A Palavra não voltará vazia!
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Isaías 55.10-13
Leituras: Mateus 13.1-9, 18-23 e Romanos 8.1-11
Autoria: Humberto Maiztegui Gonçalves
Data Litúrgica: 6° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 12/07/2020
1. Introdução
Sempre que nos deparamos com as três leituras para cada domingo, tentamos descobrir a ligação entre os textos ali indicados. Essa questão nem sempre é tão evidente. Nesse domingo há uma ligação mais forte entre a leitura de Mateus, na parábola do semeador, e o texto da pregação. Ambos apresentam a interação entre a palavra de Deus e a terra que a recebe gerando frutos. Já a ligação com o texto da Carta aos Romanos não parece tão evidente. A chave pode estar em Romanos 8.6, onde se usa a palavra grega fronēma. O significado desse termo pode ser “mente” ou “mentalidade”, como de fato a tradução de Almeida indica em 8.27: aquele que sonda os corações sabe qual é a mente do Espírito. Sendo assim, podemos entender Romanos 8.6 a partir de dois sentidos em conflito: o da carne (cuja mentalidade é de morte) e o do Espírito (cuja mentalidade é de vida e paz). Aplicando isso a Isaías 55.10-13 e Mateus 13.1-9,18-23, poderíamos dizer que a ação da Palavra revela a vida e a paz e, portanto, a ação produtiva da Palavra revela a presença do Espírito (solidário/comunitário) e denuncia a ação da carne (individualista/egoísta). Assim, o sentido geral das leituras seria que a finalidade da Palavra é revelar a vontade – mentalidade ou caráter – vivificadora e pacificadora de Deus na história humana. Vejamos mais profundamente essa relação no texto da pregação.
2. Análise exegética
O contexto
Essa parte do livro do profeta Isaías chamada de Dêutero-Isaías (40 – 55) corresponde ao contexto do final do exílio babilônico (próximo ao ano 538 a.C., quando o imperador Ciro da Pérsia decreta o fim do exílio; cf. Ed 1.1-3). A ascensão política do rei Ciro, visto como um “messias” enviado para libertar o povo do exílio (cf. Is 45.1) aponta para a ação de Deus na história e desafia a preparar o povo para retornar e reconstruir Israel. A pregação se dirige às “vítimas atingidas pela catástrofe”, o que faz necessário enfrentar “a desesperança e o desespero de seus contemporâneos que se lamentam: ‘Javé me abandonou’ (49.14; 40.27; cf. 45.15: ‘um Deus que se esconde’)”, gerando “uma contradição entre a palavra do profeta (sic) e a realidade com que o povo convive” (SCHMIDT, 2002, p. 245-246). Boa parte desses textos foram apresentados de forma oral. Schmidt afirma que “na base de Is 40-55 estão palavras isoladas, pronunciadas oralmente, que foram posteriormente ordenadas e transformadas em unidades temáticas e querigmáticas” (SCHMIDT, 2002, p. 247). O contexto histórico apresenta o desafio de fecundar a história de um povo destruído e desanimado, e para isso a palavra de YHWH precisa ser espalhada ou semeada.
O texto
Por se tratar de poucos versículos, foi feita uma tradução própria que permitisse ver com mais clareza as ligações internas do texto:
V. 10 – Porque, como aquela que desce – a chuva e a neve – desde os céus e para onde não volta. Porque, se molha a terra, faz nascer, faz germinar, e da semente ao semeador e pão ao que come.
V. 11 – Assim será a minha palavra, aquela que sai da minha boca, não voltará para mim vazia. Porque se faz aquilo que eu desejo, cumpre aquilo que eu lhe mandei.
V. 12 – Porque na alegria voltarás e na paz sereis trazidos, porque os montes e as colinas baterão palmas.
V. 13 – E ao invés de espinheiro, se erguerá o cipreste e será para YHWH por nome e por sinal eterno que será cortado.
O texto tem um ritmo próprio, bem discursivo, marcado pelo uso abundante de porque (em hebraico kiy) e “aquilo/aquela” (em hebraico asher). No centro fica claramente a primeira parte do v. 11, onde faz referência à “minha palavra” (em primeira pessoa), que se refere a YHWH, embora destoe da menção a YHWH no v. 13, em terceira pessoa. As figuras de linguagem estão diretamente ligadas à natureza, não como teofania (manifestação divina por meio de fenômenos naturais), mas como analogia, seguindo a eco-lógica, que faz a criação ensinar sobre Deus, e se alegrar junto com o povo quando a palavra de YHWH se realiza. O advérbio condicional “se” – também destacado em negrito – é colocado antes e depois do centro, cumprindo um papel importante na apresentação do futuro a ser gerado. Ainda chama a atenção no v. 13 o uso das palavras “ao invés” (tahat), usadas para fazer comparações muito semelhantes a que aparecem em Trito-Isaías (56 – 66), especialmente no seu centro (Is 60.17; 61.3,7).
