Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Isaías 60.1-6
Leituras: Mateus 2.1-12 e Efésios 3.1-12
Autor: Carlos Artur Dreher
Data Litúrgica: Epifania de Nosso Senhor
Data da Pregação: 06/01/2014
1. Introdução
O texto proposto para a pregação já foi trabalhado cinco vezes em Proclamar Libertação, a saber, nos volumes V, VIII, XVII, XXIV e XXIX – nas duas primeiras vezes, de forma isolada; nas três últimas, na relação com os textos de Mateus 2.1-12 e Efésios 3.1-12, como ocorre também desta vez, sempre no contexto da festa de Epifania. Já há, portanto, uma série de excelentes reflexões disponíveis para a elaboração da pregação.
Buscando estabelecer uma relação entre os três textos, percebe-se que todos eles se referem aos povos fora da esfera do judaísmo. O autor da Epístola aos Efésios afirma, em 3.6, que “os gentios são co-herdeiros, membros do mesmo corpo e co-participantes da promessa em Jesus Cristo por meio do evangelho”. Mateus 2.1-12 relata a visita dos magos do Oriente. Isaías 60.1-6 anuncia que as nações se encaminham para Jerusalém (v. 3). As alusões aos “reis” (v. 3) e a “ouro e incenso”, que todos os que virão de Sabá trarão, embora certamente tenham contribuído para que cristãos estabelecessem uma relação com os magos descritos por Mateus, referem-se apenas ao anúncio de que Jerusalém se tornará o centro a partir do qual o Senhor reunirá todos os povos.
A partir dessas relações, pode-se definir o tema deste culto de Epifania: a Revelação que vem do alto apresenta-se como luz para todas as nações.
2. Isaías 60.1-6
Desde Bernhard Duhm (1892), os caps. 56-66 tornaram-se conhecidos como um conjunto literário distinto no Livro de Isaías. Convencionou-se chamar esse conjunto de Trito-Isaías, embora se reconheça que dificilmente tais capítulos provenham de um mesmo profeta. É bem provável que se trate de uma composição de palavras provenientes de épocas diferentes, ainda que todas sejam datáveis para os anos posteriores ao exílio babilônico.
Contudo, há certo consenso de que os caps. 60-62 devem representar palavras do mesmo profeta, que teria atuado em Jerusalém nos anos imediatamente após o final do exílio, em 539 a. C., mas ainda antes da reconstrução do templo, ocorrida entre 520 e 515 a.C. Os capítulos 60-62 são considerados o núcleo de Trito-Isaías e apresentam exclusivamente palavras de salvação.
Em 539 a. C., o decreto de Ciro (cf. Ed 6.3-6; compare com 2Cr 36.22-23 e Ed 1.2-4) propunha a reconstrução do templo de Jerusalém às despensas do tesouro persa, bem como a devolução dos utensílios do templo, levados como espólio por Nabucodonsor para a Babilônia. Porém é pouco provável que já naquele tempo exilados tenham voltado da Babilônia para a Palestina. É mais provável que isso tenha ocorrido por volta de 527/6 a. C., quando o rei persa Cambises empreendeu uma campanha militar contra o Egito. Mesmo assim, poucos voltaram. Cidade e templo estavam destruídos. A motivação para o retorno era mínima.
A situação alterou-se com a morte de Cambises em 522 a. C. Como ele não deixara sucessores, o império entrou em convulsão, ainda que por pouco tempo, numa disputa entre os que pretendiam a coroa. Ainda em 522 a. C., Dario saiu-se vencedor. Contudo aquele breve espaço de tempo parece ter reacendido a esperança por independência em Judá em torno da figura do davidida Zorobabel. É nesse contexto que iniciam as obras de reconstrução do templo, abandonadas pouco depois, até que, em 520 a. C., sob forte influência de Ageu e Zacarias, foram retomadas.
Parece-me ser esse o contexto em que Trito-Isaías pronuncia suas palavras. A situação não é das melhores. Conforme Ageu 1.6, as colheitas são fracas. Come-se pouco. A pobreza é intensa. Não obstante, a perspectiva da reconstrução do templo ligada à figura de Zorobabel representa a possibilidade de irrupção de algo novo. A glória do Senhor aparece resplendente sobre Jerusalém ainda em ruínas.
O recorte proposto para a pregação não me parece adequado. A perícope deveria estender-se pelo menos até o v. 7, embora todo o cap. 60 esteja sob o mesmo enfoque da nova esperança. A relação entre os v. 6 e v. 7 estabelece-se no paralelismo entre “a multidão de camelos e dromedários de Midiã e Efá” com “todas as ovelhas de Quedar”, que virão e reunir-se-ão junto de Jerusalém.
O texto estrutura-se em duas partes: v. 1-3, em que o tema é a glória do Senhor que nasce (v. 1; 3) sobre a cidade que resplandece sob a luz de Deus, a “tua luz”; e v. 4-7, em que se conclama a olhar em torno e ver o ajuntamento tanto de “teus filhos e tuas filhas” (v. 4) como das nações”.
