Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Isaías 43.1-7
Leituras: Lucas 3.15-17,21-22 e Atos .14-17
Autoria: Klaus A. Stange
Data Litúrgica: 1º Domingo após Epifania (Batismo do Senhor)
Data da Pregação: 10/01/2016
1. Introdução
Vivemos em uma sociedade líquida (Bauman, 2003). As pessoas carecem de identidade. Nas redes virtuais, assumimos avatares, publicizamos a nossa intimidade, ansiamos por alguém que nos “curta”. Queremos ser alguém! Deprimimo-nos se nossas postagens no Facebook não alcançam o número de visualizações e curtidas esperadas. Vivemos dias de angústia, gerada pelo vazio de identidade.
Nesse contexto, como pessoas que proclamam o evangelho, temos o privilégio de anunciar neste 1º Domingo após Epifania, domingo em que lembramos o batismo de nosso Senhor Jesus Cristo, que todos somos convidados: convidados pelo próprio Deus que se revelou a nós, o Deus que se deu a conhecer, o Deus que é missionário, que nos quer arrancar de nossa angústia e convidar-nos a experimentar o seu amparo, o seu cuidado e afi rmação. Na presença do Deus Criador, ninguém é esquecido; na presença do Deus Salvador, somos todos valiosos; na presença do Deus Emanuel, temos uma identidade.
2. Exegese
2.1 – Primeiras impressões
O texto que temos diante de nós é um muito rico em imagens. Essas imagens provavelmente despertarão nos ouvintes toda sorte de impressões e sentimentos: o texto fala da criação, de ser formado (remetendo ao ofício de um artesão que molda vasos de barro), menciona elementos da natureza como água e fogo, remete a sentimentos como angústia (medo) e glória, fala de amor e aliança. É importante que procuremos compreender como essas imagens serão interpretadas pelos ouvintes. No texto também sobressai uma linguagem relacional: é Deus (1ª pessoa do singular) que se relaciona com Israel (2ª pessoa do singular). A linguagem relacional é sublinhada pelo constante uso do pronome possessivo, dando a entender que Deus e Israel encontram-se num relacionamento de pertencimento.
2.2 – Contexto histórico
As palavras do profeta Isaías são dirigidas ao povo de Israel, que se encontra no exílio babilônico. Ao povo é prometido um novo êxodo, com dimensões universais, que culminará no ajuntamento de todo o povo de Deus (Is 40).
2.3 – Observações exegéticas
V. 1 – O texto inicia com uma conjunção adversativa: “Mas agora!”. A expressão estabelece um contraste com o que foi dito no capítulo anterior, onde o profeta explicita o pecado de Israel. “Mas agora” Deus volta-se a seu povo com compaixão e amor. Os verbos hebraicos “criar” (bará) e “formar” (iazar) frequentemente estão correlacionados com o povo de Israel no contexto do capítulo 43 (Is 44.2,21,24; 40.26,28; 41.20; 42.5; 45.7,8,12,18). Finalmente, vale destacar que designar um “nome” na cultura do Oriente equivale a conferir status, poder, à pessoa (ou objeto) nominada (Gn 2.19ss). Na Bíblia, quando Deus muda o nome de uma pessoa, isso geralmente está associado a uma promessa que é dada por Deus ou a um novo status de relacionamento da pessoa com Deus (Abrão → Abraão – Gn 17.5; Sarai → Sara – Gn 17.15; Simão → Pedro – Mc 3.16). Em nosso texto, o povo é chamado pelo seu antigo nome (Jacó = enganador) e novo nome (Israel = Deus lutará).
V. 2 – Neste versículo, duas vezes são mencionados os elementos da água e do fogo. Eles simbolicamente sintetizam toda a gama de perigos a que o povo está exposto. O texto não nega a possibilidade de estarmos expostos a perigos, mas nega a possibilidade da vitória do perigo a que estamos expostos.
V. 3 – O versículo destaca o Deus relacional: “não temas”… (v. 1), “pois eu sou teu Deus… o santo de Israel… teu salvador”. O Egito, a Etiópia e Sebá designam simbolicamente o continente africano conhecido da época.
