Prédica: Isaías 55.1-5
Autor: Roberto Ervino Zwetsch
Data Litúrgica: 2º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 04/06/1978
Proclamar Libertação – Volume: III
I – Com a presente tradução, procuro salientar o centro do texto, precedido pelo chamamento e seguido pelo testemunho.
Ah! Todos os que tendes sede, vinde às águas, e vos que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei,
vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço,
vinho e leite.
Por que gastais dinheiro com aquilo que não é
pão, e o vosso suor com o que não sacia?
Ouvi com atenção o que eu tenho a dizer
e comei do que é bom,
e vos deleitareis na abundância.
Inclinai os vossos ouvidos e vinde a mim,
ouvi e havereis de viver.
Então eu firmarei convosco uma aliança eterna, conforme as promessas que fiz a Davi.
Porque assim como eu o dei por testemunho aos
povos, isto e, como príncipe e governador dos
povos,
assim chamaras uma nação que não conheces,
e a nação que não te conhece correra para ti,
por causa da vontade de Javé, teu Deus,
e do Santo de Israel,
pois ele te glorificou.
II – Vinde! Comprai! Comei!
Imagine um vendedor de feira no seu ofício público de percorrer a rua anunciando as suas mercadorias, chamando a atenção do povo para si e para a sua oferta. Imagine a artimanha e a criatividade que esse homem deve ter para dar conta do seu negócio e assim fazer a sua vida.
É mais ou menos esta a figura que transparece no texto do Segundo Isaías, autor anônimo deste texto e cuja principal característica (cf. capítulos 40-55 de Isaías) foram suas palavras de graça, de salvação, de ânimo transmitidas a um povo humilhado como era o Israel do exílio. A figura usada pelo Segundo Isaías não é fortuita, antes evidencia com clareza o aguçado senso de observação desse profeta desconhecido, um homem inserido na vida do seu povo e que soube captar com inegável sensibilidade os problemas e as dificuldades vividas por esse povo, para então transmitir-lhe uma mensagem animadora, que pudesse fazer o povo levantar a cabeça e confiar novamente em Javé.
Mas a tarefa do profeta não é tão tranquila como se poderia pensar. O povo não está disposto a ouvi-lo. Não é lá tão receptivo como se estivesse ávido pela palavra de Deus. Este simplesmente não é o caso. Muito antes, o texto nos faz ver de quanta criatividade o profeta deve lançar mão para captar a atenção do povo (v.1). E ele não só tenta atrair-lhe a atenção com astúcia, mas polemiza com o povo. Questiona a vida do povo, o seu modo de viver, a finalidade do seu empenho na luta diária pelo pão cotidiano. Por que todo esse suor com o que não mata a fome? Esta a pergunta polêmica feita pelo profeta com uma ousadia incomum (v.2). Esta pergunta só pode ser feita por quem se sente unido ao povo e com ele está disposto a se comprometer na busca por uma vida livre e digna de filhos de Deus. O questionamento não vem de cima para baixo, mas brota do chão mesmo da realidade, da vida aceita como desafio e não como destino imposto e cujo sentido já está dado de antemão. Há que buscar o sentido da luta pelo pão de cada dia. Ele só é encontrado na práxis de quem se pergunta sempre de novo o por quê das coisas serem como são e por que podem ser diferentes.
Vinde, comprai, comei, gratuitamente; vinde, ouvi-me com atenção. Assim o autor procura chamar seus ouvintes famintos e sedentos. Mas, famintos e sedentos de quê? O que é que não sacia? Certamente o autor pensava em algo mais que o pão de cada dia. Ele fala em vinho e leite (v.l) e no prazer e abundância (v.2] que a comida e a bebida que ele tem a oferecer proporcionam.
Ouvi e havereis de viver! (v.3) Assim termina a primeira parte do texto. Há uma promessa de vida em jogo nesse chamamento. De uma vida qualitativamente distinta, que questiona a vida presente e não permite que ela continue como está, indefinidamente. Há um desafio nesse chamamento que não pode ser minimizado por uma espiritualização abstrata do tipo “ aceita Jesus Cristo em teu coração, e saciarás tua fome e tua sede de vida.
A promessa vem em seguida, de uma maneira direta e abrupta até certo ponto, pois o texto passa para a primeira pessoa do singular, revelando só agora quem é o verdadeiro sujeito deste singular chamamento.
