Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Isaías 45.19-25
Leituras: Mateurs 10.26b-33 e Filipenses 2.12-13
Autoria: Roger Marcel Wanke
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/2106
1. Introdução
O culto para o Dia da Reforma tem sido em muitas comunidades da IECLB um momento especial de aprofundamento confessional e catequético. Infelizmente, não se pode mais pressupor que todo membro da IECLB saiba as origens de sua igreja ou que tenha alguma ideia de quem foi Lutero e, não por último, que saiba o que significou a Reforma. Também é fato, que não se pode mais pressupor, que todos saibam o que significa a confessionalidade luterana e quais são os seus pontos teológicos principais. Nesse sentido, algumas paróquias e comunidades têm planejado constantemente palestras, seminários ou celebrações, especialmente durante o mês de outubro, e dessa forma aproveitam para reatualizar os principais pontos de nossa história e nossa confissão.
Também é importante ressaltar que estamos às portas do jubileu de 500 anos da Reforma. Daqui a um ano, em 2017, em igrejas luteranas de todo o mundo acontecerão encontros, celebrações, congressos para discutir, partilhar e promover reflexões acerca de Lutero, do movimento da Reforma e de sua relevância para os dias de hoje. Nesse sentido, o culto previsto para este ano pode ser uma grande oportunidade, se ainda não foi feito algo nessa direção, de iniciar esse processo de celebração e reflexão no contexto da comunidade local.
O texto previsto para a pregação do culto da Reforma desse ano encontra-se no livro profético de Isaías 45.19-25. Como veremos a seguir, esse texto faz-nos silenciar diante do Senhor Deus, o único Deus e Criador de tudo o que existe, e diante do único Salvador e Redentor de toda a terra. O texto aponta para a exclusividade do Senhor tanto na vida concreta do povo de Israel, que no momento está se preparando para retornar do exílio babilônico, como também diante do mundo politeísta da época. Tal exclusividade é tema central da Reforma e da confessionalidade luterana [cf. o primeiro artigo da Confissão de Augsburgo e a interpretação do primeiro mandamento no Catecismo Maior de Lutero].
Nessa direção também apontam os textos previstos como leituras bíblicas. O primeiro, de Mateus 10.26b-33, está no contexto do grande discurso de Jesus acerca do ministério. Jesus chama seus discípulos e capacita-os por meio de um discurso no qual os instrui, admoesta, estimula, no qual aborda também as dificuldades e, por fim, as recompensas. É no contexto dos estímulos que o texto da leitura se encontra. Ele aponta para a confissão de fé. Ao serem enviados, os discípulos devem confessar o nome de Jesus Cristo diante das pessoas. Eles não devem temer [expressão que aparece três vezes na perícope]. Já o segundo, de Filipenses 2.12-13, está no contexto das exortações de Paulo a respeito do amor fraternal e da humildade. Para isso, Paulo faz uso do famoso hino cristológico (Fp 2.5-11). Os v. 12-13 são consequência do exemplo de Jesus Cristo, que foi obediente até o fim, até a morte de cruz. A obediência e a submissão a Deus, marcadas pelo joelho dobrado (v. 10), caracterizam a vida daquele que confessa que Jesus Cristo é o Senhor (v. 11). Só por isso, para Paulo, é possível desenvolver a salvação (v. 13). A relação, portanto, com a perícope prevista para a pregação está no ponto de entrega e submissão diante do único e verdadeiro Deus, que por meio e por causa de Cristo é Criador e Salvador. Essa centralidade é tarefa da igreja anunciar. Esse foi o grande grito de liberdade dado por Lutero há quase 500 anos.
A perícope indicada não aparece em nenhuma contribuição anterior de Proclamar Libertação, com exceção de uma análise de Is 45.22-25 da colega Elaine Neuenfeldt no volume 28, prevista para o 1º Domingo após o Natal. Também não a encontramos prevista para os cultos do Dia da Reforma de anos anteriores.