V. 4 – Este é o versículo central da perícope. Destaca o amparo, o cuidado e o amor de Deus, não por causa de algum merecimento ou valor especial que o povo tivesse, mas simplesmente por causa do olhar benevolente de Deus para com ele.
V. 5 – Aqui se repete o apelo do v. 1 para que o povo vença a angústia. O que sustenta o apelo é o Deus Emanuel, o Deus presente. Dos confins da terra ele reúne seu povo. Aqui se estabelece um paralelo com a obra do servo de Javé (Is 42.4 e 49.6).
V. 6 – O texto não fala mais de povo, Jacó ou Israel, mas de meus filhos e minhas filhas. Destaca-se a dimensão relacional de Deus com seu povo.
V. 7 – O versículo retoma palavras-chave do v. 1: chamar, nome, criar, moldar. E ao citar a palavra “honra”, conecta com o v. 4. No centro do v. 7 está o próprio Deus: “meu nome… minha glória”.
Em resumo:
O texto apresenta-nos um Deus que é ativo. Muitos verbos estão associados a Deus: Ele fala, cria, faz, salva, chama, ama, reúne, está presente… Os verbos descrevem o cuidado de Deus para com seu povo.
O texto também nos apresenta um Deus com diferentes nomes/atributos: ele é Javé, Criador, Salvador, Emanuel, teu Deus, o Santo de Israel, Pai.
O papel do povo de Israel é absolutamente passivo. O povo é reunido e nominado, é guardado para que não se afogue nem se queime.
Também o povo recebe vários nomes: Jacó, Israel, meu povo, meu filho, minha filha.
3. Reflexão teológica com vistas à prédica
a) Provavelmente, nenhum dos nossos ouvintes literalmente vivenciou uma situação de exílio em sua vida. Nem por isso deixa de ser verdadeiro o fato de muitos ouvintes vivenciarem situações de exílio em seu cotidiano. Basta lembrar como muitas vezes temos que lidar com situações (limítrofes) na vida que nos aprisionam de modo que, existencialmente, nos encontramos num cativeiro, sem perspectiva de mudança, sem esperança. Exemplifico com a análise feita por Bauman, citado na introdução, quando ele descreve o brete em que se encontra a sociedade pós-moderna. Para dentro desse contexto de angústia vale tanto para o povo de Israel como para nós: Deus está presente!
b) O anseio por aconchego, pertencimento e comunhão é recorrente em nossa sociedade e também em nossas comunidades cristãs. Diante desse anseio humano, a palavra afi rma que somos amados, somos preciosos aos olhos do Criador.
c) Em nossos relacionamentos, algumas vezes nos acontece que, ao mencionarmos um nome, não conseguimos associar o nome a um rosto ou vice-versa: vemos uma pessoa, mas não lembramos de seu nome. Implicação do texto bíblico que temos diante de nós é que podemos afirmar que na comunidade cristã ninguém fica sem nome, ninguém permanece anônimo. Deus mesmo é aquele que nos tira do anonimato e nos confere identidade.
d) No Brasil, a legislação não permite, como regra, a troca de nosso nome. Não escolhemos os nossos nomes; eles nos foram dados por nossos pais. Deus, aquele que possui vários nomes, confere-nos um novo nome (Ap 3.12) e sobre a nossa vida evoca o seu nome. Esse é o sentido da bênção que proferimos no final do culto: invocamos o nome de Deus sobre a comunidade.
4. Apontamentos para a prédica e atualização
O sentimento de angústia (exílio) no qual se encontra nossa sociedade pode servir como introdução à prédica. No “exílio”, corremos o risco de perder a nossa identidade. Não sabemos mais quem somos. Situação análoga experimenta o povo de Israel no exílio babilônico. O contexto histórico do exílio pode ser apresentado à comunidade.
Diante da realidade da perda de identidade, do anonimato, Deus interfere e faz duas coisas: ele se apresenta a nós e nos diz quem ele é e, simultaneamente, diz-nos quem nós somos. Ele nos faz um convite para uma vida em comunhão com ele, que nos tira da angústia e nos confere identidade.
