As imagens de Deus que animam e sustentam a esperança
Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Isaías 66.10-14
Leituras: Lucas 10.1-11, 16-20 e Gálatas 6.(1-6) 7-16
Autor: Hans Alfred Trein
Data Litúrgica: 7º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 07/07/2013
1. Introdução
Quem não cuida de sua casa e deixa o cupim entrar nas vigas do telhado não pode queixar-se do carpinteiro quando o teto cair. Na época do cativeiro babilônico (597-540 a.C.), o cupim tinha entrado na viga de fé de Israel. A casa desabou, e se queria jogar a culpa em Deus. O pessoal imaginava Deus como quebra-galho, a quem se recorre só na necessidade, um Deus funcional. E, se Ele não resolver, perde-se a fé. Esse é o cupim. Agora, retornando do exílio, há grande esperança. Jerusalém pode ser restaurada, o templo pode ser reconstruído. Alguns têm saudades do que era antes. Outros esperam que Jerusalém possa ser uma grande mãe que nutre e afaga seus filhos. Será que se pode ter uma esperança assim? A história posterior autoriza perguntar.
Não vi relação explícita entre os três textos indicados na série de perícopes. Lucas lembra o envio missionário dos 70 e seu empoderamento para operar milagres. Gálatas contém aquele versículo sobre fazer o bem principalmente aos da família de fé (v. 10) e discute o valor da circuncisão, respectivamente incircuncisão, diante da cruz de Cristo. Diante disso, há duas alternativas: 1) mantém–se a leitura dos textos, pois assim estão previstos na série; 2) o pregador toma a liberdade de escolher outros textos do evangelho e da epístola que estejam tematicamente relacionados.
Como leitura do evangelho, sugiro aquele texto em que Jesus, à vista de Jerusalém – que continua opressora –, expressa seu desejo de ter reunido seus filhos como uma choca dá guarida a seus pintinhos (Lc 13.34-35). Outro texto poderia ser aquele sobre a nova Jerusalém de Apocalipse 21.9-11,22-27 ou até 22.5. Ambos os textos desacreditam a esperança profética: no de Lucas, Jesus constata 500 anos depois que a profecia não se cumpriu; no de Apocalipse, a nova Jerusalém é projetada para o fim dos tempos e desce do céu. A sociedade de Estado não é capaz de realizar a profecia de Isaías.
2. Exegese
Situar o texto no tempo e no espaço ajudou-me muito na compreensão. Em 597 a.C., o rei Joaquim de Judá recusa-se a pagar tributo à Babilônia. Em resposta, o imperador Nabucodonosor invade a cidade de Jerusalém e deporta o rei e sua corte. Dez anos depois, nova recusa a pagar tributos é castigada com a destruição do templo e de Jerusalém. Agora, o exército babilônio deporta uma população considerável da classe média de Jerusalém e arredores como despojo de guerra. O interior de Judá não é tão atingido, mas perde definitivamente sua autonomia, torna-se uma colônia do império. O primeiro grupo deportado usufrui de melhores condições junto à corte babilônica. O segundo grupo é penalizado com trabalhos forçados pela desobediência.
Ambos os grupos sonham com o fim do exílio. A elite quer a libertação para reaver seu poder e seus bens em Jerusalém (Ez 37), quer restaurar o passado, restabelecendo a monarquia e criando independência política. Os empobrecidos e escravizados não suportam mais o sofrimento e desejam reconstruir sua cidade de maneira nova, com base na justiça, na partilha e na solidariedade (Is 55). Suas esperanças têm marcas tribais, pois o exílio é reputado como consequência da monarquia e do templo da Jerusalém anterior, que desencaminharam o povo à opressão e à idolatria – assim a profecia pré-exílica. Para o povo camponês remanescente, na verdade é um alívio que essa Jerusalém esteja em escombros. Miqueias (3.12) já expressava o desejo camponês de passar um arado por cima da colina de Sião. A nova Jerusalém tem de ser diferente, aberta, não exploradora tributária, uma espécie de grande vila agrícola. Os profetas, embora muito diferentes, são concordes na análise do passado; entretanto, diferem muito quanto à sua visão de futuro.