Intencionalidade
A síntese teológica do texto está no versículo 11a. O texto faz um percurso temporal entre o presente e um futuro condicional (se…). O versículo 10 é o presente, convidando as pessoas que ouvem a observar o movimento da água e ou da neve ao regar a terra. A imagem evoca a época do ano quando o degelo das montanhas do Líbano fazia a água circular pelo rio Jordão e seus afluentes e promovia o florescimento e a germinação do solo. Certamente uma época de esperança! A lembrança desse ciclo eterno convida a acreditar que Deus – tendo como sinal a ascensão do Império Persa e a progressiva derrota do Império Babilônico – está fazendo algo semelhante na história, promovendo que a água e a neve (contidas pela opressão e o exílio) gerem uma nova história! Os sinais estão na natureza que começa a brotar, onde há felicidade para quem semeia e alimento para quem tem fome. No v. 11b o texto aponta para o futuro, lembrando que a palavra de YHWH é capaz de realizar transformações semelhantes, mas isso “se”. A Palavra precisa fazer a vontade divina que a gerou (“o que eu mandei”). Está implícita a possibilidade de que a Palavra seja desviada (como a água pode ser), impedindo que realize seu objetivo vital. Então o v. 12 apela para uma fé histórica e concreta que se traduz na volta das pessoas oprimidas para essa nova vida. Como sinal, a natureza celebra a libertação de forma estrondosa. Montes e colinas batendo palmas! Não como um terremoto aterrorizante, mas um som alegre e festivo de palmas. Então chegamos ao intrigante v. 13, que se apresenta como um manifesto do novo tempo, lembrando – no sentido contrário – a parábola de Jotão em Juízes 9.7-15, onde o espinheiro acaba com todas as árvores da floresta. No final do livro dessa comunidade, apela-se ao urgente compromisso de reverter a realidade de sofrimento e morte. Não há mais o que esperar, o tempo é o presente, a palavra já está descendo e molhando o chão da história, apenas se faz necessário acreditar e superar o medo.
3. Meditação
Palavra sinal
Hoje, como na metade do século 6 a.C. entre o povo exilado na Babilônia, vivemos desafios imensos e nos sentimos derrotadas e derrotados, com pouca ou nenhuma esperança. Hoje os sinais naturais – embora ainda possa ser apreciada a exuberante beleza da natureza – também apontam para sofrimento e morte. Parece que está prevalecendo, até entre pessoas que dizem partilhar de nossa fé cristã, mais a mente egoísta da carne do que a mentalidade solidária do Espírito (cf. Rm 8.6). Mas a história sempre tem muitos lados. Assim como a natureza apresenta beleza e destruição, assim a história apresenta desesperança e encorajamento. Se, de um lado, vemos o preconceito, a discriminação, a exclusão, a exploração humana e ambiental, avançar quase que sem obstáculos, por outro lado, vemos comunidades que vivem, plantam, lutam, cantam, gritam, ocupam espaços, dançam, proclamam o que os povos indígenas chamam de “bem viver” e que na Bíblia e no texto de Dêutero-Isaías para esse domingo é chamado de “vida e paz”. O desafio de hoje, como foi para aquela comunidade exilada na Babilônia, é ver os sinais certos, os sinais eternos, que sempre estão aí, como o próprio Deus, para animar as pessoas que querem que a palavra da vida cumpra seu propósito.
Palavra ação
Nossa teologia é desafiada, pois ela não pode “conter” a palavra, deixá-la presa dentro de nossos templos ou comunidades, ou apenas como um “luxo” para quem tem fé. As barragens são sempre perigosas, pois inundam e matam. Nossa eco-teo-lógica deve fluir e chegar aonde quem semeia espera a semente e quem tem fome espera o pão. Para que a teologia flua, temos que “abrir” e não “fechar”. O texto de Isaías coloca a água e a neve no fluxo da história, pois a história não volta atrás! Quando a palavra divina fermenta a história, muda-a definitivamente, sem volta. Então, por que temos a sensação de que a história volta e que os males do passado, mais do que as coisas boas, se repetem? Se formos seguir a eco-teológica desse texto, isso pode ser sinal de que a terra (isto é, a história) não foi suficientemente molhada pela palavra transformadora. Algo semelhante ao que aponta a parábola do semeador em relação às sementes que caem na beira do caminho, ou nas pedras e no meio dos espinheiros. Para que seja mais eficiente, é necessário que a palavra se traduza em movimento! No caso das pessoas daquele tempo, era o movimento, a desacomodação, de depois de mais de 40 anos, uma nova geração, começar tudo de novo. Hoje precisamos lembrar o custo que teve a história de autoritarismo que tanto mal fez ao povo do Brasil e a outros povos da América Latina. Acreditávamos que a democracia tinha sido reconquistada, que avançávamos no pagamento das dívidas históricas com o povo negro escravizado e os povos indígenas exilados em sua própria terra. Acreditávamos que as mulheres, as crianças, as pessoas idosas, as pessoas com deficiência, as pessoas LGBTI, as pessoas migrantes, teriam um futuro melhor, em que seriam vistas em pé de igualdade com todas as outras pessoas. Mas a história nos surpreendeu e nos desafia a proclamar por meio de atos concretos de solidariedade, com a mente do Espírito, que Deus está aqui presente e pode nos conduzir para a festa final, onde até os montes e colinas baterão palmas, e onde a aliança da vida e da paz nunca será quebrada.
