Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: João 1.1-14
Leituras: Isaías 62.6-12 e Tito 3.4-7
Autor: Osmar Luiz Witt
Data Litúrgica: Natal de Nosso Senhor
Data da Pregação: 25/12/2012
1. Introdução
O Evangelho de João começa apresentando Jesus Cristo como a Palavra (o Verbo), cuja existência antecede a criação do mundo e que desde sempre estava com Deus e que é Deus. A festa do Natal celebra a encarnação dessa Palavra. Aliás, celebra um milagre que anuncia a vontade salvadora de um Deus que é amor e que, por amor, entra na história humana para ficar próximo de suas criaturas. O evangelista João tem um jeito próprio de falar a respeito do conteúdo dessa festa cristã. Ele não descreve o nascimento nem apresenta a criança na manjedoura, imagem que está sempre associada ao nascimento de Jesus, mas se detém naquilo que é central para a fé: em Jesus, Deus vem ao nosso encontro. Acolher essa dádiva é caminho de vida e salvação.
O nascimento de Jesus, a encarnação da Palavra, dá cumprimento ao anúncio dos profetas. João Batista atualizou para o seus dias o anúncio de Isaías: “Preparai o caminho”. Ele preparou o caminho para aquele que veio, aquele que é a luz que vence a escuridão humana. O anúncio da encarnação da Palavra não encontrou acolhida em toda a parte; também houve resistência e indiferença a ele. Somente a fé percebe que algo decisivo é apresentado através desse anúncio: a encarnação da Palavra resulta da misericórdia e do amor de Deus. Esse amor divino nos envolve e nos introduz no ambiente em que “fomos lavados por sua misericórdia”, fazendo-nos nascer de novo para ser filhos e filhas de Deus. Somos “herdeiras e herdeiros da esperança e da vida eterna por graça”.
A comunidade que celebra o Natal de Jesus Cristo é testemunha de um acontecimento extraordinário: “A Palavra tornou-se um ser humano e morou entre nós, cheia de amor e de verdade”.
2. Exegese
V. 1 – O primeiro versículo do prólogo de João apresenta-nos três termos importantes para a perícope por seu conteúdo teológico. No princípio é uma expressão que faz referência ao relato da criação no livro de Gênesis, o qual “começa justamente com essas palavras (em hebraico bereshît, traduzido pela Septuaginta com en arche, expressão retomada por João). Essa evocação verbal traz consigo todo um contexto de conceitos e motivos teológicos. De fato, os versículos que seguem retomam temas característicos da primeira página da Bíblia, como a “mediação” da palavra criadora e a “separação” entre luz e trevas, referindo-os a Cristo. Dessa forma, a obra de Deus, que criou o mundo com sua Palavra, encontra-se relacionada com a obra definitiva do mesmo Deus que inaugura a história da salvação através da Palavra encarnada” (Alviero NICCACCI e Oscar BATTAGLIA, p. 34-35).
O segundo termo destacado é Logos, a Palavra que era/existia em Deus antes da criação do mundo. O Antigo Testamento também conhece a Sabedoria de Deus, que estava com Deus na criação (Pv 8.22-31). “Jesus é chamado ‘a Palavra’, isto é, a força criadora que a tudo dá vida. De fato, de acordo com Gn 1, à medida que Deus fala, as coisas vão acontecendo. Por exemplo: Deus diz: ‘Que exista a luz’ (Gn 1.3), e a luz começou a existir. A Palavra de Deus é, portanto, comunicadora de vida. Jesus é essa Palavra capaz de comunicar vida, pois ele próprio possui a vida em plenitude e a transmite à humanidade” (BORTOLINI, p. 19).
O terceiro termo é o verbo ser. “No texto grego faz-se distinção clara entre einai, ‘ser’, que compete só a Deus, e genesthai, ‘tornar-se’, que é a categoria das criaturas (v. 3). Nesse versículo, era é empregado por três vezes, mas com matizes diversos: de existência (era o Verbo), de relação (estava junto de Deus) e de predicação (era Deus). O Verbo era evoca a fórmula ‘Eu sou’, presente especialmente nas secções 5.1-10,21 e 13.19, que contêm a grande revelação de Jesus” (NICCACCI e BATTAGLIA, p. 35).