Em 539 a.C., o sonho começa a tornar-se realidade. Ciro, rei da Pérsia, conquista a Babilônia e permite a volta dos exilados (Ed 1), a reconstrução do templo e de Jerusalém, inclusive financiando suas obras (Ed 6). O templo é inaugurado em 515 a.C. e representa uma espécie de símbolo de identidade para o povo que agora divide a terra com outros grupos. Não podendo ter rei, o controle da colônia passa para as mãos dos sacerdotes. Em troca da aparente liberdade religiosa e cultural, Judá torna-se um importante aliado contra o Egito e uma fonte de tributos para o império.
O livro do Trito-Isaías (56-66) situa-nos em Jerusalém, para onde os exilados tinham retornado cheios de novas esperanças. Mas a população está dividida em dois setores social e religiosamente diferenciados. À medida que se consolida a teocracia judaica com sacerdotes-reis, grande parte do povo vai caindo na marginalidade. Isaías 58.6-7 relata sobre prisões, fome, falta de roupa e de teto. As leis de purificação exigem custosos sacrifícios (lembra indulgências e teologia da prosperidade), e o templo encarrega-se de cobrar e repassar pesados impostos ao “benfeitor” Ciro, do novo império persa. Algum tempo depois (445 a.C.), o rei Artaxerxes envia Neemias para consolidar as finanças de Jerusalém, o sistema de funcionamento do templo. Mas, nos subterrâneos da humanidade, naquelas e naqueles que as elites consideram o lixo do mundo, o sagrado se manifesta… O povo cultiva uma imagem materna de Deus. A comunidade de Isaías começa a acreditar que é possível construir “novos céus e nova terra”, onde habita a justiça (65. 7ss). O status quo manifesta seu ceticismo frente à irmandade de Isaías (66.5).
Nosso texto de Trito-Isaías é um poema. Os exilados ressurgem como povo através de um nascimento maravilhoso, sem dores de parto (v. 7-8) – sem guerras ou outras catástrofes sociais e políticas. Poeticamente faz insinuações, recolhe e condensa figuras e metáforas de outras passagens: Deus abre o útero e faz nascer o povo (v. 9). Até aquele momento, eles tinham vivido luto pelas tantas mortes do cativeiro (v. 10), mas agora, como recém-nascidos, devem alegrar-se, pois Deus vai dar colo e amamentar seu povo (v.11). Mamar nos ziz (onomatopaico para mamilos – Zitze ou Titze no dialeto alemão do Hunsrück) inverte a experiência de espoliação pela cidade de Jerusalém. Vão ser acalentados e consolados como a mãe consola seus filhos (v. 12-13). Essa experiência de Deus será fonte de alegria e de crescimento para todos (v. 14). Esse processo de parto foi iniciado pelo próprio Deus, que não está para brincadeiras (romper a bolsa para depois fechá–la, v. 9), mas que levará esse (re)nascimento inédito do povo de Sião até o fim. Trito-Isaías enfatiza: a salvação alcançará a sua meta, pois ela é obra de Deus. É a esperança por uma restauração de nova qualidade e não apenas uma reprodução da estratificação social do passado. Assim como no caso do Servo Sofredor (Is 49-53), nós cristãos também aqui podemos inferir que esse nascimento se com-pleta com Jesus Cristo, o que não deixa de ser apoiado pela aplicação de Isaías 61 a si mesmo, que Jesus faz em sua pregação em Nazaré (Lc 4).
Nos v. 12-14, pode-se ver claramente a estrutura da unidade v. 7-14, que os redatores inseriram entre os v. 5-6 e 14b-17 (juízo contra os inimigos e mais precisamente contra o grupo oposto, os desviados da comunidade salvífica). Inicia com a mensagem de salvação (7-9), convoca para a alegria sobre essa mensagem (10-11) e interpreta o significado dessa virada para a salvação de Sião (12-14). O v. 13, em que a palavra de salvação chega a seu ápice, tem um significado especial para o falar de Deus no primeiro testamento: pela primeira vez, o testemunho sobre Javé rompe com o acanhamento generalizado de adjetivá-lo com predicados femininos. Isso qualifica a intimidade no relacionamento entre Deus, Sião e seu povo.
Portanto o texto é expressão de uma esperança pela qual aquele pequeno grupo de seguidores de Isaías estava se empenhando. É uma visão que se alimenta da memória da fidelidade de Deus e da convicção de que, diferente do que experimentam por parte da teocracia sacerdotal, uma outra Jerusalém é possível. Uma forma de contrapor-se ao sistema de pureza é afirmar a imagem maternal de Deus.