III – Uma aliança permanente
Então eu firmarei convosco uma aliança permanente. É Javé, o Deus de Israel, quem fala. Ele é o sujeito do chamamento e o sujeito da promessa. E outro detalhe importante. Israel, o povo do exílio, miserável e profundamente enfraquecido, um povo não muito disposto a ouvir (!), é seu interlocutor. Outro sujeito, portanto, e não um objeto passivo. O povo precisa ser questionado para que abra os ouvidos e a boca, e fale novamente com seu Deus, como um filho com seu pai.
A palavra de Deus é fogo, nem de longe um mero apelo dramático que só atinge a superfície de um mar profundo como e a consciência e vida humanas. É este fogo que o Segundo Isaías é encarregado de transmitir de um modo todo peculiar.
Javé chama porque quer fazer uma aliança permanente com seu povo (!). O que esta aliança significa, fica recordado pelo esclarecimento que o profeta faz ao mencionar as promessas confiadas a Davi. O profeta apela para a tradição do povo de Israel. A tradição, a história de Israel oferece o modelo, mas este modelo se repete simplesmente. Ele, de fato, é reinterpretado. Trata-se da antiga aliança de Deus com seu povo, agora aliança permanente, que não terá fim e com uma diferença básica. Aqui não se menciona mais um mediador entre Deus e o povo, mas a aliança é feita convosco, com o próprio povo.
O problema da aliança preocupou, aliás, todos os profetas daquela época (ca.540 a.C.), como Jeremias e Ezequiel (31.31ss e 34.25 respectivamente). A aliança se refere ao compromisso assumido por Javé de construir uma casa para Davi, consolidar-lhe o reino e tratá-lo de pai para filho. O fato de ela ser uma aliança permanente é de grande importância para a mentalidade hebraica, porque só assim fica claro que se trata de um contrato benéfico.
O exílio significou para o povo de Israel uma quebra dessa promessa de Deus. Mesmo assim, no meio do povo deportado, duas esperanças foram se esboçando com o passar do tempo, com o sofrimento e a reflexão sobre as antigas promessas de Javé: a) a vinda do rebento, do messias, um novo rei procedente da casa de Davi; b) a transformação da antiga promessa, como a encontramos no segundo Isaías. Este profeta reinterpretou completamente a tradição messiânica, transferindo para o povo as promessas da aliança salvífica. O próprio povo passa a ser o mediador da bênção. E desta feita será uma aliança definitiva (berit olam).
IV – Com o povo, aberta aos povos
O v.4 relembra a promessa de graça feita por Deus a Davi. Mas ao caracterizar Davi como um testemunho, percebesse aí, da parte do profeta, mais do que um simples retrospecto histórico. O Segundo Isaías acrescenta ao dado histórico sua interpretação, um esclarecimento próprio importante ao título dado a Davi. Davi, como príncipe e governador dos povos, é testemunha de Deus, do Deus de Israel, um servo de Javé, portanto, e é assim que exerce sua autoridade. A autoridade de Davi, contudo, tem uma finalidade. Intervir como representante de Deus em favor do povo. Pode-se supor que, no momento em que o representante de Deus deixa de cumprir esta sua função, ele fique desmoralizado, supervalorizando o seu carisma, sendo rejeitado por Deus (cf. o caso de Saul e de tantos outros reis passados e presentes. Jr 22.13ss).
