Importa a dignidade da vida
Proclamar Libertação – Volume 45
Prédica: Isaías 61.10-62.3
Leituras: Lucas 2.22-40 e Gálatas 4.4-7
Autoria: Norberto Garin e Edgar Zanini Timm
Data Litúrgica: 1° Domingo após Natal
Data da Pregação: 27/12/2020
1. Introdução
O tempo é de manifestar a novidade que acaba de ser noticiada e celebrada pelo Natal do menino Jesus: Glória a Deus nas maiores alturas e paz na terra
entre os homens, a quem ele quer bem (Lc 2.14). O texto de Lucas sugerido para este domingo remete à visualização da esperança que se manifesta pela presença do menino Jesus como luz para o tempo de trevas vivido pelo povo sob a dominação romana e o império de leis religiosas radicais. Tanto na visão de Simeão quanto na de Ana, os acontecimentos do templo motivavam alegria e representavam um sinal dessa esperança. As palavras de Gálatas apontam para uma nova dimensão desse sentimento: a de herdeiros mediante a graça de Deus. Ambas as leituras apontam para o futuro como um tempo que já chegou, mas que está em constante construção, como o novo ano que se inicia, depois de um longo período de sofrimentos, perdas, dores e tristezas provocados pela pandemia da Covid-19.
A moldura histórica do texto de Isaías localizava-se no período denominado pós-exílico, quando os deportados de Judá retornavam para Jerusalém com a finalidade de restaurar um templo sagrado e uma cidade sagrada, completamente destruídos. Nesse cenário aconteceu o encontro entre as famílias que retornaram de múltiplas diásporas, mas principalmente as do exílio babilônico, e as que permaneceram na terra, ou que foram incorporadas por meio de exílios promovidos pelos diferentes soberanos que dominaram a região.
Dominação estrangeira e corrupção da classe dirigente local tornaram-se ingredientes destrutivos desse contexto. Economicamente, os persas entendiam mais conveniente repatriar exilados, o que lhes proporcionava menor custo de manutenção. Devastações promovidas por sucessivas invasões, secas, pragas e fomes compunham o quadro de pobreza frequentemente denunciado por textos proféticos da época. Pessoas entristecidas, abatidas, famintas e desabrigadas compunham esse cenário que tinha como causa, em grande parte, os desmandos da classe que dominava durante o retorno. As palavras do profeta, antes, foram as vossas iniquidades que criaram um abismo entre vós e o vosso Deus (Is 59.2a), demarcavam o conflito existente entre uma classe de trabalhadores e uma classe que se beneficiava da produção desses.
O texto da prédica compromete-se com a construção de esperanças, baseadas nas promessas de Javé, que apontam para o término da devastação e das humilhações que cercaram tanto os deportados para a Babilônia quanto o resto que permaneceu na terra. O acabamento editorial deve ter transcorrido ao redor de 400 a.C. A partir de sua leitura é possível perceber a diferença existente entre o projeto de reconstrução dos retornantes e o projeto do resto que permaneceu, como uma tensão significativa que marcou a convivência desses dois grupos. A maior parte dos retornantes desejava desenvolver a unificação em torno do templo, enquanto a maior parte do resto desejava, com um plano diferente, ampliar as fortalezas da cidade (Is 66.1-3). O tom do texto de Isaías é o da alegria: o povo sofrido não precisava mais aguardar, pois já se encontrava no tempo da libertação, que envolvia justiça e abundância. A perspectiva é de que já era possível perceber o sabor da salvação, mas era necessário avançar em direção à plenitude.
Entretanto, era necessário perceber que a reconstrução, seja do templo ou das muralhas da cidade, se constituía numa obra em andamento. Portanto havia esperanças, mas essas precisavam ser construídas. Contudo, deve-se levar em conta que os persas impuseram dificuldades e impostos altos, na medida em que possibilitaram a reorganização cultural e religiosa de Judá, além das dificuldades criadas pela administração interna, que se desviou dos propósitos de Javé (Is 59.3-8).
