Deus castiga? Não! Deus convida à ética!
Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Jeremias 14.7-10,19-22
Leituras: Lucas 18.9-14 e 2 Timóteo 4.6-8,16-18
Autoria: Evandro Jair Meurer
Data Litúrgica: 23º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 23/10/2016
1. Introdução
O texto de pregação já foi contemplado em 2013 (PL 37). O colega Musskopf apresenta como escopo da mensagem a “humildade ativa”. Naquela oportunidade, as leituras complementares eram as mesmas, bem como o tempo eclesiástico: 23º Domingo após Pentecostes, a uma semana da comemoração da Reforma.
O profeta tem a tarefa de explicar ao povo de Judá o porquê de tamanha seca (14.1) que os assola: “Deus não está satisfeito com eles” (14.10). E mesmo diante do clamor do povo (14.7-9, 19-22) Jeremias deve anunciar que Deus está irredutível na decisão de “os castigar por causa dos seus pecados”, “mesmo que jejuem e orem” (14.12), ainda que “confessem os seus pecados” (14.20).
O Mestre conta uma parábola “para os que achavam que eram muito bons e desprezavam os outros” (Lc 18.1). A conclusão de Jesus (v.14) é que “quem se engrandece será humilhado, e quem se humilha será engrandecido”.
O apóstolo orienta Timóteo (2Tm 4.6-8,16-18) a dar conselhos aos irmãos na fé no sentido de “não terem nada a ver com as lendas pagãs e tolas” (v. 7). Paulo adverte que o jovem apóstolo “cuide de si mesmo e tenha cuidado com o que ensina” (v. 16).
O profeta anuncia que a mudança virá só pelo “corretivo” divino (v. 10).
O Mestre ilustra que a paz chegará àquele que se humilha (v. 14).
O apóstolo aposta em “exercícios espirituais” (v. 7).
O foco não está no “castigo” divino, mas no “agir” ético esperado e desejado por Deus.
2. Exegese
O profeta Jeremias viveu numa época perigosa e turbulenta. Sua tarefa não era fácil. Foi até ameaçado de morte (26.8) por profetizar a “vinda do norte de uma panela fervendo e se derramando para o lado de Judá” (1.13). Tinha de anunciar a desolação de Jerusalém. O período abrangido pelo livro de Jeremias é de 67 anos (647-580 a.C.): de seu chamado (Jr 1) até a destruição do templo de Jerusalém e o exílio babilônico (Jr 52), passando pela profecia, denúncia/anúncio da “maldade” humana e o “castigo” divino (14.10).
Conforme estruturações habituais “de cunho escatológico”, a perícope está inserida na primeira parte do livro (Jr 1-25): “ditos e profecias de desgraça contra o próprio povo” (SCHMIDT, p. 226). O capítulo 14 está incluso em sua segunda fase de atuação: durante o reinado de Jeoaquim (Jr 7-20). Jeremias toma a palavra, proferindo discurso contra o povo de Judá e o templo em Jerusalém (SCHMIDT, p. 230).
Os dois trechos (14.7-10 e 14.19-22) apresentam o mesmo enfoque: a tentativa do povo em reverter a decisão já anunciada por Deus por meio do profeta; o apelo desesperado do povo em implorar a compaixão divina. Nesse “diálogo com Deus – em forma de lamentação” (SCHMIDT, p. 233), um recurso de linguagem que ocupa amplo espaço no livro de Jeremias, o profeta expressa sentimentos de tristeza e dor (v. 19) e até revolta contra a decisão de Deus (20.7ss), além do desejo do povo por misericórdia (v. 7) e manifestação de seu poder transformador (v. 22).
Eis o diálogo presente no capítulo 14 (os textos que não fazem parte da perícope estão entre parênteses).
