Proclamar Libertação – Volume 32
Prédica: Isaías 63.7-9
Leituras: Mateus 2.13-23 e Hebreus 2.10-18
Autor: Osmar Luiz Witt
Data Litúrgica: 1º Domingo após Natal
Data da Pregação: 30/12/2007
1. Introdução
O texto do profeta Isaías fala do amor e da compaixão de Deus por nós e da possibilidade de perdermos sua amizade. A Carta aos Hebreus acentua a dimensão salvífica da obra de Cristo em sua encarnação, concretização da compaixão divina: “No seu amor e na sua misericórdia, ele mesmo os resgatou” (Is 63.8). A passagem do Evangelho de Mateus remete ao Êxodo. No Egito, Deus ouviu o clamor de seu povo, e de lá vem o redentor, o qual revela a fidelidade divina e a universalização de sua compaixão. Ele veio salvar pecadores e pecadoras. Assim, o elo temático entre os textos pode ser encontrado nessa disposição divina de compadecer-se de quem lhe é infiel e no louvor que lhe é devido em razão disso.
A igreja aprende com o povo de Israel a reconhecer seu dever de gratidão e louvor por causa do amor e da compaixão de Deus. Israel ensinou e ensina a olhar para seu passado, para sua história e louvar a Deus por seu agir em favor de seu povo. Quando Israel se encontra em situação desesperadora, a memória do agir de Deus renova-lhe a certeza de sua fidelidade.
2. O texto em seu contexto
2.1 – O Terceiro Isaías
O texto indicado para a pregação integra o livro do Terceiro Isaías, que compreende os capítulos 56 a 66 de Isaías e que foi escrito provavelmente em Judá, em torno dos anos 520 a 400 a.C., portanto após a volta do exílio babilônico (597 a 539 a.C.). A esperança de um retorno a Jerusalém não foi de todo sufocada nesses anos. E “a partir de 539 a.C. o sonho começa a se tornar realidade. Surge uma luz no final do túnel. Ciro, rei da Pérsia, é acolhido como ‘enviado’ de Javé para libertar seu povo (45.1-7). Ele conquista a Babilônia e permite a volta das exiladas e dos exilados (Ed 1.1-11) e a reconstrução do Templo de Jerusalém, financiando suas obras (Ed 6.1-12)” (Nakanose et al., p. 12). Nessa época, boa parte da população sofria sob o domínio da elite religiosa judaica e do império persa. “A situação dos retornados era de pobreza, escassez e aflição” (Westermann, p. 237). No livro denuncia-se a corrupção dos grupos dirigentes e afirma-se uma esperança: “um novo céu e uma nova terra” (65.17).
2.2 – A delimitação da perícope
Dentro do livro do Terceiro Isaías, o texto 63.7-64.11 forma um longo poema em forma de um salmo de súplica coletiva, comparável ao que se tem nos Salmos 44 e 89. Há uma tendência na pesquisa de situar esse trecho no período logo após a destruição do templo de Jerusalém em 587 a.C. (Kraus, p. 225, e Westermann, p. 240 e 307). As referências a esse acontecimento em 63.18 e 64.9-10 referendam essa postura. O lugar vivencial desse salmo de lamentação coletiva deve ser buscado no culto, no qual, em geral, os salmos de lamentação foram empregados.
Quanto à delimitação da perícope proposta para a pregação, Westermann entende que é preciso estendê-la até o v. 14. “A alocução direta a Deus e, com isso, o salmo de lamentação propriamente, inicia somente em 63.15” (p. 306). Ele propõe a seguinte estrutura (p. 307):
v. 7a – Introdução recordando as graças de Deus;
v. 7b-9 – Deus, salvador e mantenedor do seu povo;
v. 10 – Israel voltou-se contra Deus, então Deus voltou-se contra Israel;
v. 11-14 – Em suas necessidades, Israel lembra as obras de Deus no passado.
3. Meditação
O texto de Isaías surgiu numa situação muito difícil para o povo de Israel. Os babilônios vieram, deportaram as lideranças do povo, dividiram famílias, destruíram relações de amizade, saquearam propriedades e demoliram o templo. Tentaram, assim, riscar da memória de Israel o Deus que ouve o clamor do povo e mobiliza pessoas para livrá-lo da aflição. A situação em que Israel se encontrava era de destruição, de frustração. A realidade revelava que a compaixão e o amor de Deus estavam ausentes. O povo de Israel vivia um tempo de apreensão, de insegurança, de medo. Seus líderes haviam sido exilados, e seu Deus parecia tê-los abandonado. A pergunta não era retórica, mas existencial: “Onde está Deus?” (63.11, 15; 64.6, 11).