De forma sintética e densa, João apresenta uma discussão que, no século IV, será retomada em Niceia no confronto com o ensinamento ariano. “No princípio era a Palavra” é expressão cujo conteúdo também se encontra no ensinamento do apóstolo Paulo: “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação. Pois nele foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas e nele tudo subsiste” (Cl 1.15-17).
V. 2 – Este versículo retoma e reforça o que já fora dito anteriormente. Ao insistir que a Palavra estava com Deus desde o princípio, João deixa claro que nunca houve um tempo em que ela não era.
V. 3 – A Palavra de Deus é sempre viva, dinâmica e criadora. Quando Deus pronuncia a sua Palavra, ela transforma a realidade de modo criativo. Tudo o que existe resulta do poder criador da Palavra. O relato de Gênesis 1.3,6 (veja também Sl 33.6) mostra-nos a Palavra de Deus em sua ação criadora, e o Evangelho de João apresenta essa palavra em seu agir salvífico (veja também 1Co 8.6; Cl 1.16-17 e Hb 1.2).
V. 4-5 – Os termos vida, luz e escuridão fundamentam a reflexão sobre a missão da Palavra encarnada: derrotar a escuridão que afasta os seres humanos da fonte da vida. Como podemos ver noutras passagens, João acentua que a encarnação da Palavra tem como objetivo promover a vida: “A vida estava nele, e a vida era a luz dos homens” (Jo 14.4); “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10.10); “O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas” (Jo 10.11); “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14.6); “Eu sou o pão da vida” (Jo 6.35). O Evangelho de João foi escrito “para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.31). Viver na escuridão é permanecer sob a esfera de influência do pecado, que ofusca nossa visão de Deus e afasta-nos dele e de seu plano de vida. Justamente a realidade do pecado na vida humana impede que seja acolhido o anúncio de que Deus se fez ser humano para estar próximo de nós. Jesus Cristo liberta o ser humano do pecado e dá luz/proximidade de Deus, que vence a escuridão/afastamento de Deus. A diferença entre a luz e a escuridão é de tal ordem, que somente aquela pode suplantar essa e jamais o inverso.
V. 6-9 – Estes versículos fazem referência à atuação de João Batista, aquele que preparou o caminho para a vinda da luz verdadeira. Ele mesmo não era a luz, mas sua missão era dar testemunho da luz. Ele não era o Cristo/Ungido, mas seu precursor. O evangelista João realiza aqui uma interessante construção literária. Enquanto os sinóticos oferecem uma retrospectiva cronológica e apresentam o ministério do Batista antes de Jesus, o Evangelho de João inicia pela encarnação/ nascimento humano da Palavra eterna e faz referência ao Batista e seu ministério, apontando para aquilo que é central na fé cristã: Deus está próximo dos seres humanos.
V. 10-12 – Assim como no v. 1 a relação entre Deus e sua Palavra é retratada de forma harmoniosa (não há contradição entre Deus e sua Palavra), nestes versículos a presença da Palavra no mundo produz distintas reações. Primeiro, diz-se que o mundo não conheceu aquele que é a Palavra, nem mesmo os seus o receberam. Depois se diz que alguns creram nele e o receberam. “Há em João uma dualidade, não entre os fiéis e o mundo como realidade cósmica, mas (1) entre ‘este mundo’ (precário) e o mundo vindouro (o âmbito de Deus no mundo); (2) entre ‘o mundo’ como parcela incrédula e os que pertencem a Jesus. O ‘mundo’ em João não é um poder cósmico, mas criatura de Deus, embora ingrata” (KONINGS, p. 21).
V. 13 – A filiação divina, concedida aos que recebem a Palavra encarnada, não é conquista humana, mas dádiva imerecida, um presente de Deus, que resulta de um nascimento espiritual (veja também Jo 3.3,5; Tg 1.18; 1Pe 1.23; 1Jo 3.1-2). Nascer de novo é ingressar na esfera de senhorio do Espírito de Deus. E o Espírito Santo é livre para agir a seu modo. Seu agir, contudo, é sempre expressão da V graça divina.
V. 14 – Este versículo sintetiza a motivação da comunidade cristã para estar reunida na festa natalina. Porque a Palavra se fez carne na criança da manjedoura, o mundo foi abraçado e desafiado para um novo projeto de Deus em favor da vida. “Jesus é, a partir desse momento e para sempre, o lugar do encontro com Deus. Deus não se esconde no além, nem se fecha num templo. Ele está presente no meio de nós numa pessoa: o ser humano Jesus” (BORTOLINI, p. 20).
