Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Jeremias 23.(16-22) 23-29
Leituras: Lucas 12.49-56 e Hebreus 11.29-12.2
Autor: Manfredo Siegle
Data Litúrgica: 13º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 18/08/2013
1. Introdução
A comunidade reunida em culto neste 13º Domingo após Pentecostes situa-se num tempo distante das grandes festas do ano litúrgico. A título de lembrança, o domingo que antecedeu este domingo é conhecido, em nosso país, como dia dos pais. Embora um domingo comum, o texto chama atenção pela mensagem forte e desafiadora anunciada pelo profeta Jeremias. Nascido perto de Jerusalém, seu ministério profético vai de 626 a 586 a.C. O pressuposto é que também neste domingo a palavra de Deus seja anunciada por pessoas retamente vocacionadas e dignas de todo crédito. Importa que a Palavra seja testemunhada por ministros e ministras focadas no anúncio da vontade de Deus (profetas verdadeiros); que não seja um palavreado medíocre, próximo a sonhos pessoais ou manifestação de ideias ou de ideais contraditórios e estranhos ao evangelho de Jesus Cristo (falsas profecias). Grande é, na paisagem religiosa brasileira, o número de falsos profetas que atraem as massas por meio da prática do curandeirismo e de falsas promessas. O desafio colocado às pessoas cristãs são o testemunho e a vivência da vontade do Deus da graça e da liberdade; o que dele se distancia leva ao anúncio medíocre e não convincente.
2. Exegese
Dispomos, em vários volumes anteriores do Proclamar Libertação, de considerações exegéticas de boa qualidade e de profundidade adequada. Vale destacar alguns textos contendo análises exegéticas relevantes, por exemplo em PL 2, p. 144ss, de autoria do P. Dr. Klaus van der Grijp; em PL 13 , p. 209ss, de autoria da Pa. Edna M. Ramminger e do P. Oto H. Ramminger. Sublinho, tão somente, que o texto faz parte de uma coletânea de perícopes em que o profeta Jeremias denuncia a irresponsabilidade social, religiosa e política dos líderes israelitas (cap. 1-25). Zedequias era rei de Judá (597-587 a.C.). O profeta previne, insiste, admoesta e ameaça, em nome de Deus, um povo alienado e irresponsável. Ele tem em vista a preservação da integridade da fé; por isso prega com força a volta do espírito do Êxodo e a fidelidade à Aliança estabelecida por Deus/Javé com os israelitas (capítulos 21-24) no evento do Sinai. Denuncia os representantes infiéis das instituições, questiona o culto como farsa quando a vivência do cotidiano não corresponde à prática da religiosidade exigida. O profeta opõe-se vigorosamente ao estabelecimento da aliança política de Israel com o Egito contra a Babilônia, na época um poder emergente. Quando o tempo estiver maduro, haverá uma nova aliança do povo com Deus/Javé; surgirá uma nova comunidade fiel ao Deus/Javé (31.31-34). Nesse particular, Jeremias torna-se profeta da esperança.
Enquanto homem de Deus indignado e decepcionado, Jeremias desenvolve sua mensagem mediante referenciais de peso: identifica a autoridade da palavra de Deus, descobre a liberdade para Deus agir de perto, como de longe. Deus sempre é diferente da nossa maneira de identificá-lo. Ele sempre vem de longe, “do alto”; ele é diferente. O biblista Gerhard von Rad, em “Teologia do Antigo Testamento”, tem toda a razão quando afirma que a luta do profeta Jeremias contra seus colegas, que ele denuncia como falsos profetas, foi uma de suas tarefas mais difíceis. É constante a sua procura por critérios, referenciais verdadeiros, capazes de discernir a verdadeira da falsa profecia.
