Vocês são os caras!
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Isaías 5.1-7
Leituras: Mateus 21.33-46 e Filipenses 3.4b14
Autoria: Hans Alfred Trein
Data Litúrgica: 18º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 04/10/2020
1. Introdução
O texto de prédica recebeu três auxílios homiléticos: Proclamar Libertação VII, p. 87; XIII, p. 147; 21, p. 252. Constato que a explicitação do profeta Isaías, de quais eram as “uvas bravas” que a vinha de Deus estava produzindo, no trecho logo a seguir de Isaías 5.8ss, não recebeu nenhum auxílio homilético. Será que esse texto não aparece na ordem de textos bíblicos previstos para pregação? É de se perguntar por quê! No Brasil da escandalosa desigualdade, as críticas proféticas são brilhantemente atuais.
A vinha é uma figura muito presente no Primeiro e no Novo Testamento, imagem de beleza, fertilidade, potencial para a produção do que dá prazer na vida. Vai além da sobrevivência nua e crua. A vida sem a doçura da uva e o sabor do vinho é menos vida. A vinha de Deus é o seu dileto povo que lhe dá prazer,
cujas uvas boas são juízo e justiça. Isso é o que torna a vida mais vida.
No texto de leitura, em Mateus 21.33-46, a vinha parece significar o povo arrendado a um grupo de governantes que mata os profetas e, enfim, o próprio filho do dono da vinha, quando esses vêm colher os respectivos frutos, que lhe cabem. Esses governantes estão construindo uma sociedade sem a pedra angular principal, o que fará ruir toda a construção.
Na segunda leitura bíblica, de Filipenses 3.4b-14, o apóstolo Paulo reflete sobre a autoconfiança enganosa de fazer parte do povo eleito (da vinha) de Deus: confiar na carne, nos seus próprios méritos, ou seja, na salvação pela observância da lei. Diante de Cristo, toda essa autoconfiança, aparentemente lucro, se transforma em perda total, vira refugo! O vinho novo rompe os odres velhos! Não existe justiça própria, meritocracia! Há somente a justiça que procede de Deus mediante a fé em Cristo!
A localização desses textos mais para o final do ano eclesiástico acentua o
juízo de Deus sobre as suas vinhas de ontem e hoje (KILPP, 1995, p. 253).
2. Exegese
A estrutura do texto pode ser distinta no seguinte drama em três atos:
V. 1-2 – Anúncio e desenvolvimento da narrativa
V. 3-4 – Desafio aos ouvintes de fazerem o seu julgamento
V. 5-6 – Anúncio do próprio juízo e das consequências
V. 7 – Interpretação da narrativa (aqui está a verdadeira acusação)
Essa é uma estrutura semelhante àquela em que o profeta Natã envolve o rei Davi a fazer um julgamento de si próprio, quanto à morte de Urias (2 Samuel
12): Tu és o homem!
A estrutura pode ter ainda outros títulos:
V. 1-2 – “O meu amado” fez tudo pela vinha, mas ela deu uvas bravas.
Retrospecto sobre a ação salvífica originária de Deus.
V. 3-4 – Convite a julgar o que mais se poderia ter feito. A resposta inferida é: “Nada”!
V. 5-6 – Anúncio do que o dono vai fazer com a vinha. Deixará a vinha à sua própria sorte. Em v. 6b fica claro que é Deus o dono da vinha, pois controla as chuvas.
V. 7 – Identificação dos elementos da parábola. Vocês são os caras!
Embora um tanto estranho, pelo tema que aborda, a narrativa poderia ser uma trova numa vindima. Entretanto, os ouvintes da trova são identificados no v. 3: moradores de Jerusalém e homens de Judá, governantes e militares. O lugar da trova, portanto, é a cidade que concentra o poder econômico, político e religioso.
Nos v. 5-6, o trovador torna-se porta-voz do seu amigo e anuncia o que fará: a proteção da vinha será destruída, a vinha deixada à sua própria sorte; os verbos em infinitivo absoluto deixam indefinido o sujeito dessa ação, que só no v. 6 volta a ser o vinhateiro/amigo (CROATTO, 1989, p. 51).
