Prédica: Isaías 52.7-10
Leituras: Hebreus 1.1-9 e João 1.1-5 (6-8) 9-14
Autor: Roberto E. Zwetsch
Data Litúrgica: Natal de Nosso Senhor
Data da Pregação: 25/12/1996
Proclamar Libertação – Volume: XXII
1. O Grito dos Atalaias: Deus Reina!
Esta perícope é bem conhecida na história da pregação. Ela é muito citada, sobretudo quando se fala da evangelização. E por isso mesmo, muitas vezes é citada fora de contexto, de forma um tanto espiritualizada, perdendo aquela força que a concreticidade do texto bíblico preserva. Vejamos o que diz o texto.
O mensageiro aqui anuncia boas novas: Shalom! E com a paz vêm junto muitas coisas boas. Com a paz vem a salvação que significa: Deus reina em nossa cidade, ainda que em ruínas. E ele vem chegando, está bem perto, se aproxima correndo como um dos melhores atletas da última Olimpíada. Ele está voltando.
Preparem a cidade, a casa, a mesa. Ele está aí, às portas. É o que dizem os atalaias, os vigias da cidade arruinada. Seus olhos já cansados, meio desanimados, de repente ganham brilho, espelham vida porque enxergam uma grande novidade. O Deus esperado está chegando para reinar. Ele vem e traz muita gente consigo. Esse povo todo não parece afobado. Vem do exílio, sim, mas vem com muita gente. Era gente oprimida, exilada lá na Babilônia. Sofreu demais. Recebeu o perdão. Aprendeu a viver desse perdão. Ansiou por sair e recobrar o tempo da liberdade. Reconquistou a liberdade. Demorou, mas chegou o tempo do retorno.
Um novo êxodo está se realizando, em parte como o antigo, em parte totalmente novo. Pois agora já não é Moisés quem está na frente. O próprio Deus é a dianteira e a retaguarda dessa nova caminhada de libertação. É esses fatos (remendos, maravilhosos acontecem à vista de todas as nações. São públicos e notórios. Aliás, esses fatos convidam todos os povos a participarem desse retorno à cidade livre, à Jerusalém arruinada e agora prestes a ser reconstruída. Parece que o próprio Deus vai ajuntando gente na caminhada, de modo que a alegria vai tomando conta de muitos. Pode até ser que toda a terra, de repente, veja a salvação de Deus. Por tudo isso e diante da alegria geral, resta uma só coisa a fazer: cantar!
Que os corações de vocês fiquem repletos de alegria.
Cantem juntos, povo arruinado!
Pois o Senhor Libertador consolou o seu povo,
redimiu a cidade destruída,
Ele desnudou o seu braço santo
aos olhos de todas as nações.
Por isso, toda a gente até os confins da terra
verá a libertação do nosso Deus. (Vv. 9-10.)
2. Informações Exegéticas
Este texto pertence ao bloco dos caps. 40 a 55 do livro de Isaías. Conforme a pesquisa mostrou, são de autoria anónima, mas de um círculo que bebeu da mesma teologia de Isaías. Trata-se de um texto carregado de poesia. É poesia de qualidade e de fortes traços urbanos! Milton Schwantes dizia que nosso autor (ou autores) certamente pertencia a algum círculo de profetas-cantores. Profetas para os quais a tradição hínica fornece o pano de fundo para a apresentação da mensagem. Provavelmente o Segundo Isaías, como é conhecido, viveu entre 550-540 a.C, em tempos do rei persa Ciro (cf. caps. 41 e 44), tendo morado entre os exilados deportados para a Babilônia. Poderia-se considerar esta como uma profecia comunitária. Isto explicaria de certo modo o anonimato do texto, mas igualmente partes importantes como a compilação dos cânticos do Servo sofredor.
O Segundo Isaías é uma profecia de consolação. Visa animar gente desiludida e cansada. Ele anuncia coisas novas. É profeta evangelista e fala — como o evangelho — do perdão de Deus. As coisas passadas se foram (43.18). A iniquidade está perdoada (43.25). Um caminho novo se abre à frente (40.3). No deserto, há que preparar um caminho para o Senhor que se aproxima e anuncia: Saiam da Babilônia! (48.20).
É um novo e extraordinário evento histórico que se prepara para acontecer. O paradigma preferido desse evento é o novo êxodo e o consequente regresso dos exilados. Estão chegando e o Senhor vem com eles, à frente, gritam os vigias desde o alto de seus postos de observação. Eles percebem de longe que o Libertador vem. Está chegando. Cantem e regozijem-se! A cidade destruída vai se tornar uma nova cidade, uma cidade justa. Porque no seu meio um novo rei se instalará, para reinar segundo outros critérios. Deus mesmo será este rei, cuja imagem é a do Servo sofredor, aquele que padece em lugar do povo para que este seja curado e salvo.
Os que anunciam essas coisas novas e extraordinárias são bem-aventurados. São felizes! E estes são os mensageiros e atalaias cujos pés são formosos. Que imagem para falar dos mensageiros de Deus!