2. Exegese
Isaías 45.19-25 encontra-se dentro de um dos capítulos mais inusitados e profundos do Dêutero-Isaías. Nos v. 1-7, o profeta anuncia a palavra do Senhor, que, num primeiro momento, dirige-se ao rei persa Ciro. Deus mesmo escolheu Ciro como seu ungido e pastor, porque ele é o Senhor sobre tudo e todos e faz tudo por causa de seu povo. Ciro será instrumento de Deus para que a comunidade exílica da Babilônia possa retornar a Jerusalém. Nos v. 8-18, o profeta anuncia o poder soberano de Deus. Alguns, pertencentes à comunidade exilada, não conseguem perceber o agir de Deus na história da humanidade e questionam o fato de Deus usar Ciro, um rei estrangeiro e pagão, para libertar o seu povo e reconstruir Jerusalém bem como o templo. Centrais nesse capítulo são os v. 14-15 ao mostrar que da boca de nações estrangeiras será confessado por meio de uma súplica e doxologia: “Só contigo está Deus, e não há outro que seja Deus. Verdadeiramente, tu és um Deus que se esconde [abscôndito]1, ó Deus de Israel, ó Salvador”. Por meio da libertação de Israel da Babilônia, as nações conhecerão o Senhor, o Deus de Israel, e a partir desse testemunho reconhecerão e confessarão que o Senhor é o único Deus e Salvador. Chamam a atenção na leitura os seguintes aspectos, que podem ser úteis para a interpretação e pregação da perícope:
a) A palavra terra aparece em vários momentos no capítulo (cf. v. 12, 18, 19, 22). Ela possui aqui um duplo sentido. Uma vez, refere-se à terra como parte da criação de Deus. E a outra possibilidade se refere à Terra Prometida, na qual Deus agiu por meio de sua palavra.
b) A expressão e não há outro é mais do que central nesse texto (cf. v. 5, 6, 14, 18, 21, 22). Ela é o fio condutor de toda a argumentação de Deus no capítulo 45. Ela é, na verdade, o aspecto teológico nevrálgico de toda a teologia de Dêutero-Isaías. Ela pode ser considerada a expressão máxima do monoteísmo judaico, pois reflete a sua principal confi ssão de fé (cf. Dt 6.4).
c) Na mesma direção, a expressão Eu sou o Senhor é fundamental aqui (cf. v. 3, 5, 6, 18). Ela remonta à autorrevelação de Deus em Êxodo 3.14. Deus revela-se à comunidade exilada da mesma forma como se revelou a Moisés. As mesmas objeções que tanto Moisés como o povo escravizado no Egito apresentaram a Deus naquela ocasião, duvidando do agir redentor no contexto do Êxodo, parecem se repetir, pelo menos na sua intenção, aqui e agora, no contexto do novo êxodo. Deus tem que se revelar com o seu nome Eu sou o Senhor para que os exilados lembrem diante de qual Deus eles estão.
d) A perícope deixa claro que criação e redenção são dois temas inseparáveis e suas implicações são mais abrangentes do que temos condições de abarcar aqui neste auxílio homilético. Vale a pena, no entanto, refl etir sobre isso em outro momento.
Diferentemente das disputas contra os falsos deuses em Isaías 40.18-26; 41.21-29, na perícope em análise o Senhor entra em litígio com o próprio povo de Israel disperso, a comunidade exilada. As razões disso serão abordadas mais adiante. Quanto à delimitação da perícope, não há consenso entre os comentaristas, muito menos nas versões de Bíblias atuais. O v. 18, embora continue falando acerca do Deus Criador, tema dos v. 8-17, inicia o dito profético de Deus com a fórmula de mensageiro (Porque assim diz o Senhor). Por isso ele precisa ser incluído aqui nesta análise. Sua função é interligar a argumentação das duas perícopes. Ao mesmo tempo que ele conclui a perícope anterior, ele também inicia a nova perícope. Ou seja, Israel não se precisa envergonhar nem temer diante dos seguidores de falsos deuses, muito menos preocupar-se com o fato de Ciro ser um instrumento de Deus em favor de Israel, porque o Senhor vai salvá-los com salvação eterna (v. 17). A razão da salvação é porque Deus é o Criador de toda a terra (v. 18). A unidade interna na perícope é marcada pela moldura existente com as expressões descendentes de Jacó (v. 19) e descendentes de Israel (v. 25). Já o centro da perícope está no v. 22. Interessante é perceber que ali Deus se dirige a todos os confins da terra. Não se tem certeza a quem essa expressão se refere, se à comunidade exílica dispersa entre as nações ou às nações pagãs, a quem Deus sempre quis alcançar por meio do testemunho de Israel. Aqui se seguirá a primeira opção. A interpretação abaixo elucidará esse aspecto. De qualquer forma, a teologia do Dêutero-Isaías vai deixar claro que o foco do texto são as nações (cf. v. 14-15), mesmo que aqui a disputa seja com a comunidade exílica, que está obstinada diante do agir de Deus. O cap. 46, porém, inicia um novo tema, o anúncio da queda da Babilônia (cf. 46.1-2; 47.1-15). No entanto, os discursos que seguem continuam dirigidos a Israel, que permanece obstinado, resistindo ao que o Senhor planejou em favor deles (cf. Is 46.3-13; 48.1-9). No final, o próprio Senhor faz um apelo fi nal para que os exilados fujam da Babilônia; caso contrário, seriam destruídos com ela (Is 48.20-22).