Percebo duas possibilidades de estruturar a prédica:
a) Note que no texto, por duas vezes, encontra-se a expressão “não temas” (v. 1,5). Da mesma forma, é frequente a conjunção “pois” (no hebraico é a partícula qui), mencionada cinco vezes no texto. Dessa forma, a estrutura da prédica poderia ser:
Não temas, pois…
1) … eu te criei, te redimi e te salvei!
2) … eu te amei e escolhi!
3) … eu te trarei de volta!
b) No texto também evidenciam-se os nomes de Deus e os nomes do povo. Dessa forma, a estrutura da prédica poderia ser:
Não temas, pois…
1) … eu sou Criador, tu és meu!
2) … eu sou teu Salvador, tu és valioso!
3) … eu sou Emanuel, tu tens nova identidade! Opto pela segunda proposta de estrutura da prédica. Tema: “Não temas, pois…” 1) … eu sou Criador, tu és meu!
A primeira forma como Deus apresenta-se no texto é como Deus Criador. Ele é o Criador do cosmo. Ele cria ex-nihilo (do nada). No entanto, a despeito de sua grandiosidade e majestade, ele não se esqueceu de nós. Com amor convida-nos à comunhão com ele. Ele deseja moldar a nossa vida (imagem do oleiro). Deus volveu o seu rosto para nós.
Uma segunda implicação do Deus Criador reside na dimensão do pertencimento. Nós somos sua criação. Não pertencemos a nós mesmos, mas a ele (cf. Rm 14.7ss).
Uma terceira implicação que deriva da dimensão do Deus Criador é que ele também é mantenedor, cuidador. No v. 2, são mencionados elementos da natureza que simbolicamente nos assombram. Deus nem sempre nos livra de todo sofrimento, mas entra conosco para dentro do sofrimento e não permite que sucumbamos. Ele se importa conosco. Por isso não precisamos temer.
Uma quarta implicação que deriva da dimensão do Deus Criador pode ser associada ao fato de Deus chamar seu povo pelo antigo nome (Jacó = enganador) e, simultaneamente, por seu novo nome (Israel = Deus lutará). Isso significa que Deus pode renovar e transformar a nossa vida. A Bíblia está cheia de relatos de pessoas que experimentaram mudanças profundas em suas vidas por conta de uma intervenção de Deus. A própria história do patriarca Jacó poderia ser usada aqui como ilustração.
2) … eu sou teu Salvador, tu és precioso! (cf. imagens para a prédica 1) Num segundo momento, Deus apresenta-se como aquele que é o “teu Deus”, o “teu Salvador” (v. 3) Percebe-se claramente que o relacionamento é mútuo, ou seja, Israel não é somente o povo de Deus como também Javé é o Deus de Israel (cf. imagens para a prédica 2). É como Lutero o expressou na 7ª estrofe de seu hino “Cristãos alegres jubilai” (HPD 1, 155), em que ele escreve: E disse em sua compaixão: A minha mão segura. Alcançarás a salvação, eu venço a luta dura. Pois eu sou teu e tu és meu; onde eu estou terás o céu. Nada há de separar-nos.
Somos preciosos aos olhos de Deus (cf. imagens para a prédica 3). Ou melhor, o olhar de Deus por nós faz de nós pessoas preciosas, especiais, valiosas. Por sermos valiosos aos olhos de Deus, ele se empenha radicalmente em nosso favor. Em se tratando do pequeno, insignificante, anônimo povo de Israel no exílio, poeticamente o texto diz que Deus estaria disposto a entregar todo o continente africano conhecido da época ou entregar povos inteiros por seu povo precioso. No Novo Testamento, parábolas de Jesus que expressam essa verdade são a parábola do tesouro escondido e a parábola da pérola preciosa (Mt 13.44ss). Numa perspectiva neotestamentária, vemos na encarnação de Deus em Jesus Cristo o quanto somos preciosos aos olhos do Pai. Por nossa salvação (cura) ele paga um alto preço.