Por fim, importante é que a mensagem alcance aos que ela visa: os exilados, os arruinados, os desconsolados, os enjeitados, os que não prestam para mais nada. A estes o profeta anuncia que o tempo da escravidão está terminando. Um novo tempo está começando. Levantem-se! Cantem e exultem! O Deus de nossos pais reina! Ele vem chegando! Está aí, às portas. Esta mensagem ecoa pelas muralhas e prédios destruídos da cidade, em meio a gente destroçada, infeliz e sem esperança como um novo vento restaurador da vida verdadeira. É o Espírito da Vida que triunfa sobre os sinais de morte que imperavam. Todos verão a libertação desse Deus!
Para quem tiver interesse em aprofundar mais detalhes recomendo o artigo de Nelson Kilpp, Introdução a Dêutero-Isaías, in: Proclamar Libertação, vol. VIII, p. 16-22. E também a meditação de Milton Schwantes, em PL XV, p. 100-105.
3. Pensando na Prédica
Esta perícope está prevista para o Dia de Natal de nosso Senhor Jesus Cristo. É muito bom que pregadoras e pregadores que se esmeram em anunciar boas novas possam tratar desse texto no dia de Natal. Ainda mais quando lidos em conjunto com os demais textos escolhidos, de Hebreus e João. Penso que as possibilidades de atualização são muitas e todas bem pertinentes a esta festa central da Igreja cristã.
Intuo que um enfoque seria partir da ruína da cidade, da miséria da nossa gente, da desilusão e da desesperança que sufoca a muitos para dizer com toda a clareza: Animem-se. Deus reina! Ele vem trazer consolo ao povo arruinado. Ele vem chegando. A gente já pode vê-lo olhando de cima dos telhados. E este rei que vem, vem de modo diferente. Ele vem com a cara da justiça, com a palavra do perdão, com o novo projeto da paz.
Onde será que poderíamos hoje identificar esse rei? Nos líderes dos sete grandes países que geralmente se reúnem para defender os seus interesses e não construir a paz? Nos senhores dos grandes bancos que exploram os povos com juros e dívidas estratosféricas? Quem hoje teria os traços do Rei da Paz?
Os mensageiros, os atalaias anunciam boas novas de paz. E essa paz é simplesmente a presença salvífica do novo Rei. Ele ama a justiça e odeia a iniquidade (Hb 1.9). Por isso Deus o ungiu com o óleo da alegria e esta ninguém lhe poderá tirar. Tal alegria ele não a guarda para si. Ele a compartilha com todos. Quem quiser, que venha e beba dessa alegria contagiante. A paz desse rei é justa e contagia. A alegria é seu melhor e mais visível fruto.
O Natal tem esse jeito. Mas é sempre bom lembrar que a paz e a alegria que começaram a se fazer carne na manjedoura, em meio a pobres, a animais c escuridão, tem jeito frágil de criança indefesa. Tem cheiro de pobre c marca do cotidiano de muitas mulheres, homens e crianças por este país afora, li pá/, que nasce de baixo para cima. Dos fundos da casa, da propriedade, dos galpões c barracos de onde ninguém espera mais nada. A paz e a alegria do Natal vêm ainda de fora da cidade. Quem vigia, percebe que ambas vêm chegando. Muitos, porém, permanecem cegos e surdos à mensagem dos mensageiros de pés formosos (42.18-25). A estes é preciso talvez gritar. Ou cantar. Qual será o melhor jeito? Precisamos refletir em conjunto sobre métodos e meios. Em todo caso, a mensagem é tamanha que um só mensageiro não dá conta.
As boas novas de paz e alegria que o Natal nos quer fazer relembrar, atualizar, incorporar dizem respeito a toda a comunidade, a toda a cidade, a toda a gente. Elas nos envolvem por inteiro, dos pés à cabeça. E se tornam não apenas um processo comunicativo, mas uma verdadeira ação de transformação. Pois o Natal desse Rei que vem de baixo, desse Deus que não tirou vantagem do fato de ser Deus, mas se esvaziou e assumiu a forma de servo (Fp 2.5-11) é escandalosamente comprometedor. Não dá para ficar apenas contemplando o presépio, a lapinha, o triste olhar da vaca ou do burro manso. Esta visão é bonita, claro, e pode ajudar muita gente a imaginar um mundo diferente. Mas é preciso quebrar o encanto em que o espírito natalino normalmente nos cativa. Aquela criança berra e o seu grito ecoa nas ruas, nos gabinetes e nos palácios. Há sempre aqueles que tramam sua morte desde criança. Mas pergunto: por que o grito não haverá de ecoar também na nossa comunidade e transformá-la num povo de testemunhas desse Rei diferente? Em torno do presépio, podem se reunir tanto espectadores piedosos quanto atalaias e mensageiros dispostos a gritar pelas ruas e montanhas que o Rei está aí para transformar as ruínas em cidade justa.
