Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Isaías 9.1-4
Leituras: Mateus 4.12-23 e 1 Coríntios 1.10-18
Autor: Michael Kleine
Data Litúrgica: 3º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 26/01/2014
1. Introdução
Duas questões chamam a atenção no texto sugerido para a pregação neste domingo. A primeira diz respeito à sua delimitação. A segunda é o fato de ele aparecer em duas épocas litúrgicas diferentes (no mesmo ano). Na exegese bíblica, há consenso de que o texto termina no v. 7, e não no v. 4, como sugere o Lecionário Comum. Não está claro por que nossa perícope foi cortada pela metade. Talvez o motivo seja o anúncio feito no v. 6 (“Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu”), que faz de Isaías 9.1-7 um texto natalino (a série de perícopes do ano A sugere no Natal Is 9.2-7). A razão de nossa perícope aparecer novamente na época após Epifania deve ser o fato de o evangelho deste domingo citar Isaías 9.1-2 (Mt 4.15-16.). A inclusão do v. 1, que no Natal ficou de fora, faz pensar que ali está a ênfase na escolha dos textos. O versículo é uma profecia dirigida à região da Galileia, e Mateus 4.12-17 relata justamente o início da atividade de Jesus nessa região (o que seria, segundo o evangelista, o cumprimento da profecia). Mas não creio que esse possa ser um critério para a delimitação de nosso texto (ou de qualquer outro). Os critérios de delimitação precisam ser encontrados no próprio texto a partir de sua estrutura interna, tema e relação com o contexto literário no qual se encontra.
2. Exegese
Temos diante de nós uma promessa de salvação, em cujo centro está o anúncio do nascimento de um rei (v. 6). No contexto dos capítulos 1-12, há quatro palavras de salvação: 2.1-5; 4.2-6; 9.1-7 e 11.1-16. É importante notar que essas palavras sempre prometem uma salvação futura para depois do cumprimento do juízo/castigo que Deus enviará contra o seu povo. O motivo do juízo é que o povo se rebelou contra Deus (1.2): “Abandonaram o SENHOR, blasfemaram do Santo de Israel, voltaram para trás [lit.: viraram as costas = desprezaram]” (1.4). O pecado de Israel: “Rejeitaram a lei do SENHOR dos Exércitos e desprezaram a palavra do Santo de Israel” (5.24). A desobediência é visível na forma de injustiças sociais, corrupção, idolatria e todo tipo de crimes. O castigo para esse desprezo virá na forma de invasão por uma potência estrangeira, que destruirá a terra e deixará apenas alguns sobreviventes (1.7-9). E é para esses sobreviventes que o profeta anuncia sua visão de futuro.
O v. 1 destoa um pouco dos demais e é o único que tem a sua presença contestada na perícope. Alguns exegetas deixam-no fora por entender que ele se refere apenas a uma região do Reino do Norte, enquanto o v. 7 fala do trono e do reino de Davi (que abarca os Reinos do Norte e do Sul, ou seja, o povo de Deus como um todo). Enquanto o v. 1 é bem concreto e menciona uma situação específica da história, os v. 2-7 falam em forma de hino de uma forma mais genérica e poética. Mesmo assim, acho que o v. 1 funciona como uma espécie de “título” para o restante, o que ficará mais claro a partir da interpretação do texto e de cada um de seus versículos. A perícope está dividida em quatro estrofes: 2s, 4s, 6, 7. A primeira anuncia a grande virada, enquanto as demais indicam o motivo da mudança e o descrevem. Uso como base a tradução de João Ferreira de Almeida (Revista e Atualizada), indicando entre colchetes alguma tradução alternativa.