Assim como, no v. 1, o evangelista acentuou a natureza divina da Palavra, agora ele acentua a sua perfeita natureza humana (veja também Rm 1.3; Gl 4.4; Fp 2.7; 1Tm 3.16; Hb 2.14; 1Jo 4.2). Deus “armou sua tenda” entre nós: “Assim, no Antigo Testamento, se fala de Deus e da Sabedoria que estabeleceu morada permanente entre os homens. O tema da presença de Deus em meio ao povo é típico do Êxodo; nesse livro se conta que os israelitas armaram uma ‘tenda’ para que Javé pudesse habitar em meio ao seu povo (Êx 25.8-9). Mas também os profetas anunciam um tempo no qual Javé armará sua tenda em Sião. As palavras de João proclamam que esse tempo chegou e que por isso o Verbo Encarnado toma o lugar da antiga tenda como local da presença de Deus entre os homens” (NICCACCI e BATTAGLIA, p. 41).
3. Meditação
A pregação sobre essa passagem do Evangelho de João pode partir de diferentes perspectivas. É quase impossível ignorar os aspectos dogmáticos que nela se oferecem. João escreveu seu evangelho para que seus leitores e leitoras creiam que Jesus é o Filho de Deus e não somente mais um profeta ou um sábio com ensinamentos relevantes para a conduta humana (o que ele também foi). Nesse Jesus, cujo nascimento a cristandade celebra, Deus mesmo assumiu a natureza humana. Pode-se reagir com fé ou com incredulidade a esse anúncio, mas não e pode ficar indiferente. “Para João, falar de Cristo (cristologia) é falar de Deus (teologia): o assunto é Deus.” Não podemos deixar de falar “de Deus em sua transcendência e em sua imanência. Ora, sem essas dimensões não se entende o Quarto Evangelho: ‘Eu não vim (falei/agi) por mim mesmo’ soa o refrão de Jesus. Ele veio, falou e agiu porque o Pai, Deus, estava nele e assim lhe ordenou” (KONINGS, p. 54).
O modo, porém, como João trata dessa questão, que também entrou para a ordem dogmática da fé cristã, é absolutamente evangélico, isto é, ele oferece uma alegre notícia para a festa natalina. Não estaríamos, pois, correspondendo plenamente ao texto se nos detivéssemos na discussão dogmática que ele pode suscitar. João, mais do que qualquer outra coisa, quer anunciar a salvação que está próxima dos seres humanos.
Sob essa perspectiva, a comunidade que celebra é, também ela, como um Batista que anuncia a vinda de alguém que é maior. “Convém que Cristo cresça e que eu diminua” é a constatação da comunidade/igreja cristã. A comunidade é portadora de uma boa notícia, a qual aponta na direção da Palavra que veio morar entre nós. Jesus é Deus conosco (Emanuel). O mundo, entendido não como esfera de oposição a Deus, mas como o lugar onde a salvação se torna concreta, ganha uma nova valorização.
O Natal parece destoar com sua mensagem de paz na terra inteiramente da realidade cotidiana. Nessa vigora muito mais a experiência do afastamento de Deus, que em linguagem bíblica significa pecado. O mundo não o recebeu, continua não havendo lugar para ele nas hospedarias, posto que a sua presença é também incômoda para quem prefere a escuridão do egoísmo à luz da solidariedade. Mas, por isso mesmo ou tanto mais, é preciso anunciar que a Palavra, pela qual tudo o que existe foi feito, veio construir sua tenda entre nós. O mundo não está irremediavelmente perdido e sem rumo, pois o Natal nos recorda que Deus mesmo veio habitar conosco. A construção do caminho em direção a Deus, o qual somos incapazes de realizar, dá lugar à construção de um caminho que vem de Deus em nossa direção. De seu esvaziamento (Fp 2) resulta que as nossas vidas recebem salvação. Ele abandona sua glória para fazer-se nosso irmão: “No Antigo Testamento, a glória de Deus se revelava e se escondia, ao mesmo tempo, numa nuvem, no fogo. Às vezes, a ‘glória de Deus’ mais assustava do que atraía. Mas agora a glória de Deus está presente no ser humano Jesus. Ele é a manifestação da glória de Deus. Não há mais espaço para mediações, pois Jesus recebe a glória diretamente do Pai e a comunica como Filho único. Se no passado a glória de Deus podia assustar o povo, agora o atrai, porque Jesus manifesta o Pai com amor fiel. Onde foi que Jesus manifestou a sua glória e a glória do Pai? cruz, dando a vida por amor. É nesse momento que ele revelará plenamente o amor fiel de Deus pela humanidade” (BORTOLINI, p. 21).