3. Meditação
3.1 – A conversa na BR-101
Encontro-me no automóvel em viagem na BR-101, em Santa Catarina. Na ocasião, o meu interesse está voltado a um dos textos mais marcantes do livro do profeta Jeremias. Seguindo de carona, acompanha-me na viagem uma líder comunitária. Acabara de participar de um curso de capacitação. Para facilitar o
diálogo, entrego à companheira de viagem uma Bíblia. Informo sobre o texto em foco. Indico a passagem do profeta (Jr 23.16 a 29) à leitura e à apreciação. Um tanto perplexa, a parceira, na rodovia lotada de veículos, observou: “O que vão pensar as pessoas vendo-me, assim, de Bíblia aberta?” Respondi prontamente: “Eu também não sei!” Em seguida, abriu a Bíblia e começou a folhar até localizar o livro de Jeremias. Achado o trecho bíblico, ela priorizou a leitura silenciosa. Concluído o exercício, a carona perguntou: “Sim, e agora?” Retruquei: “O que você acha?” Respondeu: “Pensando bem, não vejo nenhuma novidade extraordinária”; e foi logo complementando: “De longa data, quando se tratava de definir a qualidade de pessoas públicas, suas falas e atitudes, descobriram-se falsos profetas e os profetas verdadeiros”. Em seguida, indagou: “Será que isso vai mudar algum dia?” Disse ainda: “Certamente não faltarão pessoas cheias de si e que se acham no direito de somar no seleto grupo de homens de Deus que se identificam com os profetas autênticos”. Depois de um breve silêncio, voltei-me à companheira de viagem: “Que tal? Será possível distinguir os falsos dos verdadeiros profetas?” A interlocutora sorriu. “Você sabe, essa também é a minha dúvida. Aliás, é complicado distinguir o falso do verdadeiro profeta”. Reagi complementando: “Não deixa de ser um problema de difícil equação”. Continuei: “Verdade é que existem impressões enganosas e impressões confundem. Às vezes, parece que estamos lidando com falsos profetas, mas, depois de algum tempo de conhecer melhor a pessoa, mudamos de opinião. Existem outras oportunidades, nas quais pensamos tratar-se de gente séria, profetas verdadeiros, mas, com o passar do tempo, descobre-se que suas profecias são enganosas”.
Seguimos viagem, e a conversa foi evoluindo. Lembrei, então, da avaliação feita por Jeremias. Ele desmascara o falso profeta dizendo: “Quem só faz projeções humanas, sem o aval de Deus e sem corresponder à sua vontade, aquele que quer satisfazer somente as expectativas dos ouvintes, adaptando-se à realidade, demonstra ser um falso profeta”. Acrescentei: “São muitas as oportunidades vividas pelo profeta Jeremias, esse homem chamado por Deus, repleto de altos e baixos, lamentando as atitudes irresponsáveis de seu povo; silenciar era impossível, as farsas careciam de denúncia, porque o povo de Israel, vivendo dopado, é levado facilmente à falsa segurança”. A companheira de viagem retomou o texto, releu outras partes e disse: “Eu simpatizo com a linguagem figurativa do profeta. Dá para compreender melhor quando anuncia: ‘A minha mensagem é como fogo, é semelhante à marreta que quebra grandes pedras’ (v. 29)”. Complementei dizendo: “Jesus, em outro tempo, aplica uma linguagem semelhante: Lucas 12.49ss. A mensagem é forte, não é fácil viver com as sobras do fogo, tudo é destruído e o que permanece são as cinzas. A vida individual ou a vida em grupo, em comunidade, a convivência social despedaçada como se fosse lascada por martelo, traz sofrimento, causa dor, além de gerar vida angustiante”.
“Você sabe” – continuei –, “às vezes, os efeitos de palavras fortes, desafiadoras chegam a causar fissuras; acontece, simultaneamente, que efeitos aparentemente negativos, fissuras e lascas também servem à edificação e à transformação. Há situações em que da crise nascem brotos de esperança, de conversão e vida nova. E esperança é como alimento, é porta aberta que indica um novo horizonte”.
