Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Jeremias 1.4-10
Leituras: Lucas 4.21-30 e 1 Coríntios 13.1-13
Autor: Michael Kleine
Data Litúrgica: 4º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 03/02/2013
1. Introdução
O texto de prédica é um relato de vocação profética, no qual se destaca a resistência do profeta a aceitar o chamado de Deus. A resistência é motivada pelo sentimento de incapacidade e pelo temor diante da oposição que irá enfrentar. O texto do evangelho segue essa linha, relatando o episódio da rejeição de Jesus em sua terra natal. Só não entendi a razão dos v. 16-20 terem sido suprimidos da leitura. Sugiro que eles sejam lidos, pois justamente neles Jesus cita uma passagem do Antigo Testamento para dizer que ele se encontra na continuidade da tradição profética daqueles que foram ungidos para ser mensageiros de Deus. O texto sugerido de 1 Coríntios 13 não me parece ter relação com a temática. Sugiro como alternativa a leitura de 2 Coríntios 4.7-15 ou de outro trecho em que o apóstolo Paulo destaca a fraqueza e a incapacidade dos mensageiros de Deus, escolhidos justamente por causa disso, para que a glória seja dada unicamente a Deus.
2. Exegese
De todos os livros proféticos do Antigo Testamento, o livro de Jeremias é o que mais dá destaque à pessoa do profeta: seu local e sua família de origem, o sofrimento pessoal ligado a seu ministério, momentos-chave de sua vida. O capítulo 1 é um relato da vocação do profeta. Nele já estão presentes os elementos fundamentais de sua mensagem e de seu ministério. O traço marcante do relato fica por conta da resistência e da oposição que Jeremias irá enfrentar, de seu medo diante da perspectiva de perseguição e da promessa de proteção e ajuda da parte de Deus. São elementos que voltarão a aparecer no transcorrer do livro.
V. 4 – “A mim me veio a palavra do Senhor” – literalmente: “e a palavra do Senhor aconteceu a mim”. Expressão frequente no livro de Jeremias (e Ezequiel), mas que aparece só uma vez em Isaías (38.4) e nenhuma nos profetas “menores” que atuaram antes de Jeremias. – Em nenhum outro profeta, a tarefa de transmitir a palavra de Deus é refletida com tanta intensidade como em Jeremias (cf. R. Rendtorff, p. 190). Em nenhum outro livro do Antigo Testamento, a expressão dābār “palavra” aparece com tanta frequência (mais de 200 vezes, na maioria referindo-se à palavra de Deus).
V. 5 – A palavra dirigida a Jeremias lembra-o de que ele é obra das mãos de Deus. Ele foi modelado/formado (jāṣ ar) no ventre materno, assim como Deus modelou/formou o primeiro ser humano (cf. Gn 2.7s) e todos os demais. A imagem de que Deus forma individualmente cada ser humano evoca várias ideias: de que somos propriedade de Deus, do valor de nossa existência a seus olhos, de nossas características individuais/particularidades, do conhecimento profundo que Deus tem de cada um/a em seus mínimos detalhes (cf. Sl 139.13ss, com outra terminologia). O “formar” expressa também a ideia de intencionalidade e de propósito: Deus forma o ser humano para que ele cultive o jardim; ele forma um povo para a sua glória (Is 43.1,21; 44.2,21), um servo para reunir o seu povo (Is 49.5). – Mesmo antes de ter formado Jeremias no ventre materno, Deus já o conhecia (jādaʿ) e já o havia escolhido (o termo também é usado com esse último sentido, cf. Gn 18.19s; Am 3.2); antes de seu nascimento, Deus já o havia “consagrado” (lit. “santificado”) profeta. O âmbito de atuação de Jeremias não se restringe ao povo de Deus; ele é constituído “profeta para as nações” (cf. v. 10: “te constituo sobre as nações e sobre os reinos”).
V. 6 – “Ah! Senhor Deus!” A reação de Jeremias é de temor e lamento. Ele expressa seu sentimento de inaptidão, sua dificuldade de falar por causa da pouca idade. Provavelmente, Jeremias refere-se à sua falta de autoridade numa sociedade em que somente os “anciãos” são cidadãos plenos com direito a emitir opiniões públicas (cf. Is 3.5; Jó 32.6ss). Jeremias também teme que fará inimigos (cf. v. 8: “Não temas diante deles”), seja por sua presunção em falar sem ser chamado pelos mais velhos, seja pelo teor da mensagem que irá transmitir.