4. Imagens para a prédica
Na natureza/criação
Em primeiro lugar, o texto nos convida a mostrar os contrastes na natureza. De um lado, a natureza viva, deslumbrante, e do outro lado, a destruição como a de Mariana, Brumadinho, vazamentos de óleo, desmatamento, envenenamento etc.
Na humanidade/igreja/comunidade
Assim como podemos mostrar a beleza e a destruição na natureza, na humanidade e na igreja/comunidade podemos mostrar a solidariedade, a partilha, a ação transformadora de pessoas, comunidades, movimentos, que não se dobram diante dos sinais de morte, mas dão sinais de vida e de paz e, por outro lado, mostrar a imagem da igreja (templos e salões) vazia, comunidades voltadas para si mesmas, e do lado de fora pessoas mendigando e sofrendo violência. Diante dessas imagens, podemos nos perguntar: onde está a Palavra que liberta e transforma?
Nos sonhos e horizontes futuros
Qual é o futuro que podemos sonhar com Deus que envia essa palavra que não voltará vazia? Temos essa fé histórica que acredita que no lugar de espinheiros podem brotar ciprestes e que haverá um mundo onde haja sementes boas para quem semeia e pão para todas as pessoas com fome? O que nos impede de acreditar nisso? Esse muro entre o presente desesperador e os bons sonhos da Palavra pode ser superado pela mentalidade do Espírito (Rm 8.6)? Como? Onde já vemos a Palavra transformando? Sentimos que a Palavra já está nos transformando ou ainda está contida longe de nossos sonhos?
5. Subsídios litúrgicos
Algumas boas músicas, como Isaías 40 – 55, nos desafiam no mesmo sentido transformador e têm sua história. A primeira e muito bem conhecida é “Momento novo”. É bom que antes de cantar a música lembremos de onde ela veio. O autor dessa música, o pastor metodista Ernesto Barros Cardoso – falecido em 19 de dezembro de 1999 – disse: “Momento novo é uma das canções mais apreciadas pelos encontros ecumênicos e populares. Ela expressa o que sentimos, pensamos e desejamos: estarmos juntos na mesma roda, em defesa da vida, respondendo ao chamado de Deus. Unindo o cordão enfrentaremos as forças que produzem a morte em nosso bairro, cidade, país… Sem discriminar, excluir ou julgar os que entram nessa roda” (CEBI). Outra música que vai nesse mesmo sentido é “Que estou fazendo se sou cristão”, cuja história de composição remonta a 1967. Conta Ivan Pereira Guedes que: “[…] em pleno regime militar no Brasil, João Dias de Araujo, então com 36 anos, fazendo mestrado em Princeton, EEUU, foi desafiado pelo maestro João Wilson Faustini a compor um hino que tratasse da realidade brasileira e desafiasse os evangélicos a tomarem uma atitude bíblica diante da situação caótica do país. Nasce então a letra do cântico ‘Que estou fazendo?’, conhecido mais pela primeira linha do poema ‘Que estou fazendo se sou cristão?’, que veio a ser inserido em diversos cancioneiros denominacionais e gravado por diversos cantores evangélicos nacionais” (Historiografia Protestante).
Bibliografia
CEBI. Disponível em: <https://cebi.org.br/noticias/deus-chama-a-gente-pra-um–momento-novo-ha-19-anos-partia-o-autor-desta-musica/>. Acesso em: 29 jan. 2019.
HISTORIOGRAFIA PROTESTANTE. Blog. Disponível em: <http://historiologiaprotestante.blogspot.com/2018/05/que-estou-fazendo-se-soucristao-musica.html>. Acesso em: 29 jan. 2019.
SCHMIDT, Werner. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal,2002.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).