Um novo tempo
Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Isaías 43.16-21
Leituras: João 12.1-8 e Filipenses 3.4b-14
Autoria: Manoel Bernardino de Santana
Data Litúrgica: 5º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 13/03/2016
1. Introdução
O livro de Isaías, segundo o biblista argentino Severino Croatto, reúne tradições proféticas de quase quatro séculos: desde a pregação do próprio profeta, iniciada em torno de 740 a.C., até a redação final do texto em torno do ano 400. Nesse longo período, o povo de Judá experimentou a dominação assíria, depois caldeia e finalmente a persa, diferentes entre si, mas todas elas imperialistas. Nessa época, Judá experimentou o fim da monarquia, o exílio babilônico e as tentativas de restauração do período persa.
A mensagem de Isaías 43 fala da vinda do Senhor para a salvação de seu povo. O texto realça os sinais dessa vinda, perceptíveis na transformação de pessoas e de seu meio ambiente. Outro aspecto importante é o “caminho” aberto por Deus para conduzir seu povo libertado até Ele. O texto de João (12.1-8) apresenta Jesus como aquele que foi ungido para o cumprimento de uma missão. A ênfase de Isaías é a preparação do caminho que servirá para a vinda do Senhor (Ml 3.1). Esse aspecto do consolo/ânimo diante do sofrimento, baseado na expectativa da vinda salvífica de Deus, está presente em Isaías 43.16-21. O texto de João (12.1-8) reflete a necessidade de preparação para a chegada de um novo tempo. Paulo aos Filipenses (3.4b-14) reflete a necessidade que temos de confiar na direção de Deus para a execução de nossos projetos para a vida.
Nosso texto está inserido no período da Quaresma, tempo de preparação para a vida com Deus de forma intensiva, por meio de reflexão e desenvolvimento de uma vida de fé. É época própria para a prática do jejum, do arrependimento e do estudo bíblico, que apontam para a ação de Deus por meio da história de seu povo.
2. Exegese
O livro de Isaías é uma coletânea de textos produzidos durante um longo período da história do povo de Judá. O livro é dividido em três partes:
1) 1 a 39 – tempo em que viveu Isaías
2) 40 a 55 – destruição de Judá e exílio
3) 56 a 66 – restauração sob os persas
A mensagem do Dêutero-Isaías é anônima. Não sabemos o nome do autor nem onde exerceu sua atividade. Pode ser que seja na Babilônia. Seu discurso caracteriza-se por uma elevada emotividade e uma retórica transbordante (G. von Rad). Nele pode-se reconhecer nitidamente o novo momento histórico em que Israel está para ingressar. E o profeta prepara-se para explicar como isso sucederá. Essa percepção “do novo” é um traço característico dos profetas do Senhor. Trata-se da época em que apareceu Ciro, o persa, que é citado nominalmente na profecia. Suas campanhas vitoriosas sacudiram todo o mundo de então e despertaram a atenção dos exilados na Babilônia. A pregação do Dêutero-Isaías está em correlação estreita com essa avalanche de acontecimentos que transformaram a história universal daquela época.
O profeta retoma três grandes tradições da constituição do povo hebreu: as tradições relativas ao êxodo, a Davi e a Sião. No entanto, a tradição relativa ao êxodo está em primeiro lugar. Esse acontecimento, como evento salvífico que Javé proporcionou a seu povo, a libertação do cativeiro egípcio, ocupa tamanha centralidade que o profeta só consegue imaginar o evento futuro que Deus propiciará a Israel como um novo êxodo. O antigo êxodo é, sem dúvida, um acontecimento fundante, paradigmático como experiência libertadora que servirá como modelo para os confl itos de povos e pessoas oprimidas em todos os tempos.
O Dêutero-Isaías utiliza com predileção especial o gênero literário do oráculo de audição, que é uma forma de discurso cúltico, através do qual o auxílio divino era assegurado à pessoa que vinha orar. Por isso são comuns as palavras: “não temas”, “eu te resgatarei, eu te fortifico, venho em tua ajuda, estou contigo, tu me pertences” (Is 41.10,13; 43.1,5; 44.2).