2. Exegese
V. 61.10 – Este versículo representa um hiato entre o 61.9 e o 61.11. O texto aponta para alguns termos-chaves: alegrar-se (śōwś), o que indica para 1 Samuel 2.1, repetido pelo evangelista em Lucas 1.46; salvação (yeša‘), satisfação das necessidades fundamentais e de justiça (ṣəḏāqāh), restauração do direito e da equidade. O status mudou: não se tratava da alegria pela realização da salvação (Sl 126) e da justiça, mas da esperança de que isso estivesse próximo. Tratava-se da alma que se alegrava. E era a alegria da fé em Javé, como “meu Deus”. Não é simples determinar a identidade do autor, mas percebe-se que não se tratava do servo de Javé, mas de um arauto, já que perdeu a visão universalista daquele. O Targum (traduções e comentários em aramaico da Bíblia hebraica que datam do Segundo Templo até o início da Idade Média, utilizadas para facilitar o entendimento aos judeus que não falavam o hebraico como língua mãe) atribui a identificação dessa expressão a “Jerusalém”. Ao reportar-se à vestimenta (hilb îšanî), pode ser uma referência sacerdotal (Êx 28.4) em função da metáfora das vestes; essa metáfora também aparece em Isaías 59.17, apropriada e reinterpretada em Efésios 6.17 (uma alusão ao capacete do soldado romano) e em 1 Tessalonicenses 5.8 para indicar as atitudes autênticas de um cristão. Como um noivo veste as melhores roupas para a solenidade especial do casamento, ou como as vestes do sumo sacerdote revestido com todas as suas roupas sacerdotais, assim Jerusalém é adornada com os mantos de salvação e de justiça; o diadema (pə’êr) é uma referência à presença de um rei, parte da identidade de nação.
V. 61.11 – Este versículo parece complementar o anterior, pois segue na mesma toada: ressalta a centralidade do templo como elemento de poder diante dos outros povos, mas com uma ênfase distinta, focada no meio rural: o broto (ṣimḥāh) que nasce da terra, a semente (zêrū’eha) que germina no jardim (imaginário babilônico), as ervas e plantas que parecem mortas durante o inverno (msd) revivem na primavera e retomam seu vigor, apontavam para a possibilidade de nascer como uma nova nação com o retorno dos exilados. Ressaltam-se alguns termos: fará surgir (yaṣmîaḥ): é uma ação de Javé em favor dos retornantes; a justiça (ṣeḏāqāh): trata-se da ação de organização da vida e se reporta ao resto que tinha ficado na terra ao sabor dos bandoleiros (Ne 1.3), mas também apontava para a corrupção da classe dirigente e para os altos impostos cobrados (Is 58.6,9); tratava-se de um projeto que servia às lideranças inescrupulosas que se aproveitavam dos mais fracos para explorá-los (Is 56.10-12); ao reportar-se ao louvor (ūṯehillāh), o texto indica a importância da celebração, da festa que alimentava o espírito humano; as nações (haggōwyim): tratava-se de uma expressão deuteronomista do projeto elaborado na Babilônia, que preconizava a restauração pela centralidade do poder ao redor do templo (Is 54.1-6), tanto político quanto religioso e servia para que as outras nações os visualizassem, especialmente os inimigos. O projeto do resto, aquela parcela que permaneceu na terra, era bem distinto, pois não passava pela centralidade do templo, nem pela majestade dos cultos de sacrifício (Is 66.1-3).
V. 62.1 – Neste versículo o profeta manifesta o desejo de interceder por Sião e a continuidade do projeto dos retornantes fica explícito. Como o salmista (Sl 126), há uma vontade ardente de viver em Sião, o que sinalizava o projeto de centralização do poder, tanto político quanto religioso. O profeta já está vivendo na realidade da volta, mas sua vontade se projeta para o futuro. Importante destacar algumas expressões: pelo amor (ləma’an), repetida duas vezes – uma referente ao monte, mas que para Judá significava a cidade santa e outra que nominava Jerusalém –, demonstra o compromisso com o projeto; sua justiça (ṣiḏqāh) que se tornasse clara, salvação dela (wîšū’āṯāh) clareasse como uma lâmpada: trata-se da repetição dos temas do final do capítulo 61. A novidade é a intercessão incessante (‘ešqōwṭ), que se ajusta à campanha de reconstrução nacional. Essa insistência na intercessão remete ao Salmo 137.5-6 no estilo de um hino a Jerusalém. De alguma forma foi retomada por Lucas 11.5-8 na parábola do amigo importuno.