A perícope apresenta uma estrutura clara e coesa. Considerando a unidade entre os v. 18-19, ela pode ser dividida em quatro partes:
a) Na disputa com seu povo o Senhor revela-se como Criador (v. 18-19) Como dito acima, o v. 18 deve ser incluído aqui para que a argumentação do dito de Javé seja compreendida corretamente. Ele contém a descrição e autorrevelação do sujeito da perícope. Já o v. 19 expressa a maneira da revelação de Deus. Quem está falando aqui não é um deus qualquer. Três características são fundamentais no v. 18 para compreender de que Deus se está falando. Deus mesmo se apresenta em primeiro lugar como o Senhor. Essa designação repete-se no final do verso, remontando à fórmula de revelação de Deus em Êxodo 3.14, ao chamar Moisés para libertar os filhos de Israel da escravidão do Egito: Eu sou o Senhor. Em segundo lugar, esse Senhor é também descrito como o Criador do céu e da terra (cf. Gn 1). Sua criação não deve ser marcada pelo caos (cf. o termo usado tohu, que aparece também em Gn 1.2), mas sim ser habitada. O mundo existe por causa de seus habitantes. Inclusive a ligação interna entre os v. 18-19 encontra-se exatamente na relação. Por fim, a expressão não há outro aponta para a sua exclusividade, ou seja, ele é descrito como único Deus. Essa é uma expressão monoteísta, que caracteriza a fé de Israel, principalmente no período pós-exílico. Na disputa com falsos deuses, nesse caso a partir do contexto babilônico, Javé deixa claro que ao lado dele não existe outro deus. Ele não tem concorrente. Isso fica ainda mais evidente em Isaías 46. No v. 19, o que chama a atenção é o fato de Deus agora se apresentar como aquele que anuncia a sua palavra. Sua revelação não aconteceu de forma oculta. Pelo contrário, Deus sempre falou a verdade e sempre proclamou o que é direito do povo de Israel, aqui descrito como a descendência de Jacó. Deus não disse em vão aos descendentes de Jacó que deveriam buscá-lo em vão (cf. Am 5.6,14; Jr 29.11-14). Diante disso, Deus faz três convites a seu povo disperso (cf. v. 20, 21, 22). No contexto de litígio, esses convites de Deus podem ser interpretados como chamado a comparecer no tribunal, apresentar as provas diante do juiz e ouvir a sentença.
b) Na disputa com seu povo, o Senhor convida os exilados a reconhecer que não há outro Deus além dele (v. 20-21)
O v. 20 inicia com três verbos no imperativo. A ordem é uma convocação para congregar, vir e achegar-se diante do Senhor. Problemático aqui é compreender a quem se dirige o convite do Senhor. Em tese, a partir de Croatto, duas são as possibilidades: uma parte do fato de que a expressão hebraica sobreviventes das nações são provavelmente aqueles que sobreviveram aos ataques bélicos de Ciro e que seriam povos dispersos de todas as nações. A outra, porém, procura compreender a expressão referindo-se à comunidade exilada, os dispersos de Israel, levando em conta, acima de tudo, o contexto da perícope e do Dêutero-Isaías. Na pesquisa, a opinião se divide. Para Croatto, o v. 21 seria a chave hermenêutica para optar pela segunda possibilidade de interpretação, que também aqui será seguida, pois aponta para uma espécie de “memória histórica” [cf. Croatto, p. 147]. O convite de Deus seria dirigido aos dispersos de Israel, que estão vivendo como fugitivos entre as nações. Nele encontramos o segundo convite de Deus, que pede para que os exilados apresentem as provas, declarem as razões, que entre eles se levantam para atestar que os deuses teriam alguma força ou até mesmo a capacidade de salvar. No entanto, Deus mesmo, por meio de perguntas retóricas, desmonta todo e qualquer argumento que eles teriam, pois desde a antiguidade o Senhor já havia dito que os deuses não têm poder para salvar, pois não passam de uma farsa. O Senhor já havia dito ao povo de Israel, por meio de Moisés, por meio de outros profetas [período pré-exílico – cf. Elias, Amós, Oseias, Miqueias], que não há outro Deus justo e salvador além do Senhor. Somente os exilados saberiam desse argumento de Deus, apresentado em suas perguntas retóricas. Por isso somente eles poderiam ser interpretados aqui como os destinatários dessa convocação litigiosa de Deus. Isso se une ao argumento apresentado por Deus no v. 19, que não se revelou à descendência de Jacó em segredo. Deus já havia falado que a idolatria era falsa e que eles deveriam ter buscado o Senhor e não os falsos deuses. O Senhor deixa claro mais uma vez que não há outro Deus. Somente ele, ninguém além dele, é Deus justo e Salvador.