O profeta de Deus ajuda a entender a situação desesperadora lançando um olhar ao passado desse povo. Em sua história, Israel encontra motivos para ser grato a Deus e para render-lhe louvor. Pois a compaixão e o amor de Deus estiveram presentes quando ele fez uma aliança com Israel. Deus declarou: “Eles são o meu povo, são filhos que nunca me trairão” (v. 8). Ele contou com a fidelidade do povo que criou para si.
O amor e a compaixão divinas também se tornaram concretos, palpáveis, visíveis, quando ele mesmo livrou Israel do sofrimento da escravidão no Egito e quando ele o “ergueu” e “carregou” (v. 9) na passagem pelo mar Vermelho e na longa caminhada pelo deserto. O amor e a compaixão, dignos da gratidão e do louvor de Israel, também foram concretos quando o povo tomou posse da terra prometida e encontrou “um lugar de descanso” (v. 14). Tudo isso fazia e faz parte da experiência desse povo e, de geração em geração, essa memória foi guardada.
Em vista da destruição e da deportação de uma parte da população, Israel faz a experiência de sentir-se abandonado por Deus. “A evocação da história passada (63.7-14) é conforme a teologia deuteronomista: Deus castiga o seu povo revoltado, depois salva-o” (Bíblia de Jerusalém). O profeta lembra ao povo sua desobediência. Foi o povo quem dispensou o amor e a compaixão de Deus, não dando ouvido aos profetas, através dos quais foi denunciada a infidelidade à aliança (v. 10). O Deus que ama, que sofre junto com seu povo, que ampara, que dá colo, que recobra o ânimo de quem está cansado e que dá novo alento àquele que está sem esperança é o mesmo Deus que pode ficar magoado e tornar-se inimigo (v. 10). O exílio é entendido como a concretização dessa inimizade.
De outra parte, a lembrança do passado quer trazer o povo de volta para a aliança com Deus. Ao tomar consciência de como Deus teve amor e compaixão no passado, a situação presente de Israel torna-se ainda mais angustiante: Onde está hoje o Deus que agiu tão valorosamente no passado? Por que ele parece se esconder? Será que ele não é mais o mesmo? Será que já não tem mais amor e compaixão por seu povo? Ao dar-se conta da situação desesperadora, o povo de Israel ergue seu grito de socorro aos céus: “Não retires de nós o teu amor e a tua compaixão, pois tu és o nosso Pai… e desde o princípio nós te chamamos de o nosso Salvador”. Nesse pedido de ajuda dirigido a Deus, o povo de Israel confessa: Só Deus mesmo poderá salvar-nos de uma vida sem Deus. Somente seu amor e sua compaixão poderão livrar-nos das enrascadas em que nos metemos com a nossa rebeldia e infidelidade.
E Deus não ficou insensível a esse clamor. Como se lê na Carta aos Gálatas, “quando chegou o tempo certo, Deus enviou o seu próprio Filho. Ele veio como filho de mãe humana e viveu debaixo da Lei dos judeus para libertar os que estavam debaixo da Lei, a fim de podermos nos tornar filhos de Deus” (Gl 4.4s.). A resposta de Deus ao clamor dirigido aos céus foi o motivo das celebrações natalinas. Na manjedoura de Belém, o amor e a compaixão de Deus tornaram-se mais uma vez concretos. Em Jesus, a aliança estende- se a toda a humanidade, para que todos sejam filhos e filhas de Deus. Ou como cantava Lutero: “O Salvador, o eterno bem, em forma humana à terra vem, quer ser irmão dos servos seus, torná-los filhos fiéis de Deus” (Hinos do Povo de Deus 1, 22.5).
Podemos reaprender com Israel a olhar para nosso passado e nele descobrir como Deus tem mostrado amor e compaixão em nossa vida pessoal e familiar. Mas também em nossa comunidade religiosa e civil. Lembro-me de uma antiga canção evangelística que nesse contexto ganha para mim um significado novo. Dizia assim: “Conta as bênçãos, dize quantas são, recebidas da divina mão. Conta as muitas bênçãos, dize-as de uma vez, e verás surpreso o quanto Deus já fez”. Contudo, nós facilmente esquecemos os motivos de gratidão e não rendemos o louvor devido.
Por certo também não faltam em nossos dias motivos para lamentos e aflições. Se as pessoas não tivessem lamentos e medos, não prosperariam tantas ofertas de auto-ajuda e métodos de enganação. O profeta Isaías ensina- nos que nosso lamento e nossa aflição podem ser dirigidos aos céus. Talvez não saibamos bem como se faz isso comunitariamente. Quem sabe, em nossas aflições e medos estejamos sós e não sabemos como “carregar as cargas uns dos outros” (Gl 6.1). Porém Deus nos ouve, e seu amor e compaixão são fiéis. Não atenderá nossos interesses egoístas e mesquinhos. Pois se pudéssemos, faríamos dele um cumpridor de ordens nossas. Mas ele nos livrará de uma vida auto-suficiente, que não conhece gratidão, e principalmente de uma vida sem Deus ou sem temor e sem confiança em Deus, ou, como diz o texto, uma vida na inimizade de Deus.
