Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Isaías 56.1, 6-8
Leituras: Mateus 15.21-28 e Romanos 11.1-2a, 29-32
Autor: Norberto da Cunha Garin
Data Litúrgica: 10º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 17/08/2014
1. Introdução
O texto de Mateus reflete a discriminação que existe em qualquer grupo humano em relação ao diferente. O sentimento corporativo acirra-se com facilidade em qualquer associação humana. Não era diferente no povo de Deus do primeiro século. De certa maneira, isso se reflete na resposta de Jesus (judeu) à mulher (cananeia). Na Epístola aos Romanos, o autor aponta para a misericórdia divina através da qual, em todos os tempos, Deus inclui todos.
Esse mesmo tema é tratado no texto da prédica. Entretanto, quando se passa de Isaías 55.12-13 para Isaías 56.1, é complicado entender a sua dinâmica. No final do Dêutero-Isaías, a narrativa está falando sobre uma festa, a festa do retorno, mas o Trito-Isaías é inaugurado por uma séria advertência na direção do cumprimento da justiça.
É possível perceber que o contexto social alterou-se substancialmente. Não se trata mais da comunidade dispersa no exílio, mas de uma comunidade que já está reassentada em sua terra, já está estabelecida, que poderia ser a comunidade judaica pós-exílica, dona de um cotidiano de regularidade, mas persistem os problemas de infidelidade para com Javé. O tempo é outro, e o texto reflete um período que antecede a reconstrução do Templo, mas após o retorno do exílio.
Entretanto, é inegável que o problema da dispersão do povo de Israel persiste, mas agora os destinatários do texto são outros. Talvez seja esse repetido enfrentamento dos mesmos problemas que constitua o eixo estrutural de toda a obra.
2. Considerações sobre o texto
V. 1 – O versículo abre com uma introdução oracular: “Assim diz o Senhor […]”; a mesma forma como encerra o conjunto (56.1-8) com a temática do Trito-Isaías: “Assim diz o Senhor Deus, aos dispersos de Israel […]”. Trata-se aqui de uma ligação de redação; é possível perceber uma distinção significativa entre os v. 1 e 2; o v. 1 é uma espécie de introdução a toda a sequência até o v. 8; são expressões que marcam a linguagem profética; a sequência (2-5) remete a uma linguagem sapiencial de caráter poético sobre a temática do projeto de Javé. Nota-se, por essa introdução, que a comunidade pós-exílica enfrentava conflitos sérios de ordem ética: o direito (juízo) e a justiça. Não se trata aqui de uma preocupação com o cuidado em guardar leis, mas com os direitos humanos (Os 12.7; Sl 106.3). Há dois termos que definem o projeto de Javé: minha salvação (que se aproxima) e a minha justiça (libertação/prestes a aparecer). A advertência sobre as construções humanas dos que retornaram da Babilônia reporta-se às ações imorais praticadas por seus opressores durante o desterro. Esse v. 1 trata de uma exortação à prática do projeto de Javé. A comunidade estabelecida precisa locar-se em ordem para receber a graça do projeto de Javé. Entretanto, fica bem marcado que a salvação/libertação é dele. É possível perceber semelhanças dessa perícope inicial com a do Dêutero-Isaías (40.1-11): o da preparação para o estabelecimento do novo projeto.
V. 6 – Os estrangeiros que estavam fixados em Israel, mas que não aderiam aos rituais de Javé, tinham certos direitos. Entretanto não podiam participar de todos os ritos religiosos. Havia estrangeiros que desejavam permanecer autodiscriminados para preservar suas tradições e sua cultura de origem. Mas aqueles que haviam aderido a Javé, que se submeteram à circuncisão, possuíam direitos em sua totalidade, assim como os nativos. Essa adesão não significava necessariamente conversão. Quando se reporta a filhos e filhas (56.5), possivelmente está se referindo aos filhos de judeus da diáspora, nascidos no estrangeiro, que eram tidos em menor consideração do que os que nasciam em Israel. O foco não é a salvação das nações, mas a de Israel, aliás, como de resto todo o livro do profeta. A condição de ser “servos seus” (de Javé) não se refere necessariamente ao culto, mas à condição de pertencer ao povo judeu pela guarda da aliança, aqui, a da guarda do sábado. Os critérios para essa pertença são três: aderir, amar (a Javé) e guardar o sábado. Saliente-se que o sábado é a única exigência objetiva, enquanto as demais são bastante subjetivas.