V. 1 – A primeira frase não é muito clara no hebraico. Numa tradução literal, ficaria mais ou menos assim: “Porque não [permanecerá?] escuridão para quem [está] em aperto”. Com os termos “trevas” e “escuridão” se descreve a situação do país após o juízo de Deus (cf. 5.30), ou seja, após a invasão do exército assírio (5.24-30). Os versículos imediatamente anteriores ao nosso parecem referir-se a uma situação assim: “Passarão pela terra duramente oprimidos e famintos… Olharão para a terra, e eis aí angústia, escuridão e sombras de ansiedade, e serão lançados para densas trevas” (8.21s). Na continuação, o versículo faz referência à invasão assíria no norte de Israel, que transformou aquela região (Galileia, planície litorânea) em província do império assírio (cf. 2Rs 15.29). A ação de Deus é vista em tudo o que acontece com seu povo: Deus fá-lo cair em desprezo e vergonha, mas é ele também quem traz glória e honra. O profeta divide a história em dois momentos: os “primeiros tempos” referem-se ao presente, o tempo da desobediência, do castigo e da angústia do povo; os “últimos” são o tempo da salvação. E é sobre essa salvação que falam os v. 2-7.
V. 2-3 – Na linguagem profética, os “primeiros tempos” já são coisa do passado. Não que a grande virada já tenha acontecido; ele ainda a está anunciando. Mas a certeza é tanta, que ele já fala dela no passado. A julgar pela referência ao “trono de Davi” (v. 7), o “povo” que anda nas trevas é todo o Israel. Deus escondeu o seu rosto dele (8.17) e entregou-o ao inimigo (7.17-25; 7s, 23a). Na “região da sombra da morte” não existem mais possibilidades de sobrevivência, não há mais esperança. Para esse povo resplandece uma “grande luz”. No v. 3, o profeta dirige-se diretamente a Deus como que em ação de graças e louvor. O povo que havia sido aniquilado, do qual sobraram apenas alguns poucos (6.11s), foi novamente “multiplicado”. O próprio Deus torna grande a sua alegria, e eles reconhecem isso voltando-se para ele (“diante de ti”, lit. “diante da tua face”). Sentem-se agraciados por Deus como depois de uma boa colheita ou de uma batalha vencida.
V. 4-7 – Estes descrevem a grande virada, os motivos da grande alegria. São três frases que iniciam com “porque” (kî). V. 4: Deus derrota os inimigos e liberta seu povo “como no dia dos midianitas” (cf. Jz 7), ou seja, com pouquíssimos meios e de forma totalmente inesperada/surpreendente (essa referência histórica destaca a forma de agir de Deus: quando se trata da salvação, é ele quem age; a participação humana é apenas simbólica). Ele “despedaça” a “canga” que pesa sobre o povo, que deve ser a opressão e a exploração imposta pelo império assírio. V. 5: todos os sinais da opressão e da presença dos inimigos são eliminados na queima dos uniformes de guerra. V. 6: a perícope alcança o seu ponto mais alto. Não apenas terminou a opressão e o inimigo foi derrotado, mas um reino eterno de paz e justiça está para começar. Isso “porque” (kî) um novo rei será entronizado para restaurar o glorioso reino de Davi. Chama a atenção o duplo “para nós” (“nos nasceu”, “se nos deu”). O novo rei é um presente de Deus. O seu governo não é uma imposição ou um fardo pesado, como foram todos os outros (cf. 1Sm 8.10-18; 1Rs 12.4), mas é ele quem carrega o governo “sobre os seus ombros”. Que esse rei é diferente dos outros mostram os quatro nomes que ele recebe. Esses nomes são qualidades que colocam o futuro rei mais perto de Deus do que dos seres humanos. “Maravilhoso Conselheiro” lembra o próprio SENHOR dos Exércitos, que é “maravilhoso em conselho e grande em sabedoria” (Is 28.29). “Deus Forte”: ele é o legítimo representante de Deus na terra, aquele que executa o plano maravilhoso de Deus. “Pai da Eternidade” aponta para a função de proteção, provimento e cuidado (José é “pai de Faraó, e senhor de toda a sua casa, e… governador em toda a terra do Egito” [Gn 45.8]. “Pai” era a função de administrador responsável pelo alimento, cf. Gn 41.39-49,53-57). Na qualidade de “Príncipe da Paz”, ele garante não apenas o fim das guerras, mas uma realidade de bem-estar geral, de plenitude (shalom). V. 7: o novo tempo que Deus inaugura é definitivo, de “paz sem fim”, “desde agora e para sempre”. E essa paz em sentido amplo está garantida por dois pilares: “o juízo e a justiça”. Juízo (= direito) e justiça são as normas que garantem a boa convivência social e que correspondem à vontade de Deus. Elas garantem o direito à existência de todos os membros do povo e fazem parte da boa ordem da criação. Onde “juízo e justiça” são desrespeitados, entra em vigor a lei do mais forte. O resultado é exploração, desigualdade, miséria, corrupção e abuso de poder (cf. Is 1.17, 21-31; 10.1-4; a falta de “juízo e justiça” é razão para o castigo de Deus).