A viagem na BR-101 estava quase chegando ao fim. Antes de sair da rodovia, observei: “Eu preciso reforçar um aspecto do texto. Jeremias, esse profeta tão humano e autêntico chamado por Deus (1.4-10), denuncia vigorosamente os pregadores dispostos a nivelar tudo, líderes que, em público, se acostumaram a passar massa e tinta, sem se preocupar com as causas negativas, com as raízes dos males. Penso que a luta contra os falsos profetas continua sendo uma tarefa bem atual e difícil”. Perguntei adiante: “Quem é o dono da verdade hoje no mercado livre de ideias? Fazer a experiência da proximidade de Deus ou viver à distância dele permanece um problema de difícil equação. O Deus da família cristã não vem para confirmar as nossas esperanças e os nossos ideais. O juízo de Deus faz parte do evangelho”. Foi na cruz de Gólgota que se manifestou a ira de Deus e, simultaneamente, se evidenciou o seu grande amor. Acentuei: “No mundo religioso brasileiro, a fé está sendo mercantilizada e as pessoas consomem o que acham necessário às suas necessidades momentâneas. A palavra de Deus, no entanto, não serve ao consumo, tampouco é produto de sonhos ou objeto a serviço da domesticação de Deus ao gosto humano. Muitas são as lideranças sociais, religiosas e políticas em nosso país que se encontram mergulhadas no mar da sujeira e no lamaçal da corrupção e da falsidade”. Nesse contexto, olhando para a missão de quem exerce o ministério da Palavra na IECLB, é necessário que se tenha clareza sobre o nosso papel na sociedade e o que de nós se espera na vida comunitária. Nós, ministros e ministras, líderes comunitários, não somos o profeta Jeremias. Não é responsável projetarmos falsas pretensões proféticas para o desempenho de nossa missão. Ninguém pode se arrogar o direito de assumir exclusivamente o papel de “profeta verdadeiro”. Graças a Deus! Ele se revela e vem a nós “de longe”, sob forma estranha.
Terminei a reflexão, partilhando ainda o seguinte: O Cristo da Cruz e da Páscoa desmascara a falsa pregação e as esperanças que nada são! Também a nossa! A palavra de Deus não se dilui em sentimentos humanos para satisfazer “sonhos e emoções do coração”. O profeta Jeremias está consciente de sua vocação por Deus. A Palavra (Deus dixit) tem autoridade e poder. O evangelho constitui comunidade e edifica a igreja. “Quando Deus fala, tudo em nós se cale!” (HPD I, nº 124). A palavra de Deus demonstra clareza, é luz que orienta. A falsa profecia é enganosa, confunde, é como a névoa. O homem de Deus, Jeremias, identifica os falsos profetas como “sopro, vapor, ilusão, sendo nada” (no hebraico: hébél). Jeremias denuncia as perigosas ilusões, “pois, dopado por falsas seguranças, o povo caminha alegremente para o abismo”. Na paisagem da religiosidade brasileira, as múltiplas ofertas de sucesso, prosperidade, curas, bem-estar, riqueza não deixam por menos: enganam, confundem os incautos, são como a névoa.
Em seguida, deixamos a BR-101. A companheira de viagem agradeceu a conversa e me devolveu a Bíblia. Por fi m, perguntou: “Como o senhor consegue conviver com esse Deus? Às vezes, Ele parece tão perto, outras vezes tão distante”. Respondi com palavras do profeta Jeremias: “Vocês vão me procurar e me achar, pois vão me procurar com todo o vosso coração” (Jr. 29.13). Deus busca o ser humano perdido.
3.2 – A palavra verdadeira
O que caracteriza a Palavra Viva e Verdadeira? É Jesus Cristo, Verbum Dei = a palavra de Deus encarnada! Jesus Cristo é o referencial. Ele é palavra de Deus verdadeira, é evangelho (boa notícia). É Deus que merece confiança, a quem seguimos, ele é fonte de esperança e de vida nova! Na qualidade de igreja de Jesus Cristo, não há por que se alimentar de ilusões enganosas, profecias falsas, confusas. Por que se deixar envolver pela neblina que confunde, por que buscar sentido de vida no nada, nas aparências? Nos dias de hoje, há tantos profetas e profetisas que vendem caro as suas palavras, mas não falam a verdade. Em Jesus Cristo chegou “de longe” o verdadeiro profeta de Deus. O profeta Jeremias admoesta a desconfiar da enxurrada de mensagens positivas, um sonho de consumo, marcados falsos profetas. A partir de Jesus Cristo, a palavra da Verdade encarnada, enxergamos a identidade de Deus, que é digna de crédito e de confiança.
Desconfiado da perseverança de seus discípulos, Jesus perguntou: “Será que vocês também querem ir embora?” Simão Pedro respondeu: “Quem é que nós vamos seguir? O senhor tem palavras da vida eterna! E nós cremos que o senhor é o Santo que Deus enviou” (Jo 6. 67b a 69).