V. 7 – Pode-se perceber aqui o contexto litúrgico. “Também os levarei […]” é porque estavam alijados da sociedade e da terra. Para o povo do deserto, a inclusão significava levar à terra prometida; para os estrangeiros do Trito-Isaías, trata-se de introduzi-lo na cidade e no culto. Esse será um tema recorrente no Trito–Isaías. “E os alegrarei na minha Casa de Oração […]” denota a inclusão de quem não podia participar do coração da vida judaica, que era o culto. Não participava porque era proibido por determinações litúrgicas, visto que se teria contaminado na andança por outros povos. Segue-se a descrição dos atos litúrgicos essenciais do culto judeu, que serão aceitos por Javé. Essa fórmula aponta para o fato de que quem qualifica a oferta não é quem oferece, mas o ofertado. “Será chamada Casa de Oração para todos os povos” aponta para a denominação atribuída por Javé. É ele quem dá o nome, pois é dele o seu domínio. É importante tomar cuidado com as leituras escatológicas, pois aqui Isaías está se reportando aos habitantes das distintas colônias judaicas da diáspora. Não se referem à abertura ecumênica para outras religiões. Quando citado no Novo Testamento (Mc 11.15-19), deve-se perceber que a ênfase se concentra na oposição “casa de oração” versus “covil de salteadores”. Aquilo que hoje pode ser considerado um problema menor, no tempo do Trito-Isaías tratava-se de um desafio a ser superado: a inclusão litúrgica de quem não havia nascido ou permanecido em terras da Judeia.
V. 8 – A propósito de conclusão dessa perícope aparece a temática do Trito–Isaías: a reunião dos filhos de Israel que se dispersaram pelo mundo conhecido. Trata-se de uma conclusão de oráculo rebuscada, pois acrescenta um título com conotações religiosas e políticas: “senhor” Javé. Colocado assim, reporta-se ao poder de domínio do proclamador do oráculo. Observe-se que o domínio de Javé está reforçado pelo subtítulo: “que congrega os dispersos de Israel”. Cumpre, dessa maneira, a promessa “trarei a tua descendência desde o Oriente e a ajuntarei desde o Ocidente” (Is 43.5b), estabelecendo, aqui também, uma costura com o Dêutero-Isaías. Os temas “reunir” e “congregar” relacionam-se à diáspora, mas também se reportam à promessa do êxodo, como é acentuado por Jeremias em dois momentos de sua obra, enfatizando o domínio e o poder de Javé: “Portanto, eis que vêm dias, diz o SENHOR, em que nunca mais se dirá: Tão certo como vive o SENHOR, que fez subir os filhos de Israel do Egito; mas: Tão certo como vive o SENHOR, que fez subir os filhos de Israel da terra do Norte e de todas as terras para onde os tinha lançado. Pois eu os farei voltar para a sua terra, que dei a seus pais” (Jr 16.14-15). Da mesma sorte: “Portanto, eis que vêm dias, diz o SENHOR, em que nunca mais dirão: Tão certo como vive o SENHOR, que fez subir os filhos de Israel da terra do Egito; mas: Tão certo como vive o SENHOR, que fez subir, que trouxe a descendência da casa de Israel da terra do Norte e de todas as terras para onde os tinha arrojado; e habitarão na sua terra” (Jr 23.7-8). Trata-se de uma atualização das promessas patriarcais (Gn 15.7).
Isaías 56 inicia com um apelo à comunidade pós-exílica, chamando-a ao dever ético como forma de preparação para a graça que se aproximava sobre Israel. O retorno à pátria não garantira a guarda desses preceitos, criticada nos opressores de antanho. É necessário estar em condições para participar desse projeto, e para tanto um cuidado moral era urgente, porque tudo já estava às portas. Não apenas o projeto seria implantado em breve, mas o próprio Javé iria manifestar-se, como fizera em outras ocasiões.
Às vezes, esse texto é interpretado como uma abertura de Israel às nações, mas de fato o que está em jogo é a ruptura da discriminação contra os israelitas que nasceram fora e que passaram a habitar Israel depois do retorno do exílio. O problema era a discriminação a que eram submetidos. Amar a Javé e guardar o sábado passaram a ser condições sufi cientes para ser tratados no ambiente cúltico da mesma forma que os nativos. Não se pode perder de vista que o culto era o coração da vida deles tanto religiosa como social e política. A perícope encerra com um oráculo de quem tem o domínio sobre todos os dispersos de Israel e a promessa de que a busca pelos filhos e filhas continuará.
