Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: João 1.43-51
Leituras: Isaías 49.1-7 e 2 Coríntios 4.3-6
Autor: Norberto da Cunha Garin
Data Litúrgica: Epifania de Nosso Senhor
Data da Pregação: 06/01/2010
1. Introdução
A manifestação divina através de Jesus Cristo é descrita de maneiras diversas pelos evangelhos e epístolas. No Evangelho de João, a Epifania adquire um significado especial, pois a apresentação de Jesus é feita através dos diferentes títulos messiânicos que estavam presentes no imaginário judaico da época. A descrição desses títulos obedece a uma ordem, que se pode dizer crescente, até sua culminância com aquele título que, segundo os evangelistas, era o de maior simpatia do Senhor – Filho do Homem –, como porta de acesso a Deus.
Essa Epifania é narrada numa trama de diálogos envolvendo personagens fundamentais para a igreja nascente, como os seus apóstolos.
2. Exegese
O cenário do texto envolve o chamamento dos apóstolos. Após o batismo, Jesus encontra diversos homens, a quem convida para serem seus seguidores. O contexto desse vocacionamento é o testemunho de João Batista, que o aponta como o Cordeiro (Jo 1.29 e 36). O texto evolui até culminar com a declaração de Jesus sobre a visão dos anjos subindo e descendo sobre o Filho do Homem.
V. 43-44 – Encontro com Filipe: a ordem dada por Jesus a Filipe (o que ama os cavalos) repete a fórmula dos evangelhos sinóticos (Mt 8.22; 9.9; 19.21; Lc 5.27; 9.59; 18.22); implica o sentido de “tornar-se discípulo”: seguir sua pregação e seu modo de vida; essa fórmula será repetida pelo próprio João em 21.19 e 22; a informação que o texto nos passa é que Filipe é conterrâneo de André e de Pedro, da cidade de Betsaida (casa da caça), fundada no séc. X a.C. e localizada ao norte do mar da Galileia. Tratava-se de uma aldeia de pescadores, sobre um pequeno monte de cerca de 30m de altura em um vale fértil que outrora teria sido parte do próprio mar; Filipe é o discípulo a quem Jesus interroga sobre onde se poderiam comprar pães no deserto (Jo 6.5); nota-se a caminhada teológica na percepção que João atribui aos discípulos: “Cordeiro de Deus” (1.35); depois “Mestre” (1.38); passando para “Messias” (1.41); avança para “Profeta” (também com sentido de Messias) (1.45), até chegar ao reconhecimento de Rei de Israel (v. 49) e Filho do Homem (1.51).
V. 45-46 – Encontro com Natanael: os encontros se sucedem; aqui a fórmula do convite para ser discípulo repete a mesma da perícope anterior (36-42), quando André, que havia sido chamado por Jesus, encontra Simão e o leva ao Senhor; o próprio Filipe, recém tornado seguidor, anuncia Jesus a Natanael (dom de Deus) num processo de discipulado contínuo; a maneira de Filipe apresentar Jesus a Natanael repete a fórmula da interrogação sobre o testemunhos das escrituras: “aquele de quem” (Lc 7.27; Jo 1.15; 13); esse Natanael é considerado pela tradição exegética como sendo a mesma pessoa que aparece como Bartolomeu (filho de Talmai) nos sinóticos (Mt 10.3; Mc 3.18; Lc 6.15 e em At 1.13); outro argumento para essa relação é que, nas listas dos apóstolos de Mateus e de Marcos, Filipe e Bartolomeu aparecem juntos; a tradição menciona que Natanael teria sido missionário na Índia e morrido crucificado de cabeça para baixo1; antes de aceitar o convite, Natanael propõe uma dúvida, que denota uma parcela de desprezo: “De Nazaré pode sair alguma coisa boa?”; dúvida semelhante também é levantada pelos conterrâneos de Jesus, os habitantes de Nazaré durante a visita narrada por Lc 4.22-24; na apresentação que Filipe faz está inculcada a certeza de que Jesus é o Messias prometido pelo Antigo Testamento, como se fosse um novo Moisés (Dt 18.15); essa expressão indica que possivelmente Filipe e Natanael já haviam discutido sobre esse assunto antes; a fórmula “vem e vê” é análoga àquela empregada pelos sinóticos quando se referem aos discursos de Jesus, onde aparece “quem tem ouvidos para ouvir, ouça (Mt 11.15, 13.9, 43; Mc 4.9; Lc 8.8; 14.35); representa um elemento enfático de comprovação de verdade indiscutível; é possível perceber em João a tendência de apresentar “a verdade” completa em cada episódio. Na vocação de Natanael, o autor encaixa um trocadilho com o significado popular de seu nome: aquele que vê Deus é convidado por Filipe a vir e ver. Depois é o próprio Jesus quem lhe declara ter visto antes.