3. Meditação
Chama a atenção a dimensão pessoal e familiar nas imagens utilizadas para expressar o novo relacionamento do povo com Deus: pai (63.16; 64.7), mãe (46.3; 49.15s; 66.12s), marido (54.4s; 62.5), irmão mais velho ou parente que res¬gata (41.4; 43.1). Por trás dessas imagens familiares de Deus está a experiência da família como espaço de uma certa autonomia e liberdade que ainda sobrava no cativeiro. Lembra a oposição das parteiras a Faraó, que também emergiu de dentro desse espaço caseiro em contraposição ao espaço público e do mundo do trabalho, totalmente ocupado, controlado, submetido. Foi nesse espaço reduzido e enfraquecido que eles encontraram a presença de Deus. O Deus, antes ligado ao templo, ao sacerdócio, ao culto oficial, à monarquia, agora está “em casa”. Lembra o tempo em que Deus acompanhava o seu povo em tendas. Lembra a organização tribal em contraposição à sociedade de Estado, que fixou Deus no templo de Jerusalém. Deus não precisa de um templo para “olhar” de lá (66.1-4). Como outrora no Êxodo, Deus “desceu” novamente do alto para estar junto do povo oprimido e exilado. É o Deus que vê a miséria, ouve o clamor, conhece os sofrimentos, desce para libertar. Com o olhar renovado por esse reencontro com Deus em casa, esse grupo passou a reler a política, a natureza, a história, a criação inteira, o passado, o futuro, o presente, tudo.
Não é acaso que a manifestação do sagrado em meio à miséria e à fome tenha um viés feminino. As mulheres são muito sensíveis a essa realidade, pois são as mais atingidas pela opressão do templo. Em casa, elas são as mães que vivem o drama de tomar no colo bebês desfalecidos e de preparar uma mesa em que não há refeição, de se virar sem os maridos sugados em sua força de trabalho. Mas são elas também que, na experiência única de carregar outras vidas e alimentá-las em seu próprio corpo, possuem uma extraordinária energia para lutar pela vida. Elas ajudam o povo a refazer o sonho e a confiança de que Javé não abandona, mas consola seu povo, qual mãe consola sua filhinha.
Há pouco mais de 10 anos, sem maiores “dores de parto”, Lula foi eleito como grande esperança de mudança. Ansiava-se por esse acontecimento, assim como provavelmente os exilados anelavam pelo fim do exílio. Com o passar dos anos, consolidou-se um projeto de crescimento econômico que, por um lado, oportunizou a milhões a ascensão à classe média e reposicionou o país no concerto internacional, demonstrando inclusive capacidade de administrar crises globais, mas, por outro lado, negligenciou os direitos sociais a saúde e educação da maioria e muito mais ainda os direitos especiais das minorias indígenas e afrodescendentes. Além disso, catástrofes climáticas (enchentes, secas) estão indicando que esse modelo não é sustentável. Entretanto, crescer economicamente tornou-se um dogma absoluto do Estado brasileiro. Quem o questiona recebe a pecha de ser contra o Brasil. Há muitas analogias com o desenvolvimentismo da ditadura militar.
Hoje não vivemos num mundo tributário e não podemos mais ter o tribalismo como modelo utópico, embora ele ainda sirva como memória inspiradora de uma sociedade coletiva, sem um estamento apossado de poder. O nosso futuro reside, por ora, na democratização do Estado, dos conhecimentos, dos alimentos, dos meios de produção e dos frutos do trabalho, na superação da corrupção. Talvez até possamos sonhar com a construção de uma sociedade civil tão bem organizada, que ela seja uma sociedade pós-Estado.
No espaço público, o embate é grande, renascem vários movimentos e redes para enfrentar a globalização de um sistema que exclui grandes contingentes de pessoas e que ameaça a sobrevivência do planeta através de uma economia consumista e, a médio prazo, autodestrutiva. Em meio à divisão entre aqueles que defendem esse sistema e os que se empenham por sua superação, a pergunta que se nos coloca é sobre os espaços de relativa autonomia e liberdade que temos hoje para ensaiar oposição e alternativas a essa predominância. Seria a informática com suas redes sociais jovens que consegue mobilizar “os indignados” e que alguns Estados já procuram controlar? Seria o ressurgimento de movimentos sociais pelo direito a terra e reforma agrária, reparação de injustiças históricas com indígenas e descendentes de escravos quilombolas, condições de vida para a pequena agroecologia familiar? E como Deus está participando dessas buscas por um projeto de vida, quais seriam as imagens de Deus que poderiam animar e dar sustento a essas lutas?