c) Na disputa com seu povo, o Senhor convida os exilados a voltar-se para ele e ser salvos (v. 22-23)
Já que não há outro deus capaz de salvar, porque todos eles não passam de falsos deuses e ídolos criados à imagem do ser humano (cf. Sl 115), Deus dirige-se a seu povo no v. 22 com mais um convite. É o terceiro, dirigido a seu povo disperso. Agora, Deus chama-os de limite da terra ou extremo da terra. Como dito acima, há muitos que interpretam essa expressão como menção às nações pagãs. Mas, no contexto do Dêutero-Isaías, principalmente a partir de Is 43.6, só é possível entender essa expressão como referência ao povo de Israel exilado, que está disperso em um âmbito maior, que é descrito como extremidade da terra, para destacar assim a distância e o alcance da diáspora. Deus convida, portanto, esse povo a voltar-se para ele e assim experimentar salvação. O verbo voltar-se aqui significa dirigir-se à face de Deus. No hebraico, a palavra face tem origem no verbo voltar-se, e ambos expressam a possibilidade de experimentar a graça de Deus. Quando Deus volta a sua face ao ser humano, esse é abençoado e salvo por Deus e pode viver em sua presença (cf. Nm 6.24-27). Quando o ser humano volta a sua face a Deus, então ele expressa o desejo de viver em sua presença e de relacionar-se com Deus. No contexto da idolatria, essa palavra ganha ainda mais peso. Os exilados não devem cair novamente no erro, como foi no passado da história de Israel, de voltar a sua face aos ídolos e falsos deuses. Deus convida-os a largar os falsos deuses, que no contexto do exílio eram uma grande tentação (cf. Js 24). O povo deve voltar-se a Deus, pois somente ele é o Senhor e não há outro deus que salve. O Senhor é o único Salvador. O convite de Deus é reforçado, uma vez, pela certeza dita anteriormente no v. 17: “Israel, porém, será salvo pelo Senhor com salvação eterna”, mas também por sua palavra reafirmada no v. 23. Deus jurou por ele mesmo que sua palavra é verdadeira. De sua boca só sai o que é justo (tsedaqa). Os exilados, chamados aqui de limites da terra, podem voltar-se a Deus e ser salvos, porque a palavra de Deus não volta atrás, não muda (shub). A fidelidade de Deus permanece. O Senhor é um Deus de palavra. Como consequência disso, a comunidade exilada poderá ter certeza de que não permanecerá na Babilônia, mas voltará a Jerusalém e diante dessa obra redentora de Deus todo joelho se dobrará e toda língua confessará o Senhor como o único Senhor e único Salvador. Essa frase aqui ainda tem um signifi cado mais voltado a Israel. O Novo Testamento amplia essa dimensão a partir da obra redentora de Jesus Cristo (Fp 2.5-11).