(14.1-7 = Deus fala para Jeremias a respeito da seca)
14.7-9 = O povo fala para Deus
14.10 = Deus fala para Jeremias a respeito do povo
(14.11-12 = Deus fala para Jeremias)
(14.13 = Jeremias fala para Deus)
(14.14-16 = Deus responde para Jeremias)
(14.17-18 = Jeremias fala para o povo)
14.19,21-22 = O povo fala para Deus
O que o povo fala para Deus? (entre parênteses a tradução de Almeida/ após a barra em itálico o termo em alemão, cf. Züriche Bibel)
1) O povo reconhece (v. 7a) os seus “pecados” (maldades) e admite que a própria vida e os seus atos os “acusam” (testificam/uns zeugen); que “muitas vezes” afastou-se de Deus (as rebeldias multiplicaram-se/oft sind wir treulos gewesen) e admite que tem pecado contra Deus. O povo confessa (conhece/erkennen) os seus pecados (maldades/Frevel) e o pecado (iniquidade) de seus antepassados (v. 20).
2) O povo pede (v. 7b) por ajuda (age por amor do teu nome). E exclama, quem sabe clama, grita, já desesperadamente (v. 9b.): “Não nos abandones!”(não nos desampares/verlass uns nicht!). Manifesta (v. 19b) sua expectativa de paz e cura (wir harren auf Glück… auf eine Zeit der Heilung). Pede (v. 21) para que Deus não os despreze, mas lembre de suas promessas; que não esqueça (não anule/bricht ihn nicht!) a sua aliança e não desista deles. Poupe o povo, a cidade – Jerusalém e o Templo.
3) O povo questiona (v. 8b) a ausência de Deus. Sente-o como um estrangeiro, viajante, ou poderíamos dizer “turista” (um Deus viandante que se desvia para passar a noite/Wanderer). Questiona sua presença (v. 9a) fraca, tal qual um soldado (valente) cansado e pego de surpresa, sem “força para defender (salvar) os outros”. O povo pergunta (v. 19a) o porquê dessa “rejeição completa”. Por que os “detestar” tanto (aborrecer a alma)? Por que tamanhos “ferimentos”? (Warum hast du uns so geschlagen?) Por que não a “cura”, a cicatrização, o perdão?
4) O povo testemunha seu conhecimento de que Deus (v. 8a) é a única esperança, o único salvador (Ó Esperança de Israel e Redentor seu no tempo de angústia). Reconhece (v. 9b) a presença de Deus e sua eleição (somos chamados pelo teu nome/deine Namen tragen wir). Testifica sua fé no poder do único Deus Criador, que inclusive “pode fazer chover” e no qual eles têm posto a sua esperança (v. 22).
O que Deus fala a respeito do povo (v. 10)?
1) “Não estou satisfeito com eles” (o SENHOR não se agrada deles/hat kein Gefallen nach ihnen).
2) Eles “gostam de andar por aí” (errantes) e “não sabem se controlar” (não detêm os pés/ihre Füsse schonen sie nicht).
3) Vou “lembrar as maldades” (Verschuldung) e “castigar (punir/heimsuchen) os pecados” deles.
O que precisamos pinçar em outro contexto é o porquê de tamanha irredutibilidade, o porquê dessa insatisfação, o porquê do anúncio desse castigo. Por que, afi nal, diante de tanto reconhecimento, pedido, questionamento, clamor e testemunho, Deus não se dobra, não revê sua decisão, não “escuta o clamor do seu povo”, como é de seu feitio divino? Que “maldades” (v. 10), afi nal, são essas que, cometidas pelo povo, escapam da misericórdia divina e fazem o povo ser preparado e prevenido a viver um tempo sem terra, sem rei e sem templo? (CHARPENTIER, p. 99).
G. FOHRER (História da Religião de Israel) resume a resposta assim: Jeremias viu os pecados de seu tempo, os quais atacou na esfera política, cultual e ética. As passagens de 2.18; 2.23-25; 6.20; 5.1-13 ilustram e ratificam isso. A situação do povo é de completa alienação de Javé (6.13-14). Não faltam denúncias sociais (5.1s,26ss; 22.13ss) e de transgressão ao Decálogo (7.9). Jeremias resume com uma figura de linguagem (muito propícia em tempos de seca) em dois pecados: “Eles abandonaram a mim, a fonte de água fresca, e cavaram cisternas, cisternas rachadas que deixaram vazar a água da chuva” (2.13). Procurava-se em vão, nos becos e praças de Jerusalém, “alguém que faça o que é direito e que procure ser fiel em tudo” (5.1).