O Evangelho de João tem um foco na espiritualidade encarnada. Ele não é espiritual “no sentido ‘espiritualista’. Não apregoa um cristianismo alheio ao mundo histórico e material em que vivemos. Espiritual’, no caso do Quarto Evangelho, significa que a vida e a mensagem de Jesus são interpretadas à luz do Espírito de Deus, que nos faz descobrir sentidos sempre novos e atuais (cf. 16,13). Nesse sentido, é um evangelho aberto. (…) João não fornece receitas para o agir histórico nem regras concretas de conduta pessoal. Nada sobre a legislação social nem sobre a vida conjugal e familiar… Só o mandamento do amor fraterno. Não nos dá o peixe nem a linha de pescar, só nos mostra o rio… Não lista preceitos e receitas concretas, mas situa os conflitos imediatamente num nível mais profundo, no nível do conflito entre ‘luz e trevas’, ‘verdade e mentira’, ‘vida e morte’. À luz de Jesus, Palavra de Deus ‘na carne’, João mostra no mundo duas posições intrinsecamente incompatíveis entre as quais é preciso escolher. O resto é consequência dessa opção” (KONINGS, p. 54). O evangelho natalino é convite para acolhermos a Palavra que se tornou um ser humano e que veio construir sua tenda em nosso meio.
4. A caminho da prédica
Uma possibilidade de abordagem do texto na prédica é esta:
a) Destacar que o sentido da celebração do Natal vincula-se ao desejo divino de estar próximo de suas criaturas.
b) Natal é, pois, o caminho de Deus, que se esvazia e se doa, em direção a nós, que somos preenchidos e recebemos nova ida, imerecidamente. Disso resultam alegria e louvor a Deus.
c) Muito rapidamente esquecemos ou omitimos o valor e a importância do milagre natalino e nos deixamos vencer elas forças da escuridão, que resultam do pecado que habita em nós e nas estruturas deste mundo que não atenta para o que diz a Palavra encarnada.
d) Somos vocacionados e vocacionadas para agir como João Batista, apontando para aquele que vem e que dá sentido às esperanças e às utopias (aquilo que ainda não é), que não nos deixam sucumbir nem desanimar. O “mundo” não o reconhece, nem o recebe, mas o Natal não nos deixa esquecer que Deus se importa conosco.
5. Subsídios litúrgicos
Versículo de entrada:
“A Palavra se tornou um ser humano e morou entre nós, cheia de amor e de verdade. E nós vimos a revelação da sua natureza divina, natureza que ele recebeu como Filho único do Pai.” (1.14)
Oração do dia:
Querido Deus, que habitas em nosso meio! Graças te damos, pois o Natal nos recorda que te importas conosco e que nos ofereces nova vida. Que nesta hora de comunhão sob a tua Palavra possamos ser fortalecidos e fortalecidas em nossa fé. Permite que aprendamos de teu Filho, a criança na manjedoura, a viver em amor e em verdade. Que não fiquemos devendo o testemunho do amor que recebemos de ti. Oramos em nome de Jesus, Deus conosco, que está em ti e que contigo e com o Espírito Santo é adorado, para sempre, como a fonte do amor e de todo o bem. Amém.
Bênção:
O Senhor te conduza em segurança, como conduziu Maria e José até que encontrassem abrigo. O Senhor te preserve e te restitua a saúde, como preservou o menino Jesus, nascido sem nenhum conforto. O Senhor te presenteie com uma vida plena de sentido e alegria, pois isso é mais do que as riquezas materiais te podem dar. O Senhor te conceda a sua bênção, pois ela é o melhor presente que
podemos receber e partilhar. Segue em seus caminhos e anda na sua paz. Amém.
Bibliografia
BORTOLINI, José. Como ler o Evangelho de João – o caminho da vida. São Paulo: Paulus, 1994. (Série “Como ler a Bíblia”)
KONINGS, Johan. O Evangelho segundo João – amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005.
NICCACCI, Alviero e BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de São João. Petrópolis: Vozes, 1981.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).