O texto de Isaías 43.16-21 pertence à segunda parte da profecia, o que o situa claramente como um texto exílico, pois é dirigido aos “exilados” de Sião. Seu objetivo é convencer judeus exilados para que voltem a Jerusalém. A certa altura do exílio, os judeus receberam a permissão de Ciro para voltar à sua terra natal. Hoje há bons motivos para acreditar que eles não estavam interessados no retorno, pois sentiam-se plenamente integrados na sociedade babilônica. Por outro lado, Judá tinha sido reduzido a um pequeno território cercado de vizinhos hostis. A área disponível para cultivo era árida e pouco apropriada para a produção agrícola. O pouco que se produzia estava sujeito a pesados tributos, cobrados pela administração persa. Então por que voltar?
Apesar das condições desfavoráveis, havia um grupo empenhado na edificação da nova comunidade judaica em Jerusalém. Isaías 43.16 expressa o cuidado de Deus com seu povo, baseado na crença da “vinda de Deus”. A profecia é introduzida com uma declaração solene com a fórmula oracular: “assim diz o Senhor”. O texto fala dos atos poderosos de Deus no passado para frisar que aquele que fala é o mesmo que libertou Israel da escravidão egípcia. Naquela época, ele preparou um caminho no mar, e nas águas impetuosas, uma vereda. Ele fez sair o exército egípcio para destruí-lo. Seus guerreiros e seus cavalos caíram por terra (17) e “jamais se levantarão”. Suas vidas foram apagadas como “uma torcida”.
Os v. 18 e 19 descrevem os efeitos da presença de Deus. A exortação para esquecer as coisas antigas não é literal, pois o próprio profeta chama a atenção para elas com ênfase nos feitos de Deus por seu povo. Na verdade, esses acontecimentos antigos são maravilhosos e dignos de ser lembrados. O que se pretende aqui é dizer que, por mais que sejam eventos grandiosos, há algo de muito maior importância para o povo de Israel naquele momento, que era o fato de que Deus está para fazer “cousa nova”. Por isso a perspectiva do passado precisa dar lugar ao panorama do futuro. O passado serve como lembrança dos feitos maravilhosos de Deus e garantia de que as coisas novas se cumprirão. Essas coisas novas estão para chegar em um tempo relativamente curto: “está saindo à luz” agora. O “novo” ocorrerá rapidamente, e o povo ao qual o profeta se dirige o perceberá.
Em 43.19b-21 começa a descrição das coisas novas. A recordação do êxodo antigo levanta a expectativa de que o que vai acontecer é algo semelhante. A imagem do caminho aberto no deserto aparece sempre em conexão com a vinda do Senhor para libertar seu povo. O objetivo é “dar de beber a meu povo”. No meio está a declaração de que os animais selvagens, os chacais e as corujas honrarão o Senhor. As águas que o Senhor fará brotar por amor a seu povo também o beneficiarão. Os sons de alegria que elas produzirão como resultado é uma expressão inconsciente de louvor ao Senhor. Essas descrições são entremeadas com a descrição do retorno do exílio e referem-se a uma época ainda mais gloriosa de redenção do que a que está começando a raiar. Através de todos esses acontecimentos o Senhor alcançará o seu alvo final com o povo que ele formou para si próprio para “celebrar o seu louvor”. Foi para isso que ele chamou Israel à existência e com esse objetivo o guia por seus atos de redenção.
Fica claro que toda a ação de libertação tem seu centro em Javé. É ele que se volta para o povo, que o procura e deseja salvar. Era de se esperar que na angústia Israel clamasse ao Senhor, mas não foi isso que aconteceu. Deus, em sua misericórdia, tomou a iniciativa, graciosamente, chamando a Israel, a fim de levá-lo de volta para casa.
3. Meditação
O texto tem por característica proclamar a salvação como processo de transformação da realidade. Deus liberta o seu povo da situação de opressão e leva-o de volta para casa. Isso promove outros acontecimentos, como o florescimento do deserto, a cura de cegos, surdos, coxos e mudos, o restabelecimento da justiça. Ou seja, a salvação é para os seres humanos, mas também para toda a natureza.