O nosso texto, fazendo referência a Davi como príncipe e governador dos povos prenuncia já aqui o que Israel há de se tornar. Ë no v.5 que aparece o que será a nova aliança, como ela se realizará. Israel recebe a promessa de Davi, surpreendentemente, intata e ainda mais. A noção de graça para Israel implicava, tradicionalmente, duas coisas: a) prosperidade, que no nosso texto equivale aos versos 1-3a; b) vitória sobre os inimigos (Gn 24.60). Isaías 55 vai além dessa concepção original. Mais uma vez notamos aqui aquela reinterpretação de que falávamos acima feita pela mão do Segundo Isaías, diga-se de passagem, feita de forma genial: porque aqui não se fala mais em vitória sobre os inimigos, mas antes numa fraterna reunião de povos estrangeiros, que vêm ao encontro de Israel após ouvirem o seu chamado. É como se houvesse uma anistia ampla e total em toda a terra. Todo o ódio aos inimigos ficam enterrado no passado, todo rancor e toda mágoa fica esquecida, e prevalece o perdão, a justiça, a igualdade, o direito a uma vida sacra, livre e bela. Certamente temos aí uma figura escatológica brilhante, o fim bem-aventurado que buscamos como povo de Deus. Mas, ainda que transpareça um germe de nacionalismo no texto (todos devem ouvir Israel e ir ao seu encontro!) , não há dúvida que temos aqui um espírito aberto, pois a nova aliança permanente prometida por Javé não vale mais exclusivamente para o povo de Israel, mas através dele para todos os povos. A aliança assume um caráter universal. Eis aí mais um traço característico desse genial profeta anônimo. E, detalhe importante, a aliança não será feita mais por meio de um rei político de cunho messiânico, mas por intermédio do povo humilhado do exílio, um povo pobre, enfraquecido e sem muita esperança. É com este povo que Javé promete firmar uma aliança perene, permanente, eterna. É o povo que se torna messiânico, se é que se pode afirmar isto.
Esta aliança acontecerá pela livre vontade de Deus. A gente poderia até dizer que isto é uma questão de honra para Javé. Foi Ele quem prometeu. Só a Ele, portanto, compete cumprir a promessa. A promessa, porém, é dinâmica como seu espírito. É histórica, isto é, vai se realizando, se mo di ficando, se ampliando através dos tempos. Mas é sempre aquela promessa original de Deus, que quer vida e salvação para aqueles que ama. O genial aqui neste texto é a transferência dessa promessa de Deus para o povo se estendendo a todos os povos.
O v.5 acaba falando em glorificação. Aqui eu gostaria de dizer apenas uma palavrinha. O termo já sempre assume uma associação com algo grandioso, fora do comum. Este texto serve muito bem como desmistificação, como corretivo para estas falsas imagens associadas ã ideia de glorificação. A glória de Israel consiste precisamente no seguinte: ser para os povos testemunha do Deus de Israel, do Deus que não olhou a baixeza dos seus servos (é quase forçosa a lembrança do Magnificat), mas os escolheu para com eles se comprometer numa aliança permanente, perpétua, de amor, de fidelidade e felicidade. A Israel não cabe mais o exercício de um poder prepotente e indiscutível sobre os povos estrangeiros, como foi o caso de Davi, mas ser testemunha de Deus aberta a uma fraterna reunião de todos os povos em Israel. Não estaremos aqui diante de uma prefiguração da glória de Deus realizada na cruz de Cristo? Pois a palavra testemunha tem sua raiz etimológica na palavra martírio (martiréo, em grego, significa testemunho, testifico, de onde procede a palavra portuguesa martírio, morrer testemunhando a fé cristã).
Em Isaías 55.1-5 temos, então, um chamamento incisivo e polêmico para uma nova aliança, permanente, que Javé quer firmar com o seu povo, humilhado e miserável do exílio, uma aliança que prenuncia um tempo de abundância no qual Israel será testemunha de Javé, e cuja principal característica será uma reunião fraterna de povos em Israel.
V – Ânimo gente!
Pregar a palavra de Deus não é tarefa fácil. Há que se esvaziar de muito preconceito e soberba para anunciar a mensagem alegre da libertação que o Evangelho oferece. Pois, não se é mensageiro por vontade própria, mas por incumbência. Por isto é que Amós podia falar como falava, com tanta ousadia. Ele não precisava ter medo. Recebeu uma tarefa. Eu não sou profeta, nem discípulo de profeta, mas boeiro e colhedor de sicômoros. Mas o Senhor me tirou de após o gado, e me disse: Vai, e profetiza ao meu povo Israel (7,15s).
Se um dia Lutero falou que o pregador deve ria olhar para a boca do povo para saber como pregar a palavra viva de Deus, hoje há que se levar em conta outro aspecto que talvez tivesse passado despercebido ao Reformador (afinal, suas preocupações eram outras). É o que o frei Carlos Mesters chama de encontrar o sentido para nós da mensagem bíblica. Ele então se explica: O intérprete deve assimilar, dentro de si, o mundo e os problemas daqueles que hoje escutam a Palavra de Deus. Assimilar o mundo e os problemas dos que hoje escutam a Palavra de Deus, dentro de si, este o aspecto que talvez não estivesse claro para o Reformador no séc. XVI e que é de suma importância para nós hoje.
