Catecismo Menor, 2ª Parte). Não dispomos da água; ela é pura dádiva. Não podemos produzir água, nem substituí-la por outro elemento. Mas podemos buscá-la onde ela está, cavando poços, levando-a para as regiões áridas. “Buscai-me e vivei” (Am 5.4). Jesus Cristo traz “água viva” (Jo 4.10). É impressionante o efeito que a água produz na paisagem quando alcança as terras secas! Revigora, vivifica, enche de beleza. Semelhante é a ação de Deus sobre nós, com efeitos em todas as áreas da vida.
5. Subsídios litúrgicos
Seguem algumas sugestões de hinos que reforçam/desdobram os temas de Isaías 35.1-10:
– “Alerta, ó consagrados” (HPD n° 8 – Vol. 1): um hino de Advento que se dirige aos/às de “mãos frouxas”, “joelhos vacilantes” e “desalentados de coração”, consolando-os/as com a vinda de Jesus Cristo. Aponta onde essa vinda pode ser percebida já hoje: “Em toda parte estão seus dons consoladores: A voz dos pregadores – batismo e comunhão”.
– “Veio Jesus, manancial de alegria” (HPD n° 40 – Vol. 1): o Filho de Deus já veio e sua vinda trouxe libertação e alegria. O tema da água aparece nas estrofes 1 e 6.
– “Há sinais de paz e de graça” (HPD n°165 – Vol. 1) lembra onde podemos perceber a vinda de Deus: na cruz (3), na comunidade/igreja (4), na palavra do perdão e no abraço do/da irmão/ã (5).
– “Dá-nos olhos claros” (HPD n° 166 – Vol. 1) concretiza a vinda do Senhor, que emprega nossos corpos e membros como sua presença libertadora/consoladora no mundo.
– “Viver com Jesus é cantar” (HPD n° 181 – Vol. 1) traz o tema da alegria dos/ “redimidos/as”/“libertados/as”, que “mostram” Cristo e seu amor aos “muitos que vivem na dor”.
Bibliografia
WILDBERGER, Hans. Königherrschaft Gottes – Jesaja 1-39, Teil 2. Neukirchen-Vluyn, 1984.
CROATTO, José Severino. Isaías: a palavra profética e sua releitura hermenêutica. Vol. 1 (1-39: o profeta da justiça e da fidelidade). Petrópolis, 1989.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).