V. 47-48 – A reação de Jesus: antes mesmo de conversar com Natanael, Jesus faz uma declaração importante a respeito dele: “Eis aqui um verdadeiro israelita, em quem não há dolo”; Jesus se referia ao caráter dele, declarando que ele era um homem que não praticava a falsidade, numa referência à sua integridade moral judaica de respeito à lei; há um indicativo sobre aquilo que o apóstolo Paulo classifica como o verdadeiro israelita: a circuncisão do coração (Rm 2.25-29); há um jogo de palavras entre a significação popular do nome Natanael2 e a visão que Jesus tem dele sob a figueira; esse jogo de palavras junta a visão e o conhecimento; Natanael demonstra surpresa por Jesus declarar que já o conhecia; o tema do conhecimento é comum nos evangelhos (Mt 13.11; 17.12; Lc 24.31), mas é no Evangelho de João que esse tema tem maior relevância (Jo 4.10; 8.19 entre outros); parece que “debaixo da figueira” identificava um local tranquilo utilizado pelos israelitas, especialmente os rabinos, para meditação; Natanael fora visto nesse lugar, provavelmente exercitando a sua meditação.
V. 49-51 – Confissões teológicas: nesses três versículos finais é possível encontrar as declarações teológicas fundamentais sobre a identidade de Jesus: Filho de Deus, Rei de Israel e Filho do Homem; Filho de Deus não se refere à filiação natural, mas é um título messiânico, também atribuído a outros personagens bíblicos, como até mesmo a todo o Israel (Êx 4.22); todos os títulos atribuí- dos a Jesus estão no contexto joanino de reconhecer nele o próprio Deus; é possível traçar um paralelo com o personagem Israel (ou Jacó) do Antigo Testamento, que viu a face de Deus na visão do sonho (Gn 28.10-17) e a declaração do próprio Israel sobre Peniel: “vi a Deus face a face” (Gn 32.30). Natanael representa a visão do novo Israel, que vê o Filho do Homem como o “céu aberto e o os anjos de Deus subindo e descendo”; o chamado dele aponta para o novo acesso a Deus: assim como aconteceu lá no Antigo Testamento, o acesso a Deus é face a face, na face de Jesus; esse parece ser o único título que Jesus aceita e se atribui no decorrer das narrativas evangélicas (Mt 8.20; 11.19; 20.28; 24.30; 25.31); originalmente, esse título tinha o conteúdo de distanciamento entre Deus e o ser humano e referia-se ao profeta que deveria falar ao povo (Ez 2.1); em Dn 7.13 assume a conotação messiânica, sentido utilizado por João e em outras narrativas evangélicas; por outro lado, esse título já aparecia no Sl 80.17.
Essa perícope encerra aquilo que podemos denominar de introdução ao Evangelho de João. Constituída de um conjunto de testemunhos a respeito de Jesus, encerra com uma declaração teológica sobre a sua identidade como Filho do Homem (bar Adam) enquanto meio de ligação entre Deus e o ser humano. Parece que a intenção do autor joanino é listar na introdução de sua narrativa os títulos messiânicos aos quais a igreja primitiva estava acostumada. Outra percepção significativa é que o título Rei de Israel, utilizado pelos sinóticos como sarcasmo (Mt 27.42; Mc 15.32), nos escritos joaninos aparece como legítimo título messiânico, reaparecendo na entrada triunfal em Jerusalém na boca da multidão (Jo 12.13).
3. Meditação
Este segundo domingo da Epifania nos reserva a reflexão sobre a apresentação de Jesus conforme a narrativa joanina. Ela é singular, visto que retoma os títulos messiânicos do judaísmo, que aparecem numa trama de apresentações/ chamamentos. O encontro com Filipe possui apenas o caráter de meio para chegar a Natanael, o personagem importante para a Epifania de Jesus como Messias, Filho de Deus, Rei de Israel e Filho do Homem.