V. 1-3 – A conclamação no início da perícope – “dispõe-te” – significa literalmente: “põe-te de pé”. A expressão pressupõe a ruína. A cidade e o templo estão no chão. A catástrofe de 587 a. C. ainda é visível nos restos deixados pelos babilônios. O profeta conclama essas ruínas a se erguer. A imagem evoca a passagem de Ezequiel 37, na qual os ossos secos que jazem no vale reassumem seus corpos e põem-se em marcha, em decorrência da ordem do Senhor. É hora de reerguer-se! É hora de brilhar, de resplandecer!
Tal brilho, porém, não se origina de luz própria. A “tua luz” que vem é a luz de Deus. É sua glória que nasce sobre o montão de ruínas. Como o nascer do sol, a luz do Senhor nasce sobre a cidade caída. Por isso ela pode levantar-se.
Com a luz que nasce sobre aquele montão de ruínas, a terra inteira e todos os povos são obscurecidos: jazem nas trevas (v. 2). O Senhor e sua glória resplandecem sobre Jerusalém. Tal resplendor ofusca tudo o que está à volta: terra e povos. Sobre os que jaziam nas trevas nasce a luz ofuscante de Deus, e os que pareciam estar na luz se veem agora nas trevas. A imagem evoca Isaías 9: “O povo que andava em trevas viu uma grande luz…”
Para essa luz resplendente volta-se o mundo. Nações e reis encaminham-se para o resplendor “que te nasceu”.
V. 4-7 – “Levanta em redor os olhos e vê.” De todos os lugares, de todas as partes do mundo, nações e reis ajuntam-se e vêm para a cidade. Entre os que vêm estão também “teu filhos e tuas filhas”, que estavam dispersos. Os primeiros chegam de longe; as segundas são trazidas nos braços.
E agora, sim, “rejubila, filha de Sião!” Verás, teu júbilo e tua alegria serão tão intensos, que teu coração estremecerá e estará por arrebentar-se de felicidade. Todas as nações virão até ti e trarão suas riquezas: a abundância do mar, multidão de camelos e dromedários, ouro e incenso, ovelhas e carneiros, esses últimos talvez subindo espontaneamente para o altar, como sacrifícios voluntários à glória do Senhor. E a casa da glória do Senhor – o templo, que se espera já reconstruído – será tornada, por Ele mesmo, em mais gloriosa ainda.
Enfim, é Epifania. Deus mesmo se manifesta a partir do alto. Sua luz nasce sobre uma Jerusalém em ruínas e atrai o mundo inteiro, reis, nações, camelos e dromedários, ovelhas e carneiros, seres humanos e animais, para junto de sua glória.
3. Caminhando para a pregação
O dia 6 de janeiro era, em minha infância, o dia em que os “reis” magos do presépio de minha avó chegavam, pela manhã, ao lugar da manjedoura. Era também o dia em que se desmontava a árvore de Natal, que, se ainda estivesse verde e viçosa, passava para o vizinho de minha avó, católico ortodoxo grego, que na noite daquele dia celebraria o Natal. 6 de janeiro é Natal na tradição oriental, ortodoxa.
6 de janeiro é o dia em que a colônia açoriana aqui no Rio Grande do Sul festeja o Dia de Reis. Os ternos de reis, compostos por três músicos, visitavam as casas do lugar, cantando canções natalinas. Eram saudados pelos donos das casas, que lhes ofereciam comida e bebida.
Vê-se por aí que o dia 6 de janeiro não é conhecido como Epifania. É, sim, o Dia de Reis. Tudo isso leva a recordar e recontar a narrativa de Mateus 2.1-12, embora o texto não diga que foram reis, mas magos do Oriente. Pelos presentes – ouro, incenso e mirra – deduz-se que foram três. A tradição apócrifa dá-lhes, inclusive, os nomes de Gaspar, Baltazar e Melquior, sendo um dos três negro.
A passagem de Isaías 60.1-7 menciona reis do Oriente – Midiã e Efá (certamente a leste da Palestina), Sabá (talvez na Etiópia ou no atual Iêmen), Quedar (no sul da Arábia), Nebaiote (entre o Eufrates e o Mar Vermelho, talvez a região de Petra). Também fala de ouro e incenso. Esses pequenos detalhes estabelecem uma bela relação entre Trito-Isaías e Mateus.
Contudo, há um detalhe a mais. Os magos do Oriente vão a Jerusalém à procura do “recém-nascido rei dos judeus”. Trata-se de uma Jerusalém reconstruída, com um novo e belo templo, ampliado por Herodes. Porém não é ali que se encontra o menino. É em outro lugar que a estrela-guia para. É numa estrebaria que o menino se encontra, deitado em uma manjedoura.
Esse detalhe é de suma importância. Em Isaías 60.1-7, a Epifania dá-se sobre uma cidade e um templo em ruínas, onde nada lembra a glória de Deus. É ali que a luz de Deus se manifesta. Sobre as ruínas resplandece a luz do Senhor.
Assim também ocorre Epifania na passagem de Mateus. Não é no palácio, nem no templo, que a glória de Deus se manifesta, mas numa estrebaria fedorenta. Numa manjedoura, cuja palha ainda permite ver a baba do boi e do burro, resplandece a luz gloriosa de Deus. Sobre as ruínas do mundo se manifesta a glória do Senhor.