d) Na disputa com seu povo, o Senhor dá-lhes a certeza de sua presença e justificação (v. 24-25)
O texto passa aqui a ter uma dimensão missionária. Por isso, mesmo que a perícope seja interpretada como palavra de Deus à comunidade exílica, que aqui é descrita com termos relacionados às nações, como os fugitivos das nações ou limites da terra, o que Deus vai fazer com Israel terá repercussão até nas outras nações. Isso já estava claro na perícope anterior [cf. v. 14-15]. Por meio de Israel a salvação chegará até elas. Isso é bem interessante, se levarmos em conta os textos de Gn 12.1-4; Zc 8.13; Mt 28.18-20; At 1.8. Deus diz no v. 24: De mim se dirá. O que o Senhor fez não ficará oculto, assim como sua palavra não foi revelada em segredo ou nas trevas (v. 19), mas será notória no mundo inteiro. No entanto, isso será um passo seguinte na revelação de Deus. O que os v. 24-25 querem destacar é que, no contexto da comunidade exílica do povo de Israel, se dirá de Deus que somente ele é justo e forte. Somente nele se encontram justiça e força. Justiça e força aqui não são categorias sociais, como muitos interpretam, mas expressam a fidelidade de Deus para com seu povo. Que no Senhor há justiça, a partir do hebraico, significa que ele não rói a corda, que ele é fiel à comunidade que lhe pertence [em alemão: gemeinschaftstreu]. Sua força aponta para o seu poder tanto de libertar o povo do exílio, de conduzi-lo novamente à Terra Prometida, como também de usar Ciro como seu pastor e ungido e assim cumprir o seu propósito salvífico. O v. 24 enfatiza, inclusive, que aqueles que se irritaram com o Senhor por ter ele escolhido Ciro como seu libertador e não alguém como Moisés do passado virão a Deus. Eles, num primeiro momento, serão envergonhados de ter duvidado do agir salvífico de Deus. Mas no Senhor, diz o v. 25, os mesmos serão justificados não por causa de sua justiça, mas da justiça do Senhor. Deus é missionário, em primeiro lugar, para seu próprio povo. A partir de seu povo, Deus quer fazer sua obra redentora ser conhecida em todo o mundo, entre todas as nações. Por isso o exílio não foi apenas sinal de juízo, mas também da graça de Deus.
3. Meditação
A meditação deste texto parte do escopo exegético, que aponta para a disputa do Senhor com seu povo a respeito dos falsos deuses. Assim como a comunidade exílica, que prestes a ser liberta da Babilônia, precisa ser convencida do agir libertador e salvador de Deus na história e, dessa forma, ser salva, assim também o povo de Deus de todos os tempos e épocas precisa ser convencido por Deus de sua soberania, exclusividade e intervenção na história. O perigo de esquecer Deus, de não reconhecer o seu agir e a influência do meio em que vivemos podem cegar-nos para o que Deus tem preparado para seu povo. Como consequência, nossa missão como povo de Deus na terra fi cará comprometida. O Senhor quer evitar que a comunidade exilada repita os mesmos erros, que seus pais já fizeram no passado e que foi a causa do exílio babilônico. Por isso ele os convoca para uma disputa, na qual deixa claro mais uma vez a seu povo quem ele é e o que ele é capaz de fazer em favor de seu povo e por extensão às nações de toda a terra, que ele criou.
O texto de Isaías está inserido no contexto do cativeiro babilônico. Toda a mensagem do Dêutero-Isaías parte da promessa de salvação de Deus. É o mesmo Deus dos pais, de Abraão, Isaque e Jacó, que se revelou como o Eu sou (cf. Êx 3.1-20), para libertar Israel da escravidão no Egito e que se manifesta novamente, agora na Babilônia, como o Deus Criador e Salvador, o único Senhor e Deus, que prometeu o novo êxodo. Por isso a comunidade exilada não precisa temer, mas apenas crer no agir libertador desse Senhor. O Dêutero-Isaías como um todo e a perícope analisada são um chamado à liberdade diante do único Senhor e Salvador.
O tema “cativeiro babilônico” também é conhecido no âmbito da Reforma. Em outubro de 1520, Lutero escreve um de seus principais escritos reformatórios, intitulado por ele de “O cativeiro babilônico da Igreja”2. Esse seu escrito é uma clara disputa teológica sobre a compreensão dos sacramentos. Nele, Lutero aponta, da mesma forma como o Dêutero-Isaías, para a obra salvífi ca de Deus. Lutero vai definir o sacramento a partir da promissio e da fides. Lutero afirma, com outras palavras, a exclusividade de Deus e de sua obra redentora em Jesus Cristo. Lutero põe na mesa do debate, para discussão na igreja de sua época, os pilares da compreensão da salvação. Tanto esse escrito de Lutero como toda a sua teologia são um chamado à liberdade diante do único Senhor e Salvador.