V. 62.2 – O estabelecimento do projeto dos retornantes manifestaria a glória de Judá. Assim com um rei, uma capital e um Deus, as outras nações reconheceriamsua importância e sua autonomia. Os v. 3-9 elucidam essa pretensão de ser reconhecida novamente como uma nação entre tantas. Trata-se do projeto de restauração da identidade. Algumas expressões significativas: a tua glória (kəḇōwḏêḵ) refere-se ao brilho que a nação teria com a execução do projeto. Trata-se de uma promessa de eternidade. O nome (šêm): apagar o nome de uma nação fazia parte da aniquilação dos impérios, que exerciam, mediante violência, a dominação dos mais fracos. O estabelecimento de um novo nome remetia à divindade (Yahweh) que lhe concederia essa nova identidade (Yəhūḏāh). Desde 61.10 até 62.2, a justiça, a salvação, a vitória, a felicidade, o louvor, a glória aparecem como promessas de Javé. Trata-se de necessidades que estavam mais claras nos v. 4, 8 e 9. Isaías 54.1-6 se reporta a essa promessa de restauração de forma mais abrangente.
V. 62.3 – Algumas expressões significativas: uma coroa (‘ăṭereṯ): aponta para o projeto dos retornantes baseados na centralização do poder e na restauração da monarquia; um turbante (ūṣənîp̄): retoma 61.10, onde se fala do diadema na cabeça do noivo. Jerusalém seria essa coroa que manifestaria o brilho de Javé.
3. Meditação
A mensagem do texto da prédica representa a essência do projeto dos retornantes e uma era de boa nova. Ela fala de alegria e de esperança e se ancora em Javé como um Deus capaz de restaurar a grandeza de Judá. O texto em análise, pelo inverso, aponta para o lado conturbado do retorno: havia um tributo caro a ser pago aos persas; havia corrupção nas lideranças locais; havia injustiça e ausência de condições de vida plena. Tudo isso continuava, mesmo depois do retorno de alguns e da tentativa de reconstrução da nação. O profeta aponta para a restauração da justiça e do direito, como diminuição das desigualdades, mas tudo isso deveria passar pela reconstrução do templo e a centralidade do poder. O projeto dos retornantes se ancorava na restauração da monarquia centralizada e na necessidade de ser vislumbrada como uma nação autônoma entre outras nações.
Pode-se dizer que no coração dos retornantes havia o desejo de restaurar o idealístico reino de Davi do século nono. O conflito apontado pelo profeta se reporta à distinção entre os dois projetos de reconstrução: o dos retornantes, firmado na centralidade de uma nova monarquia, e o do resto, firmado na necessidade de restaurar a dignidade das pessoas, tanto as que voltaram quanto as que permaneceram na terra.
Enquanto a exaltação do projeto dos retornantes estava na aparência de um reino autônomo, a ênfase do projeto do resto estava na restauração da dignidade dos vulnerabilizados pelos frequentes ataques de bandoleiros, pelo sofrimento enfrentado no estrangeiro e pela ausência de condições mínimas de sobrevivência. Sobretudo, tornava-se necessário o estancamento da sangria provocada, por um lado, pelos altos impostos cobrados pelos persas e, por outro, pela crescente corrupção da classe dirigente local, encarregada de liderar o retorno, mas que se locupletava com os recursos disponíveis da nação.