O v. 7 identifica claramente os elementos da metáfora: o camponês é Deus e a vinha é a casa de Israel e os homens de Judá. Esses são os culpados da frustração do vinhateiro. As uvas bravas que produziram é o quebrantamento da lei e os clamores (das pessoas injustiçadas). Os ouvintes convidados para julgar juntos, na verdade, também são os acusados que agora são desafiados a pronunciar um julgamento sobre si mesmos, em face das “uvas bravas” que produziram. Dá para imaginar o choque que esse pessoal da cidade sentiu!
Os v. 8-24 descrevem claramente as “uvas bravas” produzidas pelos moradores de Jerusalém e os homens de Judá: acumulam bens, fazem festas e banquetes, circulam apenas em suas rodas, não têm noção da vida precária do povo; são vaidosos e praticam a iniquidade; ao mal chamam bem e ao bem mal; consideram-se sábios e inteligentes, valentes para misturar bebida forte; absolvem o ímpio mediante suborno e negam justiça ao justo. Rejeitam a lei de Iahweh.
A vinha como povo pelo qual Deus tem especial predileção, com todo o imaginário prazeroso e produtor de justiça, shalom e felicidade, é recorrente em ambos os testamentos bíblicos. O Salmo 80.8 retrocede essa figura ao êxodo: Trouxeste do Egito uma parreira, o povo de Israel; expulsaste os outros povos e plantaste essa parreira na terra deles. A visão de Isaías 25.6: O Senhor dos Exércitos preparará para todos os povos sobre esta montanha, um banquete com as mais finas comidas, uma festa com vinhos selecionados, com as melhores e mais finas iguarias, com os melhores vinhos selecionados. No capítulo 65.17-22, Isaías agrega um elemento de justiça social à sua visão dos novos céus e da nova terra: o passado de desgraças será esquecido, as pessoas construirão casas e morarão nelas, farão plantações de uvas e beberão do seu vinho, não serão mais expropriadas dos frutos de seu trabalho; todos terão o prazer de aproveitar as coisas que eles mesmos fizeram.
Entretanto, como aqui, também outros profetas se valem dessa bela figura da vinha para criticar os desvios das lideranças políticas e religiosas do povo dileto. De modo semelhante Jeremias 2.21 traz um dito de Deus: Eu mesmo a plantei como videira excelente, da semente mais pura. Como, então, você se tornou uma planta degenerada, como de videira brava? Ezequiel 15.1-8 é ainda mais contundente quando compara o tronco da videira com a madeira de outras árvores e chega à conclusão de que a madeira da videira só serve mesmo para ser queimada, nem se fala mais de uvas bravas.
No Novo Testamento, Jesus é apresentado como a videira verdadeira: Eu sou a videira verdadeira, e o meu Pai é o lavrador (João 15.1). Eu sou a videira, e
vocês são os ramos (João 15.5). Essa videira produz vinho novo. Os odres velhos não o suportam (Marcos 2.22). Esse vinho novo rebenta as estruturas tradicionais. É esse o servo sofredor ao qual Isaías já apontava em suas profecias nos capítulos 42 e 49-52, onde por vezes se fica em dúvida, se o profeta está falando do povo escolhido de Israel ou apontando para o Messias? A parábola dos lavradores maus, de uma das leituras previstas, o desenha com detalhamento histórico. São necessárias estruturas novas, para acolher esse vinho novo. A fé da ressurreição é capaz de prover esses odres novos?
3. Meditação
O texto é de juízo, a profecia é dura. No entanto, o método do texto é envolvente. No v. 5, o dono da vinha torna-se o juiz do imbróglio, mas só depois de buscar ouvidos abertos e pensamento participativo, bem ao estilo Paulo Freire. O juízo, à primeira vista, não parece ser muito severo: o dono apenas tira a proteção da vinha, que agora pode ser “colhida” por animais e estranhos; não investirá mais nada na vinha, nem mão de obra nem material. A natureza tomará o seu curso. As videiras não serão mais podadas, dispenderão sua energia vital em ramos selvagens, o inço invadirá e competirá com as videiras pelo alimento mineral da terra. É o quadro da dor para uma vinha! Que significado pode ter essa retirada de proteção da vinha, quando se pensa na relação de Deus com o seu povo?
