Acontece na próxima segunda-feira, 6, o evento em homenagem aos “600 anos do martírio de Jan Hus”. A República Tcheca comemora a data com feriado nacional.
Aqui no Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul, ele será homenageado através da realização da palestra “A contribuição de Jan Hus para a identidade tcheca”, com o Dr. Thiago Borges de Aguiar, o maior conhecedor de Jan Hus no Brasil. Aguiar é autor da tese, que foi transformada em livro Jan Hus – Cartas de um educador e seu legado imortal.
Informações sobre o evento:
DATA: 6 de Julho de 2015 (segunda-feira)
HORÁRIO: 20 horas
LOCAL: Rua Senhor dos Passos, 202 – Centro – PORTO ALEGRE
No salão paroquial da Igreja da Reconciliação
Estacionamento no local, a pagar.
PROMOÇÃO: Associação Cultural Tcheco-Brasileira do RS
PATROCÍNIO: Consulado Geral da República Tcheca
APOIO: Paroquia Matriz/IECLB, Igreja Batista Gaúcha, Faculdades EST.
Abaixo, confira a entrevista realizada por Merton Wondracek, vice-presidente da Associação Cultural Tcheco-Brasileira do RS, organizadora da palestra de Thiago Borges de Aguiar, gentilmente cedida.
Thiago Borges de Aguiar é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, professor da Universidade Metodista de Piracicaba e pesquisador na área de história da educação, investigando, em especial, a história tcheca no período entre os séculos XV e XVII. É autor de Jan Hus: cartas de um educador e seu legado imortal, publicado pela Editora Annablume, com apoio da FAPESP e do Consulado Geral da República Tcheca.
1. MW. Como você conheceu a história de JAN HUS? O que o levou a interessar-se a ponto de fazer a tese que gerou o livro JAN HUS – CARTAS DE UM EDUCADOR E SEU LEGADO IMORTAL?
Thiago: Eu não conhecia Jan Hus até o ano de 2004 quando um amigo me deu de presente um livro das cartas de Hus traduzidas para o inglês. Comecei a ler aquelas cartas e me encantei com o modo como o autor as escrevia. Lembro-me, em especial, de uma carta ao arcebispo no qual, como serenidade e um toque de ironia, Hus responde às acusações que sofria utilizando de argumentos lógicos e firmes. Quando pensei em ingressar na pós-graduação, fiz um levantamento bibliográfico e descobri que Hus era um nome praticamente não pesquisado no Brasil e decidi montar minha pesquisa para aprofundar em sua história, práticas, ideias e memória.
2. MW. Certamente houve muita dificuldade, por exemplo, a busca das cartas de Hus e a língua tcheca. Esse “garimpo” foi vencido, mas trouxe, além da tese, alguma contribuição à sua própria formação?
Thiago: Imagine a dificuldade de fazer uma pesquisa sobre Hus no Brasil. A quantidade de materiais disponíveis em língua portuguesa é ínfima e, algumas, de qualidade duvidosa. Trabalhei, prioritariamente, com pesquisas em inglês, pois há boas produções espalhadas pelo mundo. Eu comecei minha investigação pensando que existia apenas um único exemplar da coletânea de cartas. Logo, deparei-me com três versões em língua inglesa, originadas de três versões em latim/tcheco diferentes. E isso não estava na minha mão desde o começo: eu fui descobrindo os textos ano a ano. Não bastou o garimpo, foi necessária a lapidação. No meio do processo, decidi que deveria estudar a língua tcheca. Estudei tcheco por cinco anos, o que foi fundamental para que, em primeiro lugar, eu pudesse me aproximar de uma cultura que eu desconhecia por meio de uma língua que era totalmente nova. E mesmo com cinco anos de estudo do tcheco e dez anos de estudo da história tcheca eu me sinto no início, no começo de tudo. Meu maior aprendizado nesse processo é saber que nosso saber ainda é muito inicial, que temos muito a descobrir e desbravar.
3. MW. O tema da palestra dia 6 de julho em Porto Alegre, no prédio da Igreja da Reconciliação, será A CONTRIBUIÇÃO DE JAN HUS PARA A IDENTIDADE TCHECA. Nesse sentido poderia nos adiantar algum aspecto importante?