A vinda de Deus coloca o povo em movimento. Os cansados e abatidos são fortalecidos com a presença de Deus. Ele liberta e revigora. Quem chega não precisa abrir caminhos. A estrada está aí, o caminho santo. No meio do deserto e protegido dos perigos, um caminho conduzirá aqueles que tiverem seus olhos e ouvidos abertos para a promessa da vinda de Deus. Só existe um caminho que leva a Deus: o caminho que ele mesmo estabeleceu.
Se existe algo de que temos plena certeza, é que não sabemos o que nos sucederá amanhã. O nosso futuro está descrito nas linhas do nosso destino, o qual só a Deus pertence e que ninguém consegue desvendar. Essa certeza turba a nossa mente e traz angústia ao nosso coração, porque nós desejamos viver de certezas. Por mais precavidos que sejamos, por mais que planejemos o nosso futuro, somente Deus é sabedor do nosso caminho. Como questiona o apóstolo Tiago: do que é construída a nossa vida? Segundo Tiago (4.14), somos como uma neblina, que aparece e logo se dissipa. Assim também será em relação ao nosso futuro, por mais planos que façamos. Se o Senhor não preparar o nosso caminho, nenhum desses planos pode ser bem-sucedido. Todos os nossos dias estão escritos sob a mão abençoadora do Senhor.
Nossos sonhos e planos são legítimos. Entretanto eles só se tornarão realidade em nossa vida se essa estiver sob a direção de Javé. Jesus ensinou-nos a permanecer nele para que a sua vontade permanecesse em nós, pois só assim nossas orações seriam atendidas pelo Pai, porque seríamos considerados seus discípulos. Podemos até não saber o que acontecerá noutro dia, mas a nossa esperança está estabelecida na promessa do Senhor, que cuidaria de cada uma das nossas necessidades. Dessa forma, vivemos pela fé e não por aquilo que temos visto. Vivemos na certeza inabalável de que todas as coisas cooperam para o nosso bem, até aquelas que não nos deixam tão felizes. Ser sábio é construir o futuro de mãos dadas com o Senhor. Por menores que sejam os nossos planos, eles se tornarão grandes se ele os abençoar. Por isso o tempo em que vivemos precisa ser um tempo de renovar esperanças, de construir atitudes diferenciadas e viver na plenitude da graça, partilhando as bênçãos e a misericórdia que o Senhor nos ensina.
Deus quer fazer de nós construtores de um novo amanhã. Toda a nossa vida move-se no tempo. Há um passado com suas gratas memórias, que nos fazem bem à lembrança, cuja acumulação de experiências constrói o nosso ser e nos edifica, e memórias ingratas, que é melhor esquecer, especialmente as memórias das nossas falhas e das falhas dos outros em relação a nós. Quanto ao passado, vivemos entre as memórias da graça e a memória das desgraças.
Nosso tempo de hoje é o resultado desse tempo de ontem, mas o tempo de hoje é uma breve passagem em direção ao tempo do amanhã com seus sonhos e seus temores, seus alvos e suas dúvidas, suas aspirações e suas inseguranças. Se não podemos fazer mais nada em relação ao passado, apesar do seu caráter imponderável e da soberania de Deus, podemos fazer algo pelo futuro: pensar, planejar, decidir, comprometer.
Podemos e devemos querer um tempo qualitativamente diferente, abençoado e abençoador, em nossas respostas à voz de Deus em nossas vidas e nos relacionamentos e empreendimentos de que participarmos, com novos objetivos, novos valores, novas prioridades.
Para os servos do Senhor, as coisas velhas podem sempre se tornar coisas novas. Como cidadãos do reino do céu, nossa presença no reino pode contribuir para um mundo novo, não violento, nem injusto, nem desonesto, nem corrupto, nem hipócrita, nem opressor, sem discriminação. Podemos ser mais “sal” e mais “luz” para o mundo em que vivemos.
Entre a avaliação do passado e a construção do futuro passamos pela consciência da finitude e do pecado, pela necessidade do arrependimento, pela busca da santificação.
Mas como construir o “novo” em uma igreja tão marcada pelo velho (o divisionismo, o isolacionismo, o caciquismo, o sectarismo, o moralismo, o legalismo, os cismas, as heresias)? Um mundo novo e sadio a partir de uma igreja enferma? E quando falo igreja, não me quero prender à igreja como determinado grupo confessional, mas à igreja no mundo.