Jesus é a resposta que os israelitas aguardavam para resgatá-los da miséria em que viviam, pois agora estavam face a face com Deus. Assim como aconteceu com Israel (Jacó) em Gn 28.13, quando Deus se posta junto dele e se revela seu Senhor e como Deus dos seus pais, Jesus é revelado ao novo Israel (Natanael) como o Messias, Filho de Deus, Rei de Israel e Filho do Homem. Constituem os principais atributos messiânicos que apareciam no imaginário do povo. Numa pessoa única se concentravam todas as respostas aguardadas por gerações.
No reconhecimento de Natanael (Israel) está o projeto messiânico de Jesus: ele era a face de Deus revelada a um povo que, mesmo vivendo no meio da perversidade das lideranças, tanto do próprio Israel como dos romanos, havia se mantido puro, sem dolo. Jesus era Deus manifestando-se aos justos, aqueles que ainda mantinham a fé e a esperança no antigo e bom Javé, que havia conduzido seus pais através do deserto ao encontro de uma terra prometida.
4. Imagens para a prédica
Monte um quebra-cabeça com grandes peças de papelão3 , cuja montagem resulte na figura da cruz. Deixe-as diante do púlpito desarrumadas, mas reserve uma peça fundamental. Durante a prédica, peça a um grupo da comunidade para montá-lo enquanto a pregação se desenvolve, ou numa pausa entre a leitura bíblica e a prédica. Depois de algumas tentativas, o grupo descobre que se trata de uma cruz, mas que ainda não consegue completá-la: falta uma peça fundamental. No momento em que o grupo descobre que está faltando uma peça, a pessoa que a tem consigo se apresenta e sobre a peça escreve Jesus ou algum dos títulos messiânicos: Ele é a peça que faltava para completar nossa remissão.
5. Subsídios litúrgicos
Litania:
D: Deus é Espírito, Luz, Poder e Amor.
Deus é Espírito.
T: Aqueles que o adoram, o adoram em Espírito e em verdade. D: Deus é Luz.
T: Se andarmos na luz como ele está na luz, temos comunhão uns com os outros, e verdadeiramente nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo.
D: Deus é Poder.
T: Aqueles que esperam no Senhor renovarão as suas forças; subirão com asas como águias; correrão e não se fatigarão.
D: Deus é amor.
T: De tal modo o Pai nos tem agraciado com o seu amor, que somos chama- dos filhos e filhas de Deus. Conhecemos o amor de Deus porque ele deu sua vida por nós. Amém.
Oração comunitária:
Ó Deus de Amor, assim como tu és Um com o Filho e o Espírito Santo, concede-nos que também sejamos um em ti. Em tua palavra temos aprendido que, quando acolhemos nossos irmãos e irmãs, é a ti mesmo que acolhemos. Por isso ajuda-nos, Senhor, a compreender que não há comunhão verdadeira quando existe mútua rejeição. Ó Deus, aceitando-nos uns aos outros, de todo o coração, nós reconhecemos que habitas em nós e manifestamos o nosso amor para contigo. Derrama, pois, pelo teu Espírito, a chama viva do amor entre nós. Que sejamos sinais da tua graça redentora e testemunhas da fraternidade que vence o ódio e o preconceito. O amor venceu, o amor é sempre vitorioso! Bendito sejas, ó Deus Eterno, Senhor nosso. Amém.
Notas:
1 Condenação comum na tradição sobre os apóstolos.
2 Na etimologia popular significa “homem que vê Deus”.
3 Como construir um quebra-cabeça: tome uma embalagem grande de papelão (ou cartolina grande) e pinte-a, com tinta guache, listas ou ondas coloridas. No outro lado, desenhe uma cruz grande e dentro dessa desenhe as peças do quebra-cabeça. Depois, recorte-as e coloque-as empilhadas numa caixa para levá-las ao culto.
Bibliografia
BROWN, Raymond. Evangelho de João. São Paulo: Paulinas, 1975.
DODD, C. H. A interpretação do quarto evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977. LA CALLE, Francisco de. A teologia do quarto evangelho. São Paulo: Paulinas, 1978.
RIENECKER, Fritz; ROGER, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Vida Nova, 2000.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).