Thiago: A memória coletiva é um grande desafio para um historiador. E trabalhar com a história tcheca, para mim, é um grande aprendizado. Na palestra, vou abordar como diferentes períodos da história tcheca construíram uma memória singular a respeito de Hus. Ele foi lido de modos diversos ao longo dos séculos. Como todo ato de memória é um ato criativo, Hus foi transformado em herói nacional, mártir e mestre, mas com nuances específicas. É diferente o modo como os primeiros hussitas rememoraram Jan Hus do modo como ele foi rememorado em meados do século XIX, que foi diferente do período da independência, que também foi diferente no início do Comunismo. Mas o que mais me chama a atenção é que a figura dele sempre esteve lá presente. O que ele fez ou disse de tão forte que criou um legado que parece que não se esvai nunca, um “legado imortal”?
4. MW. Sabe-se que o Imperador Carlos IV enfrentou dificuldades imensas em seu reino, como a peste, as inundações, a quebra de colheitas, fome, e praga de gafanhotos. Mas instalado em Praga, capital do Sacro Império Romano na sua época, foi bem acolhido. Pois Hus nasceu ao final de seu reinado, após esse clima de dificuldades, cheio de superstições e paranoias do fim do mundo, além da polêmica cisma católica. A seu ver, esse ambiente teve influências em Hus, se é que teve influência?
Thiago: Apesar de levar em consideração os aspectos que você levantou a respeito do século XIV, eu prefiro olhar o reinado de Carlos IV a partir de outro enfoque. Ele passou sua infância em terras francesas e quando retorna para Praga, quis transformá-la em uma nova Paris. Para isso, fez diversas intervenções urbanísticas e culturais que culminaram no fortalecimento de uma identidade tcheca, diria até mesmo “nacionalista”, guardadas as características do que pode ser chamando de “nacionalismo” naquele período. Nesse sentido, Hus nasce em um período de efervescência cultural e política tcheca que foi fundamental para o desenvolvimento do hussitismo como fenômeno religioso no século XV. Esse assunto é muito longo para desenvolver aqui, e tenho diversos escritos a respeito, mas, de forma sintética, Hus foi o “catalisador” de um movimento nacionalista e religioso tcheco que cresceu fortemente entre o século XV e XVI e que culminou na obra didática de outro grande nome tcheco, Jan Amos Komenský, no século XVII.
5. MW. HUS se inspirou em Wiclif e Lutero se inspirou em Hus. É verdadeira essa assertiva? Quem foi o mais original?
Thiago: Essa é uma boa pergunta, especialmente porque pode ajudar a esclarecer pontos que geram debates por vezes acalorados, até mesmo entre alguns pesquisadores. Vou tentar explicar isso de forma simples: nossa visão de originalidade é bem diferente da visão que eles tinham nos séculos XIV a XVI, período dos três nomes que você citou. Nenhum dos três buscou ser “original”. O que eles queriam era estarem mais próximos da verdade. Nesse sentido, era comum um literalmente copiar as ideias do outro. Cada um atuou em seu período, com suas características pessoais e com sua formação para modificar o que consideravam equivocado nas práticas da Igreja. E os três elaboraram reflexões teológicas, políticas e, por que não, educacionais, originais (no sentido que pensamos hoje) em relação ao anterior. Se for para comparar os três, Hus era o mais moderado no que diz respeito à sua relação com a Igreja. No que diz respeito às influências, Wyclif foi uma das importantes leituras que Hus fez, mas ele não foi necessariamente um wyclifista. Lutero também teve contato com as obras de Hus, mas a influência deste na vida daquele foi mais pelo exemplo do que pelas ideias. Entendo que a fala de Lutero “somos todos hussitas” é mais de caráter afetivo (além de ser um ato político) do que de influência direta do pensamento de um no outro.
6. MW. HUS é o educador, professor e reitor de universidade, pregador da Capela de Belém. O que o aproximou tanto da população? A oposição aos maus líderes ou a pregação em tcheco baseada na Bíblia?