4. Recado para a prédica
Os passos rumo à prédica poderão observar o roteiro do diálogo, suas ênfases, assim como aconteceu durante a conversa na BR-101. O roteiro da conversa poderá servir de fio vermelho. Quando adequado e contextualizado, o roteiro proposto poderá resultar em pregação interessante e atual. Fica evidente a costura efetuada entre o texto principal, Jeremias 23, e os textos previstos para as leituras, ambos do Novo Testamento.
5. Subsídios litúrgicos
Prelúdio:
Deus está presente, todos o adoremos, com respeito nos prostremos! Deus está conosco, tudo em nós se cale, Deus a nossas almas fale! Quem o ouvir ou sentir, baixe os olhos, crente! Vinde ao Pai clemente! (HPD 1, 124.1)
Lema:
Quem ouve vocês está me ouvindo; quem rejeita vocês está me rejeitando, e quem me rejeita está rejeitando aquele que me enviou (Lc 10.16).
Confissão de pecados:
Ó Deus, quanta autossatisfação se faz presente em nosso dia a dia! Ouvimos o que gostamos de ouvir; enxergamos aquilo que queremos enxergar; falamos o que nossos ouvidos gostam de ouvir e o que não nos causa transtornos. Confessamos, ó Deus, que nossa autossatisfação não é o bastante. Carecemos
de palavras verdadeiras que nos exortam, corrigem, consolam; necessitamos de palavras que vêm “de fora”, as quais nós mesmos não podemos dizer. Ajuda-nos, ó Deus, a nos libertar de aparências enganosas. Junto de ti, ó Deus, descobrimos a fonte que nos recarrega com novas forças, com um novo olhar e vida nova. Perdoa-nos quando vivemos a ilusão de construir vida sem a tua orientação e bênção!
Anúncio da graça:
Ó Deus, tu tens a última palavra sobre as nossas vidas – a tua palavra é de paz, mensagem de reconciliação, é oferta por causa de Jesus Cristo. No dia de hoje, a tua boa notícia está sendo, de novo, proclamada; por isso te agradecemos, te louvamos e cantamos alegres: Glória… glória…
Oração do dia:
Ó Deus, embora vindo “de longe”, do “alto”, vens ao nosso encontro na pessoa de Jesus Cristo. Ele é Palavra Verdadeira, Palavra da Vida para revelar a tua vontade. Concede à tua comunidade a presença do teu santo e bom Espírito; é assim que somos animados a viver vida nova e verdadeira. Em nome de Jesus Cristo. Amém.
Intercessões:
Ó Deus da Verdade, Tu nos presenteaste, no dia de hoje, com a boa notícia, mensagem consistente e verdadeira. Concede, ó Deus, que a tua Palavra venha a nós de forma clara e convincente. Chama e capacita pessoas, ministros e ministras, líderes para que semeiem credibilidade. Intercedemos pelas pessoas que vivem a ilusão dos sonhos do coração, pessoas dopadas por falsa segurança e esperanças ilusórias. Orienta e revela, através da vida exemplar de Jesus Cristo, o quanto tu és o caminho, a verdade e a vida. Rogamos pelas pessoas que são enganadas tanto no mundo religioso como na realidade social e política. Mostra o bom e verdadeiro caminho a quem vive desorientado, desesperado, entristecido. Intercedemos por nossas comunidades, pelos sínodos e por toda a tua igreja; recebemos o dom da vida e a qualificação para uma boa convivência. Dá-nos clareza para que possamos discernir as palavras, as promessas e as atitudes. Que tenhamos a sabedoria para resistir diante das falsas promessas, do curandeirismo e do consumo motivado por sonhos e que nascem das vontades próprias. Ó Deus, vem a nós e permanece com o teu bom Espírito entre nós. Em nome de Jesus Cristo, irmão, profeta e salvador. Amém.
Bibliografia
GRIJP, Klaus van der. Meditação sobre Jeremias 23.16-2. In: Proclamar Libertação 4. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1977.
SCHUPP, Dieter. Meditação sobre Jeremias 23.16-29. In: Gottesdienst-Praxis. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 2000.
JUST-DEUS, Tilman. Werkstatt für Predigt und Liturgie, caderno 4. Bergmoser- Höller Verlag, 2006.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).