“O zelo do SENHOR dos Exércitos fará isso.” Esse é o selo, a garantia de que as promessas acima serão cumpridas. O SENHOR é “Deus zeloso” (Êx 20.5), que cuida pessoalmente de seu povo, zela pelo cumprimento de seus mandamentos e de sua honra. É o zelo do amor por aqueles que o amam e que é transformado em ira pelos que o desprezam.
3. Meditação
O profeta Isaías sabe, a partir da fé no que ele ouviu de seus antepassados, que a realidade em que se encontra o povo de Deus não pode ser definitiva. Israel virou as costas para Deus, e as consequências foram terríveis. O povo anda “em trevas”, oprimido por inimigos e sem esperança. Mas a fé no Deus de Israel e em suas promessas faz com que Isaías veja um futuro diferente. Ele vê a intervenção de Deus em favor do povo.
A visão de futuro do profeta aparece com as cores que ele conhece. Ele formula sua esperança a partir das ideias de sua própria época. Sendo assim, para ele, a ajuda de Deus só poderia vir na pessoa de um rei. Naquele tempo, todas as expectativas de bem-estar, de justiça, de paz e prosperidade estavam voltadas para o rei (cf. Sl 72). O rei era o legítimo representante de Deus na terra. Por isso o rei sempre era descrito como tendo qualidades divinas.
A promessa acontece para dentro de uma situação específica, mas vai muito além das possibilidades deste mundo. O texto promete uma intervenção de Deus em favor de seu povo. Mas não é uma ajuda para resolver um problema específico; é uma mudança radical de sua situação, da realidade como um todo. É a promessa de um novo “reino” (v. 7), de “paz sem fim”, em que a vontade de Deus (juízo e justiça) é válida sem restrições. Algo humanamente impossível. No centro está a promessa de que Deus dará a seu povo um novo “príncipe”, um novo “cabeça”, que o conduza nesse reino de paz e justiça.
O Novo Testamento viu o cumprimento dessa promessa em Jesus (Mt 4.12-17). Obviamente, Jesus não é o rei nos moldes que Isaías esperava. Mas os seus seguidores/as viram nele a luz que resplandece (cf. Jo 1.4-5; 8.12) ao povo que vivia “na região da sombra da morte”. Com ele chega também o “reino dos céus” (Mt 4.17), o reino de “paz sem fim” (Is 9.7). Na própria pessoa de Jesus, esse reino está “próximo”. Jesus, que após sua ressurreição se torna “Senhor e Cristo”, inaugura um novo tempo para o povo de Deus. Ele é o divisor de águas, o início dos “últimos tempos” (Is 9.1). O reino manifestado por Jesus Cristo está muito além do que Isaías esperava.