De que forma nós como IECLB não vivemos em um tipo de “cativeiro babilônico” atualmente? Quero deixar aqui, a partir da análise exegética da perícope indicada para a pregação, alguns pontos para reflexão:
a) Até que ponto nós afi rmamos a exclusividade de Jesus Cristo em nosso envolvimento no diálogo interreligioso? Será que não a temos negado para não ser tachados de politicamente incorretos? O que Lutero nos pode ensinar sobre isso? Na atual disputa religiosa, ou se for preferível falar de um diálogo interreligioso, o texto de Isaías 45.19-25 não hesita em afirmar: não há outro além de mim.
b) Até que ponto a discussão sobre a teoria de gênero promovida em nosso país e em nossa igreja não abre mão rápido demais do Deus Criador? A antropologia de Lutero, fundamentada na antropologia de origem judaico-cristã, é completamente atingida. Onde o ser humano não é mais visto como Deus o criou [Gn 1.26-27], ele se torna uma aberração histórico-social. Por isso não é à toa o que Paulo categoricamente afirma ao escrever Romanos 1.18-32. Quando a teologia não está clara, a antropologia é deturpada.
c) Até que ponto nossa proclamação do evangelho e nossa visão missionária partem da realidade da exclusividade de Deus em Jesus Cristo e apontam para a mesma? De que forma somos testemunhas do agir e da salvação de Deus em nosso país? Que diferença faz a justificação em nossa vida, em nossas comunidades? Em Isaías 45.18-25, Deus tem que chamar o seu povo para uma conversa séria, pois ele se havia esquecido da base de sua confessionalidade. Que isso não aconteça conosco! A IECLB, a partir do que Deus fez em sua história, deve continuar em sua missão de anunciar que salvação só existe diante do único Senhor e Salvador, Jesus Cristo.
Sugestão homilética:
Falar da exclusividade de Deus como único Senhor e Salvador e sua confissão neste mundo é um dos fundamentos da Reforma Luterana. A prédica deve apontar para essa centralidade na pessoa de Jesus Cristo ou como Lutero formula: solus Christus.
Tema da pregação: Solus Christus – A exclusividade de Jesus Cristo como fundamento da Reforma
1.Somente Jesus Cristo revela quem Deus é
Deus é o Criador de toda a humanidade em Jesus Cristo
Deus é o Senhor de toda a humanidade em Jesus Cristo
Não há outro Senhor em quem devemos crer
2. Somente Jesus Cristo é o Salvador
Deus intervém na história da humanidade em Jesus Cristo
Deus é Salvador em Jesus Cristo
Não há outro Senhor por meio de quem somos salvos
3. Somente Jesus Cristo deve ser confessado
Deus é justiça e força em Jesus Cristo
Deus nos justifica em Jesus Cristo
Não há outro Senhor a quem devemos confessar e anunciar.
4. Imagens para a prédica
Um dos quadros mais famosos do pintor da Reforma Lucas Cranach é aquele que se encontra no retábulo do altar da igreja de Wittenberg, na qual Lutero, durante muitos anos, pregava semanalmente. Nesse quadro, pode-se ver Lutero, à direita, pregando a partir do púlpito, com sua mão esquerda sobre a Escritura e sua mão direita apontada para o centro da imagem, onde se vê o Cristo crucificado. Ao lado esquerdo, pode-se ver a comunidade reunida em culto para ouvir essa palavra. Tanto Lutero como a comunidade reúnem-se como igreja a partir da centralidade de Jesus Cristo, que de forma interessante é pintado por Cranach como o Cristo crucificado, mas com seus lençóis em movimento, apontando para o Cristo ressurreto.
Esse quadro ilustra muito bem o conteúdo apontado pelo Dêutero-Isaías em nossa perícope. O mesmo pode ser encontrado hoje no Google imagem e pode ser projetado na parede da igreja, seja desde o início do culto ou apenas durante o tempo da prédica. Os seguintes aspectos podem ser comparados e abordados na pregação:
a) A centralidade de Jesus Cristo no quadro aponta para a centralidade e exclusividade do único Deus, diante do qual não há outro que deve ser crido e confessado. O solus Christus, um dos pilares da Reforma, é claramente apontado no quadro de Cranach.