Entre a pessoa nova e o mundo novo há a igreja nova, a família nova, a comunidade nova, o trabalho novo, o país novo, os hábitos novos e, tantas vezes, pessoas novas ou relacionamentos renovados (feitos novos outra vez). Deus está trazendo à luz “cousa nova”. Não sejamos meros espectadores do mundo por vir, mas em Cristo construtores de um novo amanhã.
4. Imagens para a prédica
Trago como imagens dois textos que propõem um novo mundo, uma nova sociedade, totalmente contrária ao conceito de mundo novo proposto por Deus.
O primeiro, Admirável Mundo Novo (Brave New World na versão original em língua inglesa), é um livro escrito por Aldous Huxley, publicado em 1932, que narra um hipotético futuro, em que as pessoas são pré-condicionadas biologicamente e psicologicamente a viver em harmonia com as leis e regras sociais dentro de uma sociedade organizada por castas. A sociedade desse “futuro” criado por Huxley não possui a ética religiosa e valores morais que regem a sociedade atual. Qualquer dúvida e insegurança dos cidadãos eram dissipadas com o consumo da droga, sem efeitos colaterais aparentes, chamada de “soma”. As crianças têm educação sexual desde os mais tenros anos de vida. O conceito de família também não existe. Aqui o tempo das guerras já terminou. O ser humano tornou-se totalmente realista. Sua mente agora é incapaz de ir além dos limites da realidade dominante. Sua razão é uma réplica das operações programadas pela organização dominante. Já não se sabe o que é rebeldia. A pessoa é totalmente funcional. Sua consciência sofreu uma radical transformação, e ela identifica o fato de ser controlada com a liberdade em si mesma.
Pode-se também aqui lembrar a sociedade de Michel Foucault (Vigiar e Punir), em que o patrulhamento é constante e mórbido. É a sociedade do panóptico, do sujeito que perdeu toda a privacidade em nome de uma ideologia de dominação e submissão.
O novo mundo que Javé nos proporciona nada tem a ver com esse mundo da sociedade tecnocrata. É um mundo de pessoas livres. Ele nos leva à liberdade plena na pessoa de Jesus Cristo. Sua salvação é oferecida graciosamente para a vida em seu reino. O novo é inaugurado em plenitude de liberdade. Não podemos novamente nos submeter a um jugo de escravidão. Foi para a liberdade “que Cristo nos libertou” (Gl 5.1).
5. Subsídios litúrgicos
A liturgia no tempo da Quaresma deve ser plena de convites para a libertação. É tempo de reflexão, oração, confissão e arrependimento. Tempo de mudança de vida e de preparação para a vinda do Senhor. Por isso convidamos para o exercício da contrição, do jejum e da meditação. Um novo tempo avizinha-se, portanto é preciso esperá-lo com humildade e confi ança no Deus que nos promete pleno acesso a esse novo tempo.
Oração
Deus, nosso Senhor! Em teu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, tu nos fizeste teus filhos. Agora ouvimos teu chamado e reunimo-nos aqui para juntos te louvar, ouvir tua Palavra, clamar a ti e colocar em tuas mãos o que nos aflige e o que necessitamos. Fica aqui entre nós e ensina-nos, Senhor, para que todas as coisas que nos amedrontam e desanimam, toda a soberba e insolência, também toda a nossa descrença e nossas crendices se tornem pequenas, para que tu possas mostrar-nos como és grande e bondoso, para que voltemos nossos corações também aos outros, para que possamos compreender uns aos outros e assim nos ajudar um pouco, para que essa seja uma hora de luz, na qual vislumbramos o céu aberto e assim um pouco de claridade neste mundo de trevas.
Pois as coisas antigas já passaram, eis que se fizeram novas. Esta é a verdade também para nós: certamente tu és nosso Salvador também em Jesus Cristo. Isso, porém, somente tu nos podes dizer e mostrar. Pois dize e mostra-nos, Senhor – a nós e a todos os que hoje oram conosco. Eles também oram por nós. Assim também oramos por eles. Ouve-nos, Senhor! Amém.
(Karl Barth. Senhor! Ouve nossa oração – Editora Sinodal).
Bibliografia
RIDDERBOS, J. Isaías: introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1986.
VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Aste/Targumin, 2006.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).