Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: João 1.43-51
Leituras: 1 Samuel 3.1-10 (11-20) e 1 Coríntios 6.12-20
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: 2º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 15/01/2012
1. Introdução
A igreja cristã celebra a “epifania” de Deus em Jesus Cristo. Apregoa que, em sua pessoa, Deus mesmo se encarnou. Portanto quem quiser conhecer Deus deve contemplar Jesus. Esse credo jamais tem sido uma evidência. Também hoje se defronta com incompreensão, desconfiança, oposição. Isso não só da parte do islamismo, que o denuncia como incompatível com o monoteísmo e enxerga nele uma blasfêmia, como também da parte de outras religiões e até mesmo da secularidade ocidental. Que Jesus seja portador de revelação divina é considerado escandaloso. É o que já sustentava o gnosticismo da antiguidade. Rejeitava a ideia de o salvador “ter vindo na carne” (1Jo 4.2s). O divino não poderia revestir-se do humano. É uma tese que, em muitas