b) O papel da pregação da igreja é testemunhar e anunciar esse Cristo. Quem confessa a Jesus Cristo como Senhor e Salvador confessa esse Deus que se revelou e falou sua palavra, não de forma oculta, nem em vão, mas impactante e decisiva em toda a terra que ele criou para ser habitada.
c) Em Isaías 45.24, Deus mesmo diz que dele será testemunhado, que tão somente no Senhor há justiça e força. Somente em Jesus Cristo há justiça, pois ele é o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, que justifica por seu sangue o pecador. Somente em Jesus Cristo há força, pois ele é o Cristo ressurreto. Seu poder manifesta-se na fraqueza e no escândalo da cruz e na vitória sobre a morte por meio de sua ressurreição.
d) Na imagem da cruz pintada por Cranach, fica evidente que a pregação de Lutero aponta para o Deus Salvador e Criador; Salvador por apontar para a morte de Jesus Cristo e Criador por apontar para a sua ressurreição, primícia da nova criação.
e) Em Isaías 45.20, encontramos o convite de Deus para o seu povo: “Congregai-vos, vinde, achegai-vos…”. No quadro, isso é caracterizado com a comunidade reunida em culto. Essa comunidade vive sempre da certeza de sua salvação em Jesus Cristo e diante de sua tarefa de anunciar no mundo em que vive a exclusividade de Jesus Cristo, pois ela pode existir e agir no mundo a partir da esperança do agir do próprio Senhor na história da humanidade: “Diante de mim se dobrará todo joelho, e jurará toda língua” (v. 23).
f) Diante da cruz de Jesus Cristo e do anúncio da palavra de Deus não há espaço para outros deuses.
5. Subsídios litúrgicos
O culto da Reforma, além de festivo, pode ter um caráter didático e confessional, como dito acima. Ele não deve concentrar-se apenas em um resgate meramente histórico, mas apontar para a identidade confessional da igreja, que leva em seu nome o fato de ser de confissão luterana. Atualizar os pilares e bases confessionais da Reforma é tarefa constante da igreja, principalmente se ela desempenha bem o seu papel missionário. Ao alcançar pessoas novas para dentro de suas fileiras, as mesmas devem ser acompanhadas não apenas em suas necessidades básicas, mas também em sua vida de fé. Por isso a prédica deveria ter esse caráter didático e contextual. Os participantes do culto deveriam sair da igreja nesse dia festivo sabendo o que significa crer num único Deus e Senhor, tendo a certeza de sua salvação apenas em Jesus Cristo, sendo confrontados a partir da dialética Lei e Evangelho com seu pecado, mas principalmente com a realidade do Salvador, e ser enviados de volta à sua família, à sua profissão, à sua vizinhança e ao mundo para confessar que somente nesse Deus há justiça e força.
Como é um culto da Reforma, é imprescindível cantar em comunidade hinos compostos por Lutero. Se houver um coral ou grupo de canto na comunidade, esse pode ter momentos de apresentação de hinos de Lutero ou com conteúdos que ressaltem a fé centrada em Deus.
Vejamos algumas sugestões para a liturgia do culto:
Liturgia de entrada
Para o início do culto pode ser cantado o “hino nacional” da Reforma, convidando todos a louvar a Deus: Deus é castelo forte e bom (HPD 97). No contexto da invocação trinitária, pode-se cantar o hino Clemência dá-nos, ó Senhor, e graça sempiterna (HPD 106). Esse hino possui três estrofes a partir da estrutura trinitária. Cabe ressaltar aqui o quanto Lutero insere a dimensão trinitária em seus hinos.
Liturgia da palavra
Durante as leituras bíblicas previstas podem-se intercalar as estrofes do hino de Lutero Cristãos, alegres jubilai (HPD 155). Sua base bíblica é o texto de Filipenses 2.5-11. Assim, haveria uma unidade entre o hino cantado com a comunidade e a leitura de Filipenses 2.11-12. A intercalação poderia acontecer da seguinte maneira: hino 155.1-4; leitura de Mateus 10.26-33; hino 155.5-7; leitura de Filipenses 2.12-13; hino 155.8-10. Após a prédica, seria bem interessante cantar com a comunidade o hino de Lutero Nós cremos todos num só Deus, criador do céu e da terra (HPD 88). Além de ressaltar o aspecto trinitário, que se faz presente na confissão de fé, o hino também reforça o aspecto monoteísta do texto de Isaías 45.19-25. O hino Nome sobre todo o nome é o nome do meu Cristo (HPD 264) também poderia ser aqui uma opção.