Dentre os três textos bíblicos previstos para este domingo, a gente fica com mais vontade de pregar sobre o texto de Filipenses – ainda mais se ampliado até o v. 21. Este, no fundo, nos diz mais respeito. Não faz muito sentido ficar tripudiando sobre o povo de Israel, incorrendo ainda em associações que resultaram em graves tragédias históricas contra o povo judeu. Cabe ao povo judeu e ao judaísmo refletir a sua história com o seu Deus! A nós cristãos e cristãs caberia refletir sobre os atuais “inimigos da cruz” e “adoradores do seu próprio ventre”, em que se transformaram as pessoas seguidoras de Cristo, “visto que só se preocupam com as coisas terrenas”. Na história da igreja cristã não temos nenhum
motivo para presunção ou arrogância! Essa história apenas confirma a afirmação teológica descoberta por Paulo, na Carta aos Filipenses, de que todos os méritos próprios ou a justificação por obras são perda, diante da única possibilidade de sermos agraciados com a justiça de Deus mediante a fé em Cristo, sem ter a presunção de já tê-lo alcançado. É necessário correr atrás, conquistar aquilo para o que já fomos conquistados por Cristo Jesus (v. 12).
Entretanto, se entendemos que, como seguidores de Cristo Jesus, estamos incluídos no extenso povo de Deus – afinal, continuamos com o Primeiro Testamento em nossa Bíblia –, as admoestações dos profetas também se referem a nós. Ou seja, somos desafiados a nos perguntar se também nos tornamos vinha que produz uvas bravas. Quais são nossos frutos como pessoas cristãs? A pergunta não é feita a nós como indivíduos, mas como comunidade cristã localizada. Uma das mais nefastas evoluções para o cristianismo foi sua individualização. A fé cristã tornou-se um assunto particular e íntimo. Essa evolução tem vetores externos, como p. ex., a evolução de sociedades agrárias para sociedades urbanas. Contudo, também tem aí o dedo do confundidor-mor, que é a abstração espiritualizante da fé como assunto só entre mim e Deus. A pessoa fica sozinha e sente-se impotente diante da injustiça social e das políticas perversas, adotando uma postura meramente moralizante. Sua ação neste mundo fica extremamente limitada, na maioria das vezes, hipócrita ou angustiante, para não dizer quase impossível.
Essa perversão da fé cristã retira toda a sua dimensão social e a correspondente ação diacônica. E a diaconia não é apenas enterrar vítimas da violência e da opressão, nem apenas consolar enlutados, ou dar esmolas a empobrecidos; também não é pedir aos oprimidos e espoliados que aguentem, até chegarem novos tempos. Conforme o nosso texto, é exercer juízo e justiça. Isso, obviamente, não está limitado pela ética individual, pois a justiça só se torna efetiva por meio da ação comunitária e política. A pessoa individual sente que pouco ou nada pode fazer para mudar uma situação de injustiça estrutural. O amor de Deus tem de ser traduzido em ação política – hoje, econômica, social e ambiental – por nós que pretendemos ser o seu povo! Se deixarmos apenas os governantes fazerem política, nos colocaremos na condição de sofrer política: quem não faz política, sofre política! Teria Lutero razão quando diz que só há governos perversos e miseráveis contra o povo porque as igrejas, com suas comunidades, não cumpriram com sua obrigação de pregar o evangelho com palavras e ações correspondentes? (WA 19, 440-6).
4. Imagens para a prédica
A imagem da vinha convida para uma prédica mais narrativa. Lothar C. Hoch dá um exemplo no PL volume VII. Kilpp indica para a decoração visual do ambiente de culto com ramos novos, folhas novas, podadeiras, enxada, pedras… (KILPP, 1995, p. 256). Sugiro uma prédica em três partes:
– Contar a história de um amigo vinhateiro e enólogo, seguindo o método e a estrutura dada pelo texto. A história terá mais impacto se contiver elementos atuais: zelo do amigo na escolha do solo, do lugar com a melhor incidência do sol, cuidado na escolha das videiras, adubação própria para a viticultura, cerca para evitar invasão de animais, câmeras vigilantes nos quatro cantos da vinha, equipamento para fazer o vinho… Uvas bravas poderiam ser uvas azedas, que são inaproveitáveis por causa da ferrugem ou porque têm uma maturação muito irregular, ou porque apodrecem antes de ficarem maduras. Então vem a pergunta que envolve as pessoas ouvintes: o que mais o amigo poderia ter feito com essa vinha? Um momento de silêncio certamente é adequado nesse ponto, para, então, seguir com a decisão própria do amigo: largar de mão, reaproveitar a cerca pra outra coisa, vender o equipamento, deixar o inço tomar conta, deixar que vire mato, descanse, antes de pensar em utilizar a terra para outra coisa. Quanto mais rica e detalhada a história, mais atenção se conseguirá prender na comunidade ouvinte. É preciso criar a ideia de que o amigo não falhou em nada. A graça de Deus é plena e abundante. Deus investiu e continua investindo muito nas pessoas que escolhe para cooperar com ele na sua bela criação. Não deixa faltar nada. E o que Deus colhe de nós como frutos de seu investimento? E, se de repente parasse de investir, como seria?