Olhar para o passado, pessoal e comunitário, assim como fez o povo de Israel no exílio, poderá ajudar-nos a encontrar respostas para as perguntas angustiantes que nos são feitas por outros ou por nós mesmos: Onde está Deus neste mundo conturbado? Será que ele nos esqueceu? Sua compaixão e seu amor não serão mais os mesmos? Por que ele guerreia conosco? Não será uma evidência de que Deus está contra nós, justamente quando duvidamos de que ele se possa tornar nosso inimigo e quando pessoas de fora da igreja afirmam que, a julgar por nossos atos, Deus deve ter-nos abandonado? A sensação de que Deus nos abandonou não evidencia que agimos como se ele estivesse em nossas mãos e não nós em suas mãos?
A lembrança do passado pode significar o início do retorno para a aliança que Deus também fez conosco. Pelo Batismo ele se dirigiu a ti e a mim: “Chamei-te pelo teu nome, tu és meu!”. Pertences a meu povo. Pus meu Filho no mundo em favor de ti. Ele doou-se em teu favor, e toda vez que participas da Santa Ceia, ele te alimenta e fortalece. A consciência dessa realidade permite-nos bradar aos céus quando nos sentimos desamparados e desprotegidos: “Ó Deus, onde estão o teu poder e o teu cuidado por nós? Não retires de nós o teu amor e a tua compaixão, pois tu és o nosso Pai” (v. 15).
A cada Natal somos confrontados com esse amor e essa compaixão de Deus. O seu Filho vem ao mundo, torna-se nosso irmão, para que todos possamos dizer “Pai Nosso”. Na manjedoura de Belém, Deus fez-se nosso irmão, por amor e compaixão de nós, para a nossa salvação.
4. Subsídios litúrgicos
Saudação
“Venham todos, e louvemos ao Deus Eterno! Cantemos com alegria à nossa rocha, ao nosso protetor e Salvador!” (Sl 95.1)
Hino de entrada: Hinos do Povo de Deus 1, nº 130.
Leitura conjunta: Salmo 111.
Confissão de pecados:
Misericordioso Deus! Tu tens nos conduzido, amparado e protegido. Fizeste de nós membros do teu povo. Por nós vieste a este mundo, a fim de oferecer-nos salvação. Foste fiel às promessas que fizeste a teu povo. Nós, porém, não fomos capazes de corresponder à tua fidelidade. Ignoramos a tua presença entre nós, trilhamos nossos próprios caminhos e achamos que somos auto-suficientes. Quando temos saúde e um pouco de dinheiro, nós te dispensamos. Perdoa-nos, Senhor, e acolhe-nos outra vez em tua comunhão. Não te escondas de nós, nem nos deixes viver sem perceber a tua presença, que assegura mais beleza, justiça e misericórdia nas relações entre nós. Escuta-nos, ó Deus, quando te pedimos: Perdoa-nos e vivifica-nos. Em nome de Jesus Cristo, teu Filho e Senhor nosso. Amém.
Coleta:
Senhor, nosso Deus! É bom podermos trazer-te nosso louvor. É bom que possamos ser orientados por tua Palavra. Sentimo-nos bem em tua companhia. Tu nos consolas, pois mesmo sendo pecadores/as, em vez de condenação recebemos de ti graça e paz. Permite, Senhor, que nosso louvor te agrade e que tua Palavra nos ponha de pé. Em nome de Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo. Amém.
Oração:
Sim, é digno, justo e de nosso dever que, em todos os tempos e lugares, rendamos graças a ti, Deus eterno e todo-poderoso. Pois vieste ao mundo para buscar a ovelha desgarrada e para fazer de nós, pecadores/as, um povo para ti. Nós esquecemos as bênçãos recebidas e nos afastamos de ti. Mas teu amor e misericórdia se manifestaram no nascimento de teu Filho, Jesus Cristo. Por isso, com toda a tua igreja e todos os seres viventes, louvamos e adoramos teu glorioso nome, dizendo: Santo, santo, santo é o Senhor!
Bibliografia
BAESKE, Albérico. 1º Domingo após o Natal. In: Proclamar Libertação 24. São Leopoldo: IEPG/Sinodal, 1998, p. 44-57.
KRAUS, Hans-Joachim. Das Evangelium der unbekannten Propheten – Jesaja 40-66. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verl., 1990.
NAKANOSE, S. et alii. Como ler o Terceiro Isaías (56-66) – novo céu e nova terra. São Paulo: Paulus, 2004 (Série “Como ler a Bíblia”).
WESTERMANN, Claus. Das Buch Jesaja – Kapitel 40-66. Göttingen: Vande- nhoeck & Ruprecht, 1966 (Das Alte Testament Deutsch).
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).