Sob esta perspectiva, é preciso refletir sobre este texto e procurar ver o que significa falar da aliança permanente de Deus com o seu povo hoje. Nos pontos acima, deliberadamente, não me limitei a um estudo seco do texto. Mas foi como que uma reflexão a partir do que hoje estamos vivendo neste país, caracterizado por fome, miséria, uma afrontosa má distribuição da renda (l4% dos trabalhadores assalariados percebem 1/2 Salário Mínimo; 28% até l SM e 23% até 2 SM, isto é, mais de 70% dos assalariados brasileiros recebem até 2 SM), um regime autoritário e anti-democrático (o Al-5 está acima da Constituição), que não tem cuidado pela saúde de todo (!) o povo. Vivemos num país altamente dependente dos países grandes, onde uma minoria privilegiada de no máximo 30% (com muito otimismo) vive bem, enquanto os restantes 70% (entre os quais 25 milhões de menores abandonados) estão ao Deus dará esperando o carnaval (!) chegar.
O pregador deve estar consciente de tudo isto, sem se furtar a um exame crítico desta situação. Do contrário estará falando por cima de uma realidade que se torna dia a dia mais premente. Para tanto, ele deve se orientar por três perguntas que podem lhe ajudar na preparação do texto: o que estou lendo? a partir de que perspectiva ou com que olhos estou lendo o texto? e, finalmente, para quem vou falar sobre este texto?
Tendo presente tais perguntas e suas respectivas respostas o pregador poderá optar em que ponto colocará a ênfase da mensagem. Vejo duas possibilidades, podendo haver outras que cada um deverá descobrir.
Uma, seria a questão polêmica, muito bem colocada pelo Segundo Isaías, quando questiona a vida de seu povo, entrando numa forte discussão com ele. A gente até tem a impressão que, na realidade houve uma discussão entre o profeta e o povo no próprio culto. Que fique claro que este questionamento não é feito por qualquer pessoa. E feito por quem se sente unido e comprometido com o seu povo e o seu destino. Por alguém que está vinculado existencialmente ao futuro daquele povo, e não alguém que fala de cima, como se fosse um ente alado, tipo paraquedista, que fala o que bem entende e depois se retira como se nada tivesse a ver com as consequências que decorrem da sua pregação.
A outra, seria o aspecto da esperança que a promessa proporciona. O ânimo que a certeza da promessa desperta no enfraquecido e desesperança do povo. Não estamos sós e abandonados à nossa própria sorte. Deus está presente conosco, nas lutas e fracassos, comprometendo-se com nossa vida, numa aliança permanente. Aqui se poderá, tranquilamente, introduzir o elemento central da mensagem do Novo Testamento, onde o cumprimento cabal da promessa de Javé se realiza em Jesus de Nazaré, Crucificado. Deus conosco, Emanuel. Deus já não fala mais de cima, mas se faz homem, se encarna, se torna um de nós. Daí que a palavra de Deus não vem mais de cima, mas está entre nós, fazendo a liberdade dia a dia, como a semente que cai na terra, morre, germina e produz muito fruto, sem que o trabalhador perceba como isto acontece. Por isso também penso que cada vez mais a palavra deve ser democratizada no próprio culto, a mensagem sendo descoberta por todos no dialogo que se forma no encontro da vida com a palavra viva de Deus.
VI – Sugestões de leitura
Além de uma consulta a comentários bíblicos, gostaria de sugerir algumas leituras complementares, não necessariamente para o uso imediato na preparação de pregações, mas que servem para uma reflexão mais aprofundada para quem está disposto a ler o Evangelho sob a perspectiva dos mais fracos em vista de uma transformação mais global da sociedade brasileira.
– BERDIAEFF, Nicoles. El Cristianismo y la Lucha de Clases. Dignidad del Cristianismo e indignidad de los cristianos. 6ª. ed. , Madrid, 1963
– FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade, e outros escritos.Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1976.
– MESTERS, Carlos. Por trás das Palavras. Vol. I. Vozes, Petrópolis,1974.