V. 7s – Deus leva a sério o temor de Jeremias. Ele não diz: “Tu não és uma criança”, mas: “Não digas: Não passo de uma criança”. Deus supre a autoridade que falta a Jeremias, enviando-o em seu nome. E ele não falará suas próprias palavras, nem emitirá sua própria opinião, mas falará aquilo que Deus ordenar. “Não temas diante deles” – aqueles a quem Deus “formou” e escolheu para uma tarefa podem contar com sua presença e ajuda (“eu sou contigo para te livrar”) e não precisam temer os perigos que advêm de sua missão (cf. Is 43.1; 44.1s).
V. 9 – O envio é confirmado e reforçado através de um sinal visível: um toque da mão de Deus na boca de Jeremias: “Eis que ponho na tua boca as minhas palavras”. Aquele que se sente incapaz de falar, seja por temor ou por outros motivos, recebe em sua boca as palavras que devem ser ditas.
V. 10 – Os temores de Jeremias não eram infundados. As palavras que ele anunciará a “nações” e “reinos” primeiramente produzirão destruição, para somente depois edificar. Não são boas as notícias que ele traz (cf. 1.13-16). Elas produzirão resistência e oposição dos reis, príncipes, sacerdotes e do povo, que se voltarão contra o profeta (v. 18s). São palavras de juízo contra um povo que abandonou seu Deus, palavras que chamam ao arrependimento e à conversão. Israel é como o vaso que precisa corresponder aos propósitos do oleiro que o formou, para não ser “arrancado, derrubado e destruído” (cf. Jr 18.1-10). Aos que não aceitam a pregação do profeta, as palavras que Deus profere através dele podem ser destruidoras: “Converterei em fogo as minhas palavras na tua boca e a esse povo, em lenha, e eles serão consumidos” (5.14) – “Não é a minha palavra fogo, diz o Senhor, e martelo que esmiúça a penha?” (23.29).
O relato da vocação de Jeremias possui os seguintes elementos: incumbência (v. 5: “te constituí profeta”), objeção (v. 6: “Ah, Senhor”), recusa da objeção (v. 7s: “Não digas/não temas”), sinal (v. 9: a mão de Deus toca a boca de Jeremias), retomada e desdobramento da incumbência (v. 10: “Hoje te constituo, para…”). A maior parte do relato (v. 6-9) é dominada pela objeção de Jeremias, pois as palavras de Deus nos v. 7-9 visam superar a resistência e os temores do profeta. Minha impressão é que mesmo o v. 5 já antecipa a objeção de Jeremias, pois ali Deus fornece o fundamento para a palavra de encorajamento que vem depois: “Não temas – eu sou contigo para te livrar” (v. 8). O fundamento do “não temas” é a afirmação “eu te formei”. No livro de Isaías, temos essa ligação típica: Assim diz o Senhor, que te criou/formou: Não temas! (cf. Is 43.1s,4s,7,10; 44.1- 8). A mensagem de Deus para Jeremias é clara: Não tenha medo daqueles que te ameaçam por causa da mensagem, que não te levam a sério por causa da tua pouca idade, pois eu mesmo te modelei nos mínimos detalhes (tanto os pontos fortes como os fracos), eu te conheço como ninguém, e por isso eu te escolhi; tu és extremamente precioso aos meus olhos.
3. Meditação
Desde que Deus escolheu e formou para si um povo especial, ele tem também destacado pessoas para falar em seu nome ao povo ou mesmo a representantes de outros povos. Segundo o testemunho do Antigo Testamento, isso é assim por causa do medo do povo de ouvir diretamente a voz do SENHOR: “Não fale Deus conosco, para que não morramos” (Êx 20.19; cf. Dt 18.15-18). O mensageiro que fala em nome de Deus é chamado de “profeta” (nābîʾ). Moisés foi o primeiro e maior de todos os profetas (cf. Dt 34.10). Todo profeta que vem depois de Moisés será como ele: em sua “boca porei as minhas palavras, e ele falará tudo o que eu lhe ordenar” (Dt 18.18).
Jeremias 1.4-10 reflete uma realidade que sempre se repete com aquelas pessoas a quem Deus chama no Antigo Testamento para falar em seu nome: antes de se sentirem honradas com a escolha, elas sentem medo e se conscientizam do peso excessivo dessa responsabilidade, das consequências negativas para sua vida e de sua completa incapacidade para realizar a incumbência. A objeção faz parte dos relatos de vocação profética. Independente dos motivos pessoais de cada um para recusar o chamado, o sentimento é o mesmo: “Senhor, eu não presto para esse serviço”. Com Moisés já foi assim: “Quem sou eu…?” (Êx 3.11) e: “Ah! Senhor! Eu nunca fui eloquente” (Êx 4.10). Mas não se trata de modéstia ou humildade, e sim da consciência da própria inaptidão diante da missão e do medo por suas consequências. Não foi apenas Jonas que tentou fugir do chamado.