3. Meditação
Deus castiga? Não! Na reflexão sobre o texto, o que mais inquieta qualquer cristão e pregador ciente da “justificação pela graça” é entender e aceitar esse agir punidor irreversível de Deus. Na profecia de Jeremias não há mais chance para Judá. A paciência de Deus chegou ao fim para com Jerusalém. Aliam-se a isso os conhecidos ditados populares: Quebrou, pagou! / Bobeou, levou! / Aqui se faz, aqui se paga. E o mais contundente de todos: Deus não mata, mas castiga.
Por isso há que se fazer transpassar a profecia de Jeremias pela cruz e pela ação salvadora e graciosa de Deus em seu Filho unigênito, Jesus. Nesse sentido, buscando respostas àquela pergunta existencial e de fé que cada um já fez ou ouviu (“Será que Deus nos castiga quando pecamos?”), encontramos diversas compreensões.
1 – Havemos de fazer a distinção entre punição e disciplina. Para os crentes em Jesus, todos os nossos pecados (passados, presentes e futuros) já foram punidos na cruz. Como cristãos, nunca seremos punidos pelo pecado. Isso foi feito de uma vez por todas. “Portanto, agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). Por causa do sacrifício de Cristo, Deus só vê a justiça de Cristo quando olha para nós. Nosso pecado foi pregado na cruz com Jesus, e nunca seremos punidos por causa dele. Nesse sentido, a ideia que Deus castiga e dá recompensas é uma ideia corrompida.
2 – O pecado que permanece em nossas vidas, porém, às vezes requer a disciplina de Deus. Se continuarmos a agir de forma pecaminosa e não nos arrependermos e voltarmos contra o pecado, Deus traz a sua disciplina divina sobre nós. Se não o fizesse, ele não seria um Pai amoroso. Conforme Hebreus 12.7-11, assim como disciplinamos os nossos próprios filhos para o seu bem-estar, assim também o nosso Pai celestial amorosamente corrige os seus filhos para o seu bem. A disciplina, então, é o que Deus usa para tirar os seus filhos da rebelião à obediência. Através da disciplina, os nossos olhos abrem-se de forma mais clara à perspectiva de Deus em nossas vidas. Davi afirma no Salmo 32 que a disciplina leva-nos a confessar os pecados e a arrepender-nos daqueles que ainda não foram tratados. Dessa forma, a disciplina é uma limpeza, um catalisador. A disciplina apresenta-nos a oportunidade de aprender e de conformar-nos à imagem de Cristo (Rm 12.1-2).
3 – Precisamos lembrar que o pecado é constante em nossa vida enquanto estivermos na terra (Rm 3.10,23). Portanto não temos apenas que lidar com a disciplina de Deus para a nossa desobediência, mas também temos de lidar com as naturais consequências resultantes do pecado humano. Nesse caso, nossas ações egoístas, pecaminosas, agem como bumerangues que voltam e batem em nossa cabeça.
Deus convida à ética! Está explícito no profeta (Jr 14) que Deus deseja que o povo viva nos seus caminhos. Deus não se agrada quando eles se afastam da sua vontade. Não fica satisfeito quando eles andam errantes. Ele expressa tristeza e dor quando o povo desvia-se de seu querer. Seus olhos derramam lágrimas dia e noite (v. 17, cf. 13.17) quando não há um viver ético do povo.
No evangelho (Lc 18. 9-14), uma postura de contrição e humildade perante Deus por parte de um cobrador de impostos (v. 13) é colocada como atitude mais ética (e merecedora da paz com Deus – v. 14) do que a oração e o jejum arrogante de um membro dos principais grupos religiosos dos judeus, que seguiam rigorosamente a lei de Moisés e as tradições e os costumes dos antepassados (v. 11).