3. Considerações sobre a mensagem
O sacrifício e as lutas de uma comunidade acabam por uni-la tanto na batalha como na vitória. A dinâmica e a mobilização das pessoas envolvidas com suas bandeiras fortalecem os seus laços e compactam o grupo. Disso surgem as identidades, que normalmente se transformam em institucionalizações mediante o estabelecimento de normas. A mobilização e a luta, muitas vezes construídas contra a rigidez das institucionalizações, acabam reproduzindo, com o passar do tempo, a mesma rigidez. É comum isso acontecer com mobilizações sociais, políticas e também com os movimentos religiosos. Da resistência acaba se caindo no mesmo pecado do opressor. Reproduzem-se normas, leis e costumes que por si constroem barreiras discriminatórias.
O texto de Isaías reflete bastante essa tendência. Depois do retorno a Jerusalém, a memória das lutas pela libertação do povo e o sacrifício para a reconstrução foram se dissipando e cresceu a tendência da purificação social e religiosa. Nesse contexto, a vontade de Javé aparece através da palavra profética que anuncia a misericórdia infinita de quem busca e acolhe. O estrangeiro não será excluído do povo eleito. Ele também é um irmão e como tal está inserido no plano de libertação.
Ao olhar para a comunidade, é possível perceber como são construídas barreiras para selecionar e afastar os desconhecidos. São “estrangeiros” que buscam, no aconchego do povo da fé, o acolhimento necessário para sua alma cansada. Com o estabelecimento de barreiras normativas institucionais, a comunidade, querendo preservar-se, afasta a graça de Deus daqueles que mais necessitam dela.
Deus não rejeita seus filhos e filhas. Para Ele, não há mulher cananeia nem estrangeiro. Não se pode transformar a comunidade num gueto de “santos” e condenar à exclusão os necessitados da graça divina.
4. Imagem para a prédica
É uma oportunidade para a comunidade olhar para si mesma e tentar identificar os elementos de exclusão. Caso a comunidade se reúna num local com dificuldade de acesso, com escadarias etc., coloque-se uma cadeira de rodas no ambiente do culto, bem à frente do púlpito, e construa-se um cartaz com dizeres reflexivos, como por exemplo: você conseguiria vir de sua casa até aqui numa cadeira de rodas sem o auxílio de outra pessoa?
Outra possibilidade seria pedir que as pessoas coloquem uma venda em seus olhos e tentem acompanhar as orações e os cânticos da liturgia. De outra sorte, pergunte à comunidade se uma pessoa que não consegue ouvir teria condições de entender a prédica do dia?
Caso esses exemplos não ajudem, quem sabe monte um cartaz com fotos de pessoas pertencentes a etnias e classes sociais diferentes daquelas que participam da comunidade e escreva uma questão bem no centro: por que essas pessoas não estão conosco?
A partir de uma ou mais imagens, construa a prédica sobre a exclusão dos diferentes, provocada pela própria comunidade.
5. Subsídio litúrgico: oração dialogada
L: Deus de amor, permite-nos acolher, com carinho, todas as pessoas que se achegarem à nossa comunidade.
C: Que a tua misericórdia, Senhor, mude a minha forma de acolher as pessoas diferentes!
L: Que a tua graça, Senhor, retire o véu de nossos olhos e ajude-nos a perceber, nos diferentes, a tua santa imagem.
C: Que tu, Senhor, nos ajudes a preparar a nossa comunidade e os nossos corações para acolher todos os sofridos que se achegarem a nós.
L: Recebe, Senhor, a nossa disponibilidade para receber e abraçar todos os que buscarem a tua graça entre nós.
C: Transforma a minha vida para que eu possa ter um coração sempre hospitaleiro.
Bibliografia
CROATTO, J. Severino. Isaías: a palavra profética e sua releitura hermenêutica. v. III. Petrópolis: Vozes, 2002.
KALMBACH, Pedro. 9º Domingo após Pentecostes. In: Proclamar Libertação, v. 35. São Leopoldo: Sinodal, 2010.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).