Uma das características centrais de Isaías 9.1-7 é a tensão entre realidade e “utopia” (no sentido de um lugar que ainda não existe). Por um lado, ele fala diretamente para dentro da realidade concreta do povo (cf. v. 1), especialmente sua miséria e angústia, prometendo a intervenção de Deus e a libertação dessa situação opressiva. Por outro lado, a intervenção de Deus parece ir além do que é possível nessa realidade. Ainda que Isaías formule a sua esperança dentro daquilo que se esperava de um rei, em sua visão ele nos mostra um futuro que só poderia ser uma “nova criação” de Deus. E justamente essa tensão está presente na atuação e na pregação de Jesus.
Jesus é a “aparição” (epifania) de Deus em nossa realidade com todas as suas misérias e limitações. Ele já é a vitória sobre todos os poderes que nos oprimem e aprisionam: doença, morte, pecado, incredulidade (falta de fé), egoísmo, medo, injustiças, culpa etc. Mas, ao mesmo tempo, ele anuncia algo que vai muito além dessa realidade: o “reino dos céus”. Jesus traz para dentro deste mundo a realidade de um novo mundo, no qual haverá paz sem fim, onde reinará a vontade de Deus. Não é apenas promessa; já começou a ser realidade. Pois Jesus Cristo, o Crucificado-Ressurreto, já atua como “Maravilhoso Conselheiro”, “Deus Forte”, “Pai da Eternidade” e “Príncipe da Paz” entre aqueles que creem nele e o seguem.
“Como no dia dos midianitas” – Jesus Cristo está quebrando as cangas e libertando pessoas de todo tipo de opressão através de seu minúsculo e fraquinho exército de seguidores e seguidoras, que têm apenas “trombetas e tochas” nas mãos (cf. Jz 7.20). Esses instrumentos que fazem irromper o “zelo” de Deus já neste mundo e que põem “os inimigos” para correr são aqueles que Jesus deixou para o grupo dos seguidores: a pregação do evangelho, que não apenas promete para o futuro, mas já realiza a libertação que anuncia (cf. Is 55.10-11); o Batismo, que nos une a Cristo em sua morte e ressurreição, operando durante toda a nossa vida a morte do velho ser humano e do velho mundo, sempre rebeldes contra Deus, e o nascimento da “nova criatura”, que já faz parte do novo céu e da nova terra; a confissão e absolvição particular dos pecados, através das quais é quebrado diariamente o jugo que nos mantém presos ao velho mundo e sua lógica; e a Ceia do Senhor, que nos liga ao passado (cruz), presente (ressurreição) e futuro (reino) de Jesus Cristo, na qual o reino de “paz sem fim” se incorpora em nós, concedendo “remissão dos pecados, vida e salvação” (Catecismo Menor, 6ª parte, 2). “Pois, mediante a palavra e pelos sacramentos, como por instrumentos, é dado o Espírito Santo, que opera a fé, onde e quando agrada a Deus, naqueles que ouvem o evangelho” (Confissão de Augsburgo, V). O Espírito Santo é justamente o nome que damos à presença do “reino” futuro de Deus já no presente.
Apareceu o poder de Deus neste mundo na pessoa de Jesus. E o “poder de Deus” continua “aparecendo” na proclamação do evangelho de Jesus Cristo, na “palavra da cruz” (1Co 1.18, epístola do dia). A palavra do profeta começou a tornar-se realidade na vida daqueles que o ouviram, creram e que basearam suas escolhas nessa confiança no Deus de seus antepassados. Muito mais agora a palavra do evangelho é e torna-se realidade, pois o Filho que “se nos deu” já está aí atuando – “em, com e sob” as palavras e ações daqueles que creem.
Bibliografia
KOCH, Klaus. Die Propheten I: die assyrische Zeit. 2. ed. rev. Stuttgart/Berlin/Köln/Mainz: W. Kohlhammer, 1987.
WILDBERGER, Hans. Königherrschaft Gottes: Jesaja 1-39. V. 1 e 2. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener, 1984.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).