No trecho da carta paulina (2Tm 4.6-8,16-18), o apóstolo faz uma autoavaliação no final de seu ministério (v. 6) e conclui que na “rústica da vida” ele “fez o melhor que pode” (v. 7) e por isso aguarda “o troféu escatológico” reservado para quem, por fé, vive uma vida correta (v. 8). Nos momentos de dificuldade e abandono por todos (v. 16), percebeu a presença de Deus, que o livrou da morte e de todo mal (v. 18).
O que está em jogo na relação de Deus com seu povo não é o castigo divino sobre o pecado humano, mas o nosso desejo e busca por viver sempre e mais a sua vontade. O que está em destaque nessa tríade bíblica para a homilia neste domingo é o desejo de ver sempre seus filhos e filhas andarem no caminho da justiça, da verdade, da vontade do Pai, revelada no Filho, um dos pilares da Reforma Luterana que celebraremos nesta semana.
4. Imagens para a prédica
“A mensagem dos profetas pode chocar-nos porque muitas vezes nos apresenta Deus ameaçando castigar seu povo por causa de seus pecados. … Essa imagem de um Deus vingador nos parece insuportável.
Tomemos uma parábola. Um jovem, motociclista apaixonado, gosta de correr muito. Um belo dia acontece um acidente, e lá vêm hospital, tratamento prolongado, médicos, enfermeiras etc., e uma enfermeira que logo começa a atendê-lo com sentimentos diferentes. Depois eles se casam. É possível que um dia esse moço diga à sua esposa: “Machuquei-me muito naquele acidente, mas, no fundo, acho bom, porque do contrário, eu não te teria conhecido”. Concordamos com essa frase, mas não concordaríamos se fosse o capelão do hospital, que, ao receber o jovem, dissesse: “Foi bom para você…” Por quê? Porque no primeiro caso foi o próprio interessado que falou, por si mesmo, do seu interior e depois do fato, dando um sentido a seu acidente; as suas palavras não lhe foram impostas de fora. Além disso, para ele, o acidente continua sendo um mal; o que ele considera bom é o efeito que se seguiu ao mal.
Transformemos a história para aproximá-la dos textos proféticos. Suponhamos que, antes do acidente, aquele jovem levasse uma vida dissoluta e egoísta. O sofrimento e a longa convalescença o teriam levado a refletir sobre o vazio de sua vida; ao sair do hospital, ele seria outro, decidido a mudar de vida e pôr-se a serviço dos outros. E até poderia acontecer que, tendo recobrado a fé, ele chegasse a dizer a Deus: Foi bom que permitiste aquele acidente; por causa dele acabei encontrando um sentido para a minha vida. Concordamos com essa oração, mas não aprovaríamos se o capelão dissesse: Está vendo! Deus o castigou…
Os profetas são esse moço e não o capelão. … Eles refletiam sobre os acontecimentos, que, para eles, eram um mal. Esses acontecimentos eram para eles – mesmo quando os exprimiam com palavras fortes – menos punições de Deus do que ocasiões de descobrir o amor de Deus, que os convidava a começar uma vida nova” (CHARPENTIER, p. 97).
5. Subsídios litúrgicos
Proponho a inclusão do Salmo 32 na liturgia do culto. Escolha a tradução que melhor se encaixa na sua percepção e monte um responsório significativo e que contribua com o “todo temático” do culto.
Uma Confissão de pecados, usando a figura de um carro sem catalisador, com certeza marcará e ilustrará o que o pecado faz em nossas vidas, na vida do próximo e em prejuízo ao mundo de Deus.
Um Kyrie, fazendo uso da figura do bumerangue, mostrará o que o pecado da sociedade como um todo provoca na vida humana, seja em âmbito pessoal, social ou ambiental: ele se volta contra nós.
Recomendo o uso da meditação de Martim Lutero a partir do Salmo 32 sob o título “Os incompreensíveis caminhos de Deus”.
Bibliografia
CHARPENTIER, Etienne. Para ler o Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1986.
SCHMIDT, Werner. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1994.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).