– Nesse ponto se pode recordar uma breve história da salvação à base do texto de Mateus, para fazer a ponte entre o povo escolhido do Primeiro Testamento e a ekklesia, o povo escolhido do Novo Testamento, o Corpo de Cristo, do qual todos somos membros, “raça eleita”, “sacerdócio real”, “nação santa”, “povo de propriedade exclusiva de Deus” (1Pe 2.9).
– Em seguida, exemplificar uvas azedas e bravas como os desvios listados em Isaías 5.8ss e as atitudes criticadas por Paulo na Carta aos Filipenses: a autoconfiança enganosa de nossos dias, “confiar na carne”, nos seus próprios méritos, ou seja, na salvação pela observância da lei, ou seja, salvação pela adequação cínica dentro de uma estrutura econômica, social e política que produz injustiça e morte e pode levar o planeta para a destruição total. Diante de Cristo, toda essa autoconfiança, aparentemente lucro, se transforma em perda total, vira refugo! A crítica profética dirige-se principalmente aos governantes, mas não exclui a nós como pessoas comuns que elegemos os governantes! Portanto o v. 7 também pode dizer: nós, comunidade cristã, somos os caras! Nós somos a vinha que Deus pode deixar à sua própria sorte se continuarmos a produzir uvas bravas, entre outras coisas, elegendo governantes obtusos, perversos, destrutivos!
Nós nada merecemos! Mas Deus, pelo investimento que fez e faz em nós, merece que produzamos uvas doces que dão vinho excelente! Empenhemo-nos por estruturas econômicas, sociais e políticas justas e vida abundante para todas as pessoas!
5. Subsídios litúrgicos
Hino: LCI 474 – Ó terras, todas celebrai
Kyrie
Deus de justiça e misericórdia. Trazemos-te o nosso lamento. Vivemos num país tão ricamente abençoado, mas tão maltratado pelos nossos governantes. A violência não apenas aumenta, mas ainda é incentivada. O povo está doente e não tem onde buscar atendimento. Os projetos de educação escolar visam formar gente que repete coisas sem pensar. Atrás de cada pessoa desempregada há dependentes em vulnerabilidade. A fome e a falta de oportunidades geram insegurança e criminalidade. Tem, Senhor, piedade!
Oração
Deus todo-amoroso, que desde os tempos mais antigos investiste tuas bênçãos e teu trabalho criativo no teu povo eleito, para que fosse uma luz para as nações, na organização de uma sociedade justa e pacífica, e qual uma vinha desse frutos bons e o prazer do vinho para alegrar toda a tua criação, nós te pedimos: continua investindo a tua graça e as tuas bênçãos também em nós – apesar de que nossos frutos ainda são azedos e pouco aproveitáveis –, para que em tudo o que fazemos, tenhamos em mente o objetivo de melhorar o mundo em que vivemos, para a tua maior honra e glória. Isso te pedimos em nome de Jesus Cristo que contigo e com o Espírito Santo vive e reina, de eternidade a eternidade. Amém.
Bibliografia
KILPP, Nelson. Auxílio Homilético sobre Isaías 5.1-7 para o 20º Domingo após Pentecostes. In: SCHNEIDER, N.; DEIFELT, W. (Eds.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: IEPG; SINODAL, 1995. v. 21. p. 252-257.
CROATTO, J. Severino. ISAÍAS – O profeta da justiça e da fidelidade. São Paulo: Vozes; Imprensa Metodista; São Leopoldo: Sinodal, 1989. (Série Comentário Bíblico, v. I: 1-39.)
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).