3) … eu sou Emanuel, tu tens nova identidade! Uma segunda vez o texto convida-nos para fora da angústia, a não temer. Não se trata do consolo barato de alguém que, em última análise, não se compromete conosco. Pelo contrário, o apelo é feito pelo Deus que está conosco (v. 5), pelo Emanuel. Deus não abandona a sua comunidade, como não abandonou seu povo no exílio (a despeito de todas as evidências externas que apontavam na direção contrária). Deus está em meio à sua comunidade e reúne seu povo de todas as extremidades da terra para pertencer à sua família. Somos filhos e filhas do Pai celeste (Cf. oração do Pai-Nosso). Na comunidade cristã, somos irmãos e irmãs porque temos em comum Jesus Cristo como nosso irmão. Como família, carregamos um “nome de família”: somos cristãos. Em nosso Batismo foi invocado o nome do Deus triuno sobre a nossa vida. Portanto sobre nós não está mais o nosso “velho nome”, Jacó, mas recebemos uma nova identidade: carregamos o nome de Cristo (cf. 2Co 5.17). A nova identidade que recebemos objetiva que o nome de Deus seja honrado. Temos o privilégio, mas também a responsabilidade de viver a nova identidade que recebemos (cf. imagens para a prédica 4).
5. Imagens para a prédica
1) Chama a minha atenção que, no filme “O senhor dos anéis”, o anel é carregado pelo mais fraco e insignificante personagem: Frodo Bolseiro. O anel é frequentemente chamado de “precioso” pelos personagens do filme.
2) Conta-se uma história que teria ocorrido numa pequena vila do interior. Na pequena e pacata vila, um dos grandes eventos sociais era o sarau, organizado anualmente. Cada membro da comunidade era estimulado a trazer uma contribuição cultural: uma poesia, uma música, um artesanato etc. Certa ocasião, um famoso orador deveria participar do sarau. No grande dia, toda a comunidade local, inclusive o idoso pastor da localidade, reuniu-se para ouvir o famoso orador, que cativava todos com sua eloquência. No final da apresentação, o orador decide fechar as apresentações, declamando o Salmo 23, e convida o pastor da localidade a fazer o mesmo. Após alguns segundos de hesitação, o pastor concorda. O famoso orador pôs-se, então, a declamar o Salmo 23. No final, todos aplaudiram efusivamente o artista. Chegou a vez do pastor local declamar o Salmo 23. O pastor, já idoso, sobe lentamente os degraus do palco, fecha seus olhos, suspira profundamente e passa a declamar o Salmo 23. Quando ele termina, ninguém aplaude, mas a maioria das pessoas da comunidade estava com seus olhos marejados, emocionados pela forma como o pastor havia recitado o Salmo 23. O famoso orador, percebendo o que acontecera, tomou o microfone e pergunta: Sabem qual a diferença entre mim e o pastor da comunidade? Eu, disse o artista, conheço o Salmo do Pastor, mas ele – apontando para o pastor da comunidade – conhece o Pastor do Salmo!
3) Uma boa forma de compreender o que é algo precioso, percebemos quando decidimos fazer uma faxina em nossa casa. Faxina implica jogar fora coisas velhas, sem serventia. Mas quantas vezes não acontece que, quando fazemos a faxina e queremos jogar algo fora (um brinquedo velho de nossos filhos, por exemplo), nosso filho olha para o brinquedo e diz: Mãe, eu gosto desse brinquedo, esse não podemos jogar fora! Provavelmente o brinquedo em si não possui grande valor, mas o olhar faz toda a diferença.
4) Quando entramos numa escola e vemos alguém usando um avental branco, imediatamente identificamos a pessoa com um professor. Quando entramos num hospital, o avental branco identifica a pessoa como enfermeiro ou médico. Mas se em outro momento uma pessoa aparece diante de nós com o avental cheio de sangue, sabemos que se trata do açougueiro. É importante que o açougueiro não tente ser médico. Um avental identifica a pessoa e compromete a pessoa. Carregar o nome de cristão é como usar um avental: ele nos identifica e também nos compromete.
6. Subsídios litúrgicos
Hinos HPD 1: 155, 191
Bibliografia
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
RIENECKER/MAIER. Lexikon zur Bibel. Witten: SCM R. Brockhaus Verlag, 2013.
SCHMAUDER, Sebastian. Zuversicht und Stärke. Holzgerlingen: Hänssler-Verlag, 2013. p. 52-61.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).