Sofrimento que comove e converte
Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Isaías 53.4-12
Leituras: Marcos 10.35-45 e Hebreus 5.1-10
Autor: Atílio Hunzicker
Data Litúrgica: 21º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 18/10/2015
1. Introdução
A perícope que nos ocupa faz parte do quarto canto do Servo Sofredor (Is 52.13-53.12), denominação dada a essa passagem de Isaías. O texto, usado normalmente na Sexta-feira Santa, está designado para o 21º Domingo após Pentecostes, em conjunto com Mc 10.35-45 (O pedido de Tiago e João) e Hb 5.1-10 (Cristo, superior ao sacerdócio da antiga aliança).
Os textos que serão lidos antes da prédica para dar harmonia à celebração do culto convidam-nos a transitar por um caminho que parte do pedido de Tiago e João e segue com a resposta de Jesus: “Não sabeis o que pedis” (Mc 10.38); logo a apresentação do Sumo Sacerdócio de Cristo, indo, finalmente, ao canto do Servo. Podemos pensar que nós, que estamos na celebração, aderimos ao pedido de Tiago e João, ouvimos a resposta de Jesus e somos confrontados com o testemunho relatado no canto do Servo.
É extensa a bibliografia sobre esses cantos do Servo. A primeira questão gira em torno de quem é esse Servo. As interpretações e conclusões são diversas: um homem, quem sabe o próprio profeta, ou a opção coletiva: Israel ou parte de Israel. A segunda questão é identificar o relator, a testemunha dos sofrimentos e morte do Servo. Esse grupo é beneficiado pelo sofrimento do Servo; experimenta uma profunda conversão; é um grupo, um sujeito coletivo que é curado e recebe paz. Por último, e não menos importante, está o tema do tempo em que isso aconteceu. Isso acontece antes do exílio, durante o exílio ou depois do exílio? No PL, ao longo de mais de quatro décadas, o texto foi tratado exaustivamente.
Está por demais provado o uso desse texto no Novo Testamento, atribuindo a Jesus a identidade do Servo tanto nos evangelhos como em muitas cartas. Não obstante, é muito frequente fazer a transferência de maneira mecânica, sem olhar mais profundamente para o mistério que encerra esse canto em seu tempo e em seu lugar de origem.
É uma oportunidade importante confrontar-nos com esse quarto canto do Servo na celebração do culto, para revisar nosso lugar diante de Deus, diante das pessoas que ainda hoje continuam sofrendo “em lugar dos outros” e poder ver onde estão colocadas a nossa fidelidade e obediência.
2. Exegese
O quarto canto completo vai de Is 52.13 a 53.12. A nossa perícope de pregação abarca 53.4-12. Em 52.13-15, é Deus quem fala na primeira pessoa e retoma a palavra no final do canto em 53.11-12.
Já em 53.1-3, é outro sujeito que toma a palavra, ou seja, um sujeito coletivo “nós”: Quem creu em nossa pregação? (1), não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse (2b). Era desprezado, e dele não fizemos caso (3c). Aquele que dá o testemunho refere-se a um passado mais ou menos imediato, como dizendo “não o levamos em conta, fomos indiferentes, o ignoramos”.
Nos versículos 4 a 6, o relator, que fala na primeira pessoa do plural, testemunha um descobrimento fundamental: ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si (4a). Aquele ante o qual haviam sido indiferentes beneficiou-os, fez algo importante para eles, ocupou o lugar deles. Eles estavam enganados considerando que o que padecia por vontade de Deus, sem que eles tivessem nada a ver com ele: e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido (4b). Tudo o que ele padeceu haveria de ser correspondido, com justiça, a eles mesmos; ele pagou por eles e deu-lhes paz e saúde. Foram os atos e ações nocivas deles que produziram o sofrimento dele (5). No v. 6, o relator amplia a confissão: Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas (6a). O que era o pecado de todos foi carregado sobre ele por vontade de Deus (6b). O relator, em nome de muitos, fala-nos de algo que aconteceu num passado mais ou menos recente e que produziu neles algo experimentável: saúde e paz.