Isso nos leva a pensar na cruz. Também no Gólgota, a luz de Deus manifesta-se sobre a ruína humana. Não é uma luz gloriosa como a da manhã da Páscoa. É uma luz tênue, que mais parece estar em extinção. “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” Como a Jerusalém destruída, como a mísera estrebaria – aí está o Filho de Deus, ensanguentado, trespassado, ruína humana.
A passagem de Efésios 3.1-12, por sua vez, leva-nos novamente ao âmbito dos povos, dos gentios, que são “co-herdeiros, membros do mesmo corpo e co-participantes da promessa em Cristo Jesus por meio do evangelho” (v. 6). Novamente, como em Isaías 60.1-7 e Mateus 2.1-12, Epifania estende-se a todos os povos do mundo.
Ainda que não se atribua mais a Carta aos Efésios a Paulo, considera-se que ela deve ter origem na escola paulina na Ásia Menor. Embora a carta não a aborde de maneira tão explícita como Paulo, a teologia da cruz ainda subjaz a seu texto, como, por exemplo, em 2.16, onde se afirma que foi por intermédio da cruz que judeus e gentios foram reconciliados em um só corpo.
Se considerarmos que esses gentios, primeiros cristãos em meio ao mundo greco-romano, em geral, não eram de estirpe nobre, mas “coisas loucas”, “coisas fracas”, “humildes, desprezadas e aquelas que não são”, como afirma Paulo em 1 Coríntios 1.27s, também esses são ruína do mundo sobre a qual resplandece a glória de Deus.
De fato, essas pequenas comunidades não se encontram em uma Jerusalém em ruínas, tampouco na estrebaria de Belém. Encontram-se espalhadas pelo mundo. Sobre elas, ruínas do mundo, resplandece a luz de Deus. Afinal, não é em Jerusalém ou em qualquer outro monte, ou mesmo em qualquer lugar específico, que o Pai será adorado, mas em espírito e em verdade (Jo 4.21-23). Sugiro que nessa direção caminhe a pregação, atentando para o conjunto dos três textos.
Epifania é a glória de Deus que resplandece sobre a) uma Jerusalém em ruínas; b) sobre uma pobre estrebaria; c) sobre pequenas comunidades esparsas pelo mundo. Ali onde não parece nem se espera, Deus se manifesta. Ali onde Jesus Cristo é o Senhor em espírito e verdade, ali acontece Epifania.
4. Uma imagem para prédica
Em meus tempos de trabalho no CEBI, conheci Zé Batista, um mineiro de Mathias Barbosa, próximo a Juiz de Fora. Acompanhava muitíssimos grupos que praticavam a leitura popular da Bíblia na região. Zé dizia-se leigo, de pouca escola, querendo dizer dessas escolas de aprender com professor. Da escola da vida Zé sabia demais. Era até doutor.
É de Zé Batista que tenho a melhor interpretação popular da Bíblia que já ouvi e que é, penso eu, a melhor interpretação de Epifania. Reconto o que ouvi do próprio Zé, esperando recontar direito.
Em um de seus grupos, Zé pergunta: “Pessoal, qual é a diferença entre a galinha de granja e a galinha caipira”. E o pessoal responde: “Galinha caipira vive no terreiro, galinha de granja naqueles galinheiros grandes”. “O ovo da galinha de granja não tem tanta saúde quanto o ovo da galinha do terreiro. Tem casca mole. A gema não tem cor direito.” “É porque galinha de granja come só ração. Não tem minhoca. Não pode ciscar.” “Quando choca, a galinha caipira faz nascer tudo. A galinha de granja é muito pouco.”
E o Zé: “E como é o ninho da galinha caipira?” A turma: “Ih, difícil de achar. Tá lá no fundo do terreiro, escondido debaixo de uma árvore, que é pro gavião não pegar”.
E o Zé: “Do que ela faz o ninho?” E alguém: “É puro lixo, não sabe? Junta tudo quanto é traste e vai fazendo o ninho. Casca velha, papel rasgado, varredura, até sapato velho jogado no lixo. Mas dá gosto de ver os pintos!”
E o Zé: “Pois é, pessoal. Deus é que nem galinha caipira. Escolheu o lixo do mundo para ali botar os ovos do evangelho. Foi numa estrebaria que nasceu o filho dele. E ele quis que os pobres fossem os primeiros a receber a boa notícia”.
5. Subsídios litúrgicos
Dois hinos do HPD 1 parecem importantes para o culto: 32 (Renovo mui delgado) e 39 (Vem à luz alegremente). Talvez também, por ser mais conhecido, o hino 38 (Estrela d’alva, o teu fulgor).
Como versículo de introito, proponho Mateus 11.25: “Por aquele tempo, exclamou Jesus: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas cousas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos”.
Penso que as três leituras previstas para o domingo deveriam ser lidas, relacionando-as na pregação.
Bibliografia
SCHMIDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, IEPG, 1994.
SCHWANTES, Milton. Breve história de Israel. São Leopoldo: Oikos, 2008.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).