Falar em nome de Deus num mundo marcado pela rebeldia e pela inimizade contra seu Criador é uma tarefa que deveria deixar qualquer um apavorado. Aos olhos de Deus, a realidade da humanidade criada à sua imagem e semelhança só pode ser esta: “Me deixaram a mim… e adoraram as obras das suas próprias mãos” (1.16). Por isso a palavra que Deus coloca na boca de seus mensageiros sempre terá, ao lado do evangelho, a lei que questiona nosso modo de pensar e viver e que chama ao arrependimento: “O reino de Deus está próximo; arrependei- vos e crede no evangelho” (Mc 1.15). A palavra que arranca e derruba aquilo a que nos apegamos, para depois edificar e plantar aquilo que realmente precisamos, não produz muitos aplausos nem amigos.
A resistência de Jeremias (e de vários outros profetas) testemunha que ele tem plena consciência dos sofrimentos a que ele será exposto. Sua objeção e seu medo mostram que ele conhece bem a mensagem que vai transmitir bem como a realidade para a qual ele vai falar. Ele sabe que ficará bem no meio da contradição entre ambas. Jeremias sabe também que tem muito mais a perder do que a ganhar em termos de paz, reconhecimento social, status e bem-estar. A resistência ao chamado e a consciência da própria incapacidade fazem parte do ministério profético de comunicar a palavra de Deus. Algo não está em ordem quando o mensageiro desempenha a sua tarefa sem “temor e tremor” pelos motivos arrolados acima. Entre aqueles que Deus escolheu não se encontram os que se sentem muito à vontade no púlpito e seguros de si.
Deus não desqualifica a objeção de Jeremias. Ele sabe que Jeremias está falando a verdade, pois ele o conhece melhor do que ninguém. Deus sabe muito bem que pessoa alguma reúne as aptidões necessárias para a função de mensageiro. Por mais contraditório que pareça, ele escolheu Jeremias justamente por sua incapacidade. Esse parece ser o jeito de Deus de fazer chegar a sua palavra a seu povo. Ele escolhe pessoas que, aos olhos do senso comum, são consideradas despreparadas, sem autoridade, sem aptidões especiais. São os “vasos de barro” (2Co 4.7), que fazem o evangelho brilhar mais, são as “coisas fracas do mundo” que Deus escolheu “para envergonhar as fortes” – “a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus” (1Co 1.27-29). Deus não procura os “bons”, os “capazes” nem os “super-seguros-de-si”, nem tampouco concede superpoderes a seus escolhidos. Eles permanecem em sua fraqueza e em insignificância.
Seu único consolo é a confiança na promessa de Deus: Não temas, eu sou contigo, eu te formei, te conheci e te consagrei. Promessa que se tornou “visível” no Batismo, na ordenação, na imposição de mãos. A certeza do “eu sou contigo” é renovada na Ceia do Senhor, onde o “Verbo” que “se fez carne” nos é colocado na boca. Aqui, na comunhão do corpo e sangue de Cristo, estamos em melhor situação do que Jeremias. Deus já se adianta ao nosso protesto ao nos escolher antes mesmo de nosso nascimento (v. 5), assim como nós somos por ser justamente assim como ele nos fez. Ele nos “modelou” para essa tarefa, que cada um executará de uma forma bem única e particular.
Toda pessoa cristã participa do chamado e da ordenação que recebeu Jeremias de levar aos povos a palavra de Deus. Essa nós recebemos via testemunho bíblico. O chamado e a ordenação nós recebemos no Batismo, em que o próprio Deus nos toca e nos concede o seu Espírito. Do Batismo também faz parte o envio para “ensinar todas as coisas que vos tenho ordenado” (Mt 28.20). Em maior ou menor grau, todas as pessoas batizadas têm parte no envio e no sofrimento do profeta. Por isso Jeremias 1.4-10 fala a todos nós, discípulos/as de Jesus Cristo.
Bibliografia
LAMPARTER, Helmut. Prophet wider Willen – der Prophet Jeremia. Stuttgart: Calwer, 1964. (BAT 20)
RENDTORFF, Rolf. Theologie des Alten Testaments: ein kanonischer Entwurf. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener, 1999. (Band 1: Kanonische Grundlegung)
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).