E não obstante, é preciso cantar. Cantar que o Rei vem. Está aí, às portas. Cantar que ele se apresenta paradoxalmente frágil como uma criança. Mas que assim mesmo, desse jeito, quer construir a paz e a alegria verdadeiras. Quem crer nesse Rei verá a libertação de Deus. Como tantos outros ontem e no futuro. Quem quiser participar que abra os olhos e ouvidos, pois Deus reina através de uma criança indefesa e provisoriamente deitada numa manjedoura. Ele reina a partir de baixo, ou, como disse G. Gutiérrez, a partir do reverso da história. Estaremos nós dispostos a alegrar-nos com esse Deus, hoje? Eis o desafio.
Entoem cantos de alegria,
ruínas de Jerusalém!
Pois o Senhor consolou seu povo,
redimiu Jerusalém! (V. 9.)
Seguem-se alguns breves comentários sobre os dois outros textos previstos para as leituras:
Hebreus 1.1-9: O autor da carta faz uma memória das muitas maneiras como Deus outrora falou ao seu povo para concluir que nestes dias nos falou pelo Filho a quem constituiu herdeiro de todas as coisas. Este Filho é Jesus Cristo que é exaltado e vive à direita do Pai compartilhando do seu poder e glória. Ò Filho c maior do que os anjos, tendo realizado cabalmente a obra do Pai: ele amou a justiça e a equidade, odiando a iniquidade, por isso Deus o ungiu com o óleo da alegria como a nenhum de seus companheiros. Este é aquele que, sendo Deus, assumiu a nossa humanidade na manjedoura de Belém.
João 1.1-5(6-8)9-14: O evangelista da Palavra nos diz que a Palavra no princípio estava com Deus e era Deus. Por meio dessa Palavra tudo foi criado e a vida estava nele. A vida é palavra encarnada. Por isso mesmo o Verbo de Deus não podia permanecer na sua luz exclusiva. E a Palavra/luz veio então ao mundo, para os seus, fez-se carne e habitou entre nós, como um de nós. Alguns traduzem dizendo que Deus fez sua tenda, sua barraca (dos sem-terra?) entre nós. Esta é a mensagem do Natal. Quem o recebe em sua vida experimenta o que é ser filho de Deus. Aprende o que é viver da Palavra que cria vida e gera luz.
4. Subsídios Litúrgicos
a) Neste culto algumas pessoas da comunidade anteriormente preparadas poderiam postar-se em diferentes lugares na igreja. No momento da pregação, poderiam dizer algumas frases do texto (Deus reina! Rompei em alegria que nosso Rei se aproxima! Ele vem e anuncia a paz!, e assim por diante) ou apresentar estas e outras (p. ex., Ele ama a justiça e a alegria) em cartazes. A partir dessas manifestações a/o pregadora/or poderia desenvolver a mensagem natalina, enfocando duas ou três ideias que os textos apresentam. Mas tudo breve, sem moralizar o texto.
b) Este culto poderia ser realizado com muito canto. Os nossos diversos hinários (Hinos do Povo de Deus, O Povo Canta, cancioneiros) estão repletos de músicas que se prestam para aprofundar a mensagem de Natal. Se houver possibilidade de enriquecer o canto com a participação de músicos com diversos instrumentos, inclusive algum tipo de percussão, isto daria um efeito celebrativo muito grande. Tudo depende, porém, da comunidade e de como ela gosta de celebrar o Natal. Mesmo assim, o nosso povo apoia a festa quando responde a aspirações profundas de sua vida.
c) Sugiro ainda a leitura de algum Salmo, por exemplo, o 47, ou um poema que escrevi pensando nesta época:
Bendito
Bendito aquele que vem
bendito aquele que vem
e traz consigo esperança.
Bendito aquele que vem
e nos torna crianças também.
Bendito aquele que vem
e nos liberta do espelho
onde nos miramos qual narcisos
envergonhados de tudo
e até de nós mesmos.
Bendito aquele que vem
e nos renova por dentro
e nos transforma completos
e nos concede alegria.
Bendito aquele que vem
e anuncia utopias
e paradigmaticamente
sempre nos escandaliza.
Louvado seja o escândalo
do presépio de Belém.
Nunca houve sinal tão pobre
e ao mesmo tempo tão revolucionário.
Deus feito homem, Deus-homem-menino
envolto em trapos.
Contradição paradoxal.
Tu, bendito, ajuda-nos a
não domesticarmos o teu
santo escândalo.
E ajuda-nos a dar-te a mão
nas esquinas da cidade
onde sobrevives
como pária, mendigo, sem rumo.
Bendito aquele que vem.
Para sempre seja bendito,
Escândalo e Vida nossa!
(Vigília, p. 9)
5. Bibliografia
SCHMIDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento. Trad. Annemarie Höhn. São Leopoldo,Sinodal/IEPG, 1994.
SCHWANTES, Milton. Sofrimento e Esperança no Exílio; História e Teologia do Povo de Deus no Século VI a.C. São Leopoldo, Sinodal; São Paulo, Paulinas, 1987.
ZWETSCH, Roberto E. Vigília; Salmos para Tempos de Incerteza. São Leopoldo, Sinodal, 1994.