O texto menciona o contexto rural como uma tentativa de alcançar as pessoas que permaneceram na terra e tocavam suas vidas sobrevivendo do que plantavam. Fala de sementes, de brotos e de germinação, mas isso também estava vinculado à necessidade de resplendor de Jerusalém perante “todas as nações”. O monte e a cidade santa estariam no centro do projeto que precisava ser evidenciado como uma “tocha acesa”. A justiça desse projeto não se destinava às pessoas, mas à glória de Jerusalém. O resultado da proposta não se destinava a recompor a dignidade das pessoas para que vivessem em paz, sem fome e com saúde, mas para que os outros reis e as outras nações a reconhecessem como uma nação soberana e autônoma, o que, ao que parece, nunca conseguiram realizar.
Fazendo uma leitura do texto à luz dos acontecimentos que vivenciamos atualmente em meio à pandemia da Covid-19, que se espalhou pelo mundo e ceifou milhares de vidas, também se estabeleceram projetos divergentes de enfrentamento. Por um lado, havia o projeto daqueles que não se importavam com o número de pessoas que viriam a morrer como consequência da enfermidade. Para esses, importava salvar a economia, dizendo que era necessário salvar os empregos, mas cujo projeto poderia esconder a preocupação em não chegar ao final do ano com uma recessão tão acentuada. Era necessário salvar os lucros financeiros, interesse que se colocava acima da perda de um número de idosos, que inclusive poderia diminuir o déficit previdenciário.
Por outro lado, havia o projeto daqueles que se importavam com as vidas, fossem de idosos ou de qualquer idade. Uma vida perdida representava uma tragédia que devia ser evitada. Para esses, a economia representa um meio para a existência do ser humano, que uma vez combalida, poderia acender o sentimento de solidariedade, de justiça, de redistribuição dos bens de cada nação e de todas as nações fraternamente. A pandemia deveria ser um estímulo para conter a ganância dos que enriquecem explorando a fraqueza dos que possuem menos poder de pressão política e econômica. Importa a dignidade da vida de todas as pessoas ao invés do lucro de uns poucos.
Ao celebrar o Natal do menino Jesus, é necessário recordar que ele se importou com os vulnerabilizados, levantou aos caídos e morreu por todos.
4. Imagens para a prédica
Recontar a história da Paraolimpíada de Seattle de 1992, na qual, durante uma corrida de pessoas com Síndrome de Down, um dos competidores cai. Uma menina percebe, retorna e beija o caído. Todos param sua corrida, voltam para onde se encontra o caído, ajudam-no a se levantar e caminham, de mãos dadas e juntos, até o final da competição.
Caso haja possibilidade, exibir o vídeo. Disponível em: . Muito mais importante do que vencer é chegar juntos, com dignidade.
5. Subsídios litúrgicos
Oração participativa
D: Deus, que o projeto da nossa igreja seja pautado sempre pela construção da dignidade de todas as pessoas, sem discriminar as mais vulneráveis e sem exaltar as mais talentosas.
T: Deus de amor, escuta nossa oração e mobiliza nossos corações para ajudarmos a construir a dignidade de todas as pessoas.
D: Senhor, que os recursos da nossa igreja, antes de privilegiar o brilho e o sucesso do templo e da congregação, contribuam para a diminuição das desigualdades entre irmãos e irmãs da nossa comunidade.
T: Bendito Deus, ouve nossa prece e nos mobiliza para privilegiar a equidade de recursos dos nossos irmãos e irmãs.
D: Senhor, que a justiça, o direito e a dignidade das outras pessoas ultrapassem nossas falas e se concretizem em ações verdadeiras.
T: Deus de amor, escuta nossa oração e nos encoraja a praticar essas nossas próprias palavras. Amém.
Bibliografia
ALTMANN, Lori. Segundo Domingo após o Natal. In: STRECK, Edson Edílio (Coord.). Proclamar Libertação 19. São Leopoldo: Sinodal, 1994. Disponível
em: . Acesso em: 09 maio 2020.
LIVERANI, Mario. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Loyola, 2008.
PARAOLIMPÍADAS DE SEATTLE. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2020.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).