Thiago: Minha tese é que Hus foi um educador por sua atuação na Universidade de Praga e na Capela de Belém, por sua relação com a língua tcheca, pela vontade de querer continuar a educar, mesmo no exílio, com a escrita de cartas e pelo legado que foi rememorado por outros nos séculos seguintes. Entendo um educador a partir de suas intenções educativas e pela repercussão de seus atos educativos naqueles que foram por eles educados. A Capela de Belém, sem dúvida, foi o espaço que serviu para aproximar Hus das pessoas de diferentes posições na sociedade. Essa capela foi construída para que o sermão fosse proferido em tcheco. Hus foi o primeiro sacerdote que efetivamente fez suas pregações na língua do povo, além de ter composto hinos para serem cantados na capela e de ter escrito textos para que as pessoas pudessem compreender o cristianismo na língua vernacular. É digno de destaque que Hus compôs uma cartilha para o ensino das primeiras letras em tcheco.
7. MW. A tradução da Bíblia para uma língua moderna, ao inglês por Wiclif em 1384, ao tcheco pelos seguidores de Hus em 1579, e para o alemão por Lutero em 1534. Com esse acesso popular à Bíblia sagrada, ampliado pela imprensa de Guttemberg, que modificações ocorreram no comportamento tanto tcheco como europeu em geral?
Thiago: Este é outro assunto que caberia uma palestra inteira somente para ele. Mas é um daqueles que foi bem desenvolvido nas pesquisas acadêmicas. Há uma importante relação entre a leitura da bíblia e o desenvolvimento da educação escolar. Embora não seja o único fator, houve um crescimento no número de escolas e um investimento nas reflexões a respeito sobre como educar as crianças a partir da possibilidade de se ler a bíblia na língua vernacular. No que diz respeito aos tchecos, a Bíblia de Králice foi um trabalho dos humanistas morávios, em especial de Jan Blahoslav, que também foi autor de uma gramática da língua tcheca. Era um período de desenvolvimento do protestantismo e de fortalecimento do ideal nacionalista tcheco que estavam presentes no trabalho de tradução da bíblia. Essa é uma tradução ainda utilizada nos dias de hoje na República Tcheca e que teve repercussões significativas na reconstrução da língua tcheca erudita no século XIX, depois de um longo período de exílio do idioma, se assim posso me referir ao período dos séculos XVII a XIX nas terras tchecas.
8. MW. O reconhecimento da integridade de HUS pelos papas atuais traz que consequências?
Thiago: Por articulação do Arcebispo de Praga e do então presidente Václav Havel, houve em 1999, um seminário a respeito de Jan Hus que teve como ponto importante um discurso do então papa João Paulo II. Nesse discurso, o papa afirma que é necessário buscar a “verdade histórica” a respeito de Hus. Foi um importante passo para, dentro da Igreja Católica, buscar uma modificação da posição oficial de Hus como um heresiarca. No entanto, não é algo simples para a Igreja modificar essa posição, visto que Hus foi acusado de seguir as ideias de Wyclif, que também foram consideradas heréticas no Concílio de Constança, e inocentar Hus é, de certa forma, inocentar o teólogo inglês. As ideias de Wyclif são fortemente antipapistas, o que certamente causaria embaraço se fossem aceitas pela Igreja. O papa Bento XVI esteve na república tcheca dez anos depois de João Paulo II e volta a falar de Hus nos termos de haver relevantes debates a respeito das “iniciativas ecumênicas” que envolvem as discussões a respeito de Hus. São passos muito lentos para que o Vaticano possa avançar na discussão a respeito do que aconteceu no Concílio de Constança.
9. MW. Em sua opinião, que benefícios, imediatos ou não, a pessoa de Hus favoreceu a humanidade?
Thiago: Hus morreu defendendo a verdade. Para ele, a verdade era mais importante do que a tradição. Eu digo que suas ideias só fazem sentido porque ele as defendeu até o fim. Lutar pela verdade é para poucos. Hus defendeu a verdade sem intransigência. Ele sabia escutar e sempre se mostrou aberto a ouvir aos outros. Dizia que se alguém lhe mostrasse, com argumentos, que ele estava errado, imediatamente mudaria de ideia. Nesse sentido, Hus era um grande defensor da tolerância e contra a imposição de falsas verdades por figuras em lugar de poder. A verdade não se impõe, ela se conquista. É uma conquista livre e com muito esforço. Assim como outros grandes nomes que defenderam a liberdade, a tolerância e a verdade ao longo da história, ele foi perseguido. Mas o exemplo desses grandes nomes fica, porque a “verdade tem a propriedade de brilhar mais forte sempre que se tenta apagá-la e de subir mais alto sempre que se tenta rebaixá-la, mesmo que às vezes caia”.