Liturgia da Ceia
Nem sempre no culto da Reforma há a celebração da Ceia do Senhor. Contudo, se ela for celebrada, retome a dimensão do Deus Salvador que Isaías aborda no texto da prédica. Ceia como anúncio do único Senhor e Salvador em Jesus Cristo.
Liturgia de despedida
No final do culto, sugere-se cantar o hino Conosco fica, fiel Jesus (HPD 89). Dessa forma, destacam-se os desafios que temos como Igreja da Reforma no mundo.
Como o Jubileu de 500 anos da Reforma está às portas, já no próximo ano, seria interessante planejar junto com o conselho paroquial e das comunidades, ou até mesmo de forma interparoquial, como esse jubileu pode ser celebrado no contexto local. Uma sugestão bem concreta seria planejar uma Semana da Reforma. Contudo, deve-se considerar que o dia 31 de outubro de 2017 cai em uma terça-feira. Portanto fica de certa forma complicado fazer uma programação mais extensa nesse dia, salvo naquelas paróquias que se localizam onde esse dia é feriado municipal. No entanto, sugere-se iniciar uma série de atividades com um pouco mais de antecedência. Procure envolver todos os grupos e ministérios da paróquia na programação. Se houver em sua comunidade ou paróquia um grupo musical de metais, lembre-se que a Obra Missionária Acordai (OMA) tem desde 2014 se proposto a fazer 500 concertos – A caminho dos 500 anos da Reforma, em preparação para o Jubileu da Reforma [Maiores informações entre em contato com a Comunhão Martim Lutero (CML), apoiadora desse projeto]. Quem sabe pode haver um desses concertos em sua localidade. Promova palestras sobre temas relevantes da Reforma, principalmente relacionados à eclesiologia. Alguns desses temas podem ser: a) As marcas da igreja conforme Lutero: a relevância da nossa comunidade luterana em nossa cidade; b) O sacerdócio geral de todos os crentes: o envolvimento de nossos membros em nossa comunidade; c) Os pilares da Reforma – fundamentos em nossa vida.
Aqui não há limites de temas para serem abordados. A riqueza da Reforma e suas implicações na atualidade são muito expressivas.
Tomo a liberdade aqui de compartilhar a estrutura de uma série de pregações para a época da Reforma que fiz no ano de 2002 na Paróquia de Palhoça, quando lá atuei no ministério pastoral. Tratamos em todas as comunidades da paróquia, com o auxílio da liderança, o tema: O que significa ser luterano? Oito subtemas foram trabalhados: 1. Significa ter somente a Bíblia como norma de fé e de vida; 2. Significa crer somente em Jesus Cristo como único Senhor e Salvador; 3. Significa viver somente pela fé; 4. Significa viver somente pela graça; 5. Significa ser um cristão inserido na comunidade; 6. Significa viver em Cristo pela fé e no próximo pelo amor; 7. Significa viver a partir da cruz de Cristo; 8. Significa ser um cristão inserido no mundo. Essa série de pregações não dispensou uma palestra introdutória a respeito do contexto histórico no qual Lutero vivia e sobre os seus principais desafios. Sinta-se à vontade para retrabalhar esses temas.
Bibliografia
CROATTO, J. Severino. Isaías. A palavra profética e sua releitura hermenêutica. Vol. II: 40-55 – A Libertação é possível. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1998.
LUTERO, Martinho. O Catecismo Maior do Dr. Martinho Lutero. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2012.
VOIGT, Gottfried. Der helle Morgenstern. Homiletische Auslegung alttestamentlicher Texte. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1961. p. 196-200.
Notas bibliográficas
1 Interessante é perceber que esse versículo faz parte da base bíblico-teológica de Lutero em seu embate com Erasmo de Roterdã em seu escrito De servo arbítrio. Esse escrito de Lutero precisa ser novamente lido e estudado em nossas comunidades. Cf. LUTERO, Martinho. Da vontade Cativa. In: Martinho Lutero. Obras selecionadas. Volume 4: Debates e Controvérsias II. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1993. p. 11-216.
2 Cf. LUTERO, Martinho. Do Cativeiro Babilônico da Igreja. In: Martinho Lutero. Obras Selecionadas, volume 2: O programa da Reforma – Escritos de 1520. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1989. p. 341-424.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).