O espaço familiar continua sendo o espaço do amor, da gratuidade, da solidariedade. Na família, há proximidade, dedicação mútua, compartilhamento de futuro, reprodução da esperança. Nela se realizam muitos anseios profundos que o propagandeado consumo de bens não cumpre. Poder-se-ia esperar também no mundo de hoje que no espaço familiar pudesse estar sendo articulada a alternativa salvadora?
É comum falar da família de uma forma depreciativa, via de regra como uma instituição retrógrada e ultrapassada, coisa da direita burguesa. Muitos previram sua extinção. Além disso, a mídia gosta de noticiar a família como espaço de violências e horrores emparedados e escondidos. Há uma tendência crescente de individualização, que se manifesta entre outros no grande número de pessoas que vivem sozinhas… Será que tudo isso faz parte de uma estratégia sistêmica de desfazer esse espaço de relativa autonomia e liberdade?
Provavelmente, estamos vivendo num tempo em que nada é absolutamente conservador e nada absolutamente progressista. A família reciclou-se, os papéis sociais de homem e mulher mudaram, os filhos não precisam mais sair de casa para experimentar liberdade… O casamento homoafetivo, ao contrário do que propagam alguns, pode ser lido como uma afirmação da família.
4. Imagens para a prédica
Uma prédica mais afirmativa e evangélica pode valer-se das imagens contidas nos textos bíblicos selecionados: Deus é como uma mãe que amamenta e acalenta, uma galinha choca que reúne seus pintinhos debaixo de suas asas, fará com que as estruturas sociais e políticas ajam de acordo a proporcionar essa sensação de acolhimento e segurança. Onde há sinais de que isso está acontecendo? Seria o espaço familiar um espaço de liberdade e de articulação do outro mundo possível? Quanto isso depende de nosso fazer e quanto depende do fazer de Deus? Necessário é tanto confiar no reino de Deus, que cresce e vem vindo nos encontrar, como também refletir sobre o que corrói a nossa fé: o cupim moderno do consumismo.
Outra proposta de prédica, mais reflexiva e confrontativa (tanto antigamente como hoje há expectativas evangélicas diferenciadas), poderia partir da imagem de Deus como condicionadora do modo como enxergamos a realidade ao nosso redor e como sonhamos o nosso pós-exílio. Portanto caberia refletir sobre: Qual é a imagem de Deus que você recebeu desde pequeno em sua família? Qual é a imagem de Deus que você tem agora? O que mudou? Quem mudou? Deus ou você? Por que mudou? Como pode Deus permitir? Qual é a imagem de Deus que nos mantém na luta por um mundo mais justo e reconciliado?
Em contraposição a isso: Qual é a imagem de Deus que está sendo veiculada pelos modernos mercadores da fé? É um Deus comerciante, você dá dinheiro aos mercadores da fé, e Deus lhe retribui com bênçãos e bens. Esse é um Deus que legitima o mercado. Você consegue ouvir aqui uma sinetinha histórica tilintando? Deus deve estar cansado de ver esse filme.
5. Subsídios litúrgicos
Recomendo que se cante o hino “Há sinais de paz e de graça” (HPD 1, 165). Nessa celebração, não deveria faltar o Kyrie, que traz a Deus muitas das esperanças frustradas e que pede por animação e sustento para continuar lutando. O Glória pode enfatizar o cuidado materno de Deus. A oração de coleta pode lembrar do Deus que ouve o clamor de seu povo escravo no Egito e exilado na Babilônia, desce para libertá-lo e dar-lhe novas perspectivas de futuro. Na oração de intercessão incluir todos aqueles grupos de indignados que lutam por um outro mundo possível.
Bibliografia
MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco; VAONA, Dario. Revelar a ternura de Deus. In: Palavra da Vida, v. 198/199. São Leopoldo: CEBI, 2004. p. 16-21.
NAKANOSE, Shigeyuki; PEDRO, Enilda de Paula; TOSELI, Cecília. Como ler o terceiro Isaías (56-66). São Paulo: Editora Paulus, 2004.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).