Nos v. 7-9, o mesmo relator descreve-nos a atitude do servo, a submissão, passividade, rendição total a seus “tosquiadores”, opressores (v. 7), que resulta em seu silêncio: “mas não abriu a boca”, “ovelha muda” e “ele não abriu a boca”. Ele foi julgado sem legítima defesa, condenado e executado. Nesse v. 8 não há informação sobre os que julgam e condenam. Ou podemos entender que o próprio povo foi quem o condenou? Ninguém foi socorrê-lo: quem se preocupou com sua sorte? Assinala a unanimidade de seus contemporâneos a respeito do acordo sobre sua condenação. Aos sofrimentos infringidos resta ainda a humilhação de sua sepultura (v. 9) como fechamento completo de sua condenação. Esses versículos, apresentados pelo mesmo relator, descrevem-nos o que aconteceu a outro, a quem eles conheceram e não entenderam; sofrimentos, juízo injusto, morte e sepultura daqueles que recém agora descobrem ou o veem de maneira diferente. Esse testemunho tão sintético, mas ao mesmo tempo tão claro, dificulta pensar em algo diferente de uma pessoa, um homem concreto, do comportamento de um indivíduo. Mais do que a interpretação do Servo como um coletivo, eu me inclino a pensar em um profeta a quem calaram a boca. E a verdade que ele trazia foi reconhecida após sua morte e sepultura.
O v. 10 afirma que o acontecido é vontade soberana do Senhor, e esse caminho de sofrimento e morte terá sua compensação, paradoxalmente com frutos de vida. Depois da dor e da morte, Deus continua tendo poder.
Nos v. 11-12, com os quais termina o canto, é novamente Deus quem fala e reafirma o sofrimento expiatório do Servo (v. 11b). O Servo será recompensado (v. 12a). No fim, acrescenta-se que ele não somente carregava os pecados dos outros, mas também intercedia por eles. Essa última afirmação convida-nos novamente a identificar o Servo com um profeta, com uma pessoa. Por acaso o profeta não anuncia com coragem o juízo do Senhor sobre os pecadores e ao mesmo tempo clama ao Senhor por sua misericórdia?
Nossa proposta de estrutura do texto: 53.4-6: confissão pós conversão;
53.7-9: testemunho dos sofrimentos do Servo, dos quais foram testemunhas;
53.11-12: afirmação de Deus sobre o cumprimento de seu plano e a promessa de recompensa a seu Servo.
3. Meditação
Os leitores e as leitoras do PL têm vários comentários sobre esse texto publicado ao longo de quase quarenta anos. Isso não facilita a tarefa de meditar agora sobre o quarto canto do Servo em nossa realidade, transcorrendo o 15º ano deste século. Somos convidados a dirigir nosso olhar para muitos séculos atrás e colocar nosso olhar sobre uma comunidade de fé que sustenta que Deus tem poder sobre o mundo, que ele atua soberanamente e dele depende a salvação de todos.
Diversas são as posturas em torno da identidade do sujeito Servo Sofredor, com duas interpretações dominantes: a individual, uma pessoa, e a coletiva, o povo, parte do povo, um resto etc. Pessoalmente, o texto, com sua estrutura e seus detalhes, convida-me a pensar numa pessoa; a descrição dos padecimentos, juízo, morte e sepultura apontam mais para um indivíduo do que para um grupo ou setor particular.
Não podemos identificar a primeira pessoa do plural, o nós que faz o relato, que dá o testemunho do visto e vivido, a não ser através de conjeturas. Claro está que eles reconhecem Deus e sua ação na história, reconhecem que o que aconteceu ao Servo responde à soberania de Deus, e essa ação de Deus os inclui. A hipótese do Comentário Bíblico São Jerônimo sustenta que provavelmente são os “gentios convertidos que proclamam essa revelação”, ao ver os sofrimentos do povo inocente.
Se pensamos nos sofrimentos do povo no exílio, alguns que padeceram foram realmente inocentes, já outros foram responsáveis pela situação e merecedores da dor; não eram um todo homogêneo, apesar de pertencer ao mesmo povo.
Podemos também pensar como possível um profeta no meio deles, cuja mensagem foi ignorada, desvalorizada ou rechaçada e sua voz calada com a morte. A partir do texto, não é possível determinar em que momento e de que maneira esse grupo troca radicalmente sua consciência sobre a figura do Servo: de ignorado e rechaçado a promotor da paz e saúde para eles. O que os leva a reconhecer que os sofrimentos do Servo são os que eles, por seus pecados, mereciam? O que os leva a considerar como injustos tanto o juízo como a humilhação de sua sepultura?
O drama do sofrimento, juízo, morte e sepultura não obstante dirige-os a Deus, à sua vontade soberana e à vitória do Servo como resultado de sua obediência absoluta.
O enorme valor do texto, no meu entender, reside na coragem da confissão, no reconhecimento do erro em dois planos: o primeiro é o dos próprios pecados: “todos andávamos como ovelhas seguindo seu próprio caminho”, sem projeto comum; o segundo está no pecado de haver ignorado, rechaçado e de ser cúmplice, de alguma maneira, dos padecimentos, do juízo injusto e da morte do Servo.
Esse reconhecimento como confissão transforma-os, habilitando-os a participar da esperança no triunfo final do Servo. A afirmação “Ele padeceu por nós, ocupando o lugar que nos correspondia por nossos pecados” demonstra uma enorme coragem, uma autêntica sinceridade, no reconhecimento do pecado não como ato individual, mas como ação coletiva, o pecado de todos, do grupo.
À luz do evangelho (Mc 10.35-45) deste domingo, o pedido dos discípulos e a afirmação de Jesus “Não sabeis o que pedis” resultam para nós a necessidade de revisar o que pedimos como comunidade e confrontar-nos com o drama do Servo de Deus na pessoa de Jesus não como feito no passado, mas como uma realidade presente. Onde está padecendo o Servo? Que lugar ocupamos como comunidade nesse drama da salvação?
4. Imagens para a prédica
O texto precisa alertar-nos sobre o enorme perigo de considerar como verdadeiro que a prosperidade material, a abundância, o luxo e a ausência de sofrimento são os principais sinais do favor de Deus. Mesmo que resulte muito anacrônico em nossas sociedades falar do sofrimento expiatório, esse segue sendo um tema bíblico e corresponde à história da salvação. Em um mundo, em uma sociedade em que a polarização entre riqueza e pobreza, entre luxo e miséria, entre conforto e padecimento, entre saciedade e fome é cada vez mais escandalosa, devemos com coragem perguntar-nos onde está o Deus do Servo que sofre e qual é nosso lugar com respeito a ele.
Algumas perguntas que podem nos guiar: Quem somos verdadeiramente? Somos capazes de confessar profunda e sinceramente nossos pecados? O que vemos? Para quem olhamos e a quem ignoramos? Somos suficientemente humildes para reconhecer que existem outros e outras que carregam nossas culpas e pecados ainda hoje, tal como Jesus os carregou em sua cruz? Vivemos na esperança do triunfo definitivo do poder e da vontade de Deus?
Seguramente cada comunidade terá realidades particulares diferentes no aspecto social, econômico e político. Mas, mais além dos limites da comunidade, existem realidades gerais comuns a todas. Nessas realidades gerais e comuns, frequentemente está presente o pecado grupal de estruturas sociais e políticas injustas, que nós ignoramos, porque não as vemos como algo pessoal.
Podemos, por fim, transformar-nos numa comunidade que em obediência esteja a serviço do reino de Deus?
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
Senhor, temos olhos, mas nos custa ver; temos ouvidos, mas nos custa escutar; temos voz, mas frequentemente permanecemos calados. Custa-nos ver ou não queremos ver o sofrimento injusto de teus filhos e filhas. Custa-nos ouvir-te nos mais pequenos. Ficamos mudos quando deveríamos levantar a voz diante das injustiças. Perdão, Senhor.
Oração de coleta:
Damos-te graças, Senhor, por teus servos que ao longo dos séculos tens chamado e que te obedeceram em teus planos de salvação. Damos-te graças hoje por todos os mártires, os conhecidos e os anônimos, os de ontem e os atuais. Tu lhes darás o triunfo mesmo que agora vejamos somente o fracasso. Que seus exemplos nos fortaleçam para servir a tua humanidade. Pedimos-te por Jesus Cristo, teu Filho, nosso Senhor. Amém.
Bibliografia
BROWN, Raymond E. Comentario Bíblico San Jerónim. Tomo II. Madrid: Ed. Cristiandad, 1971.
SCHÖKEL, L. Alonso: Profetas I. Madrid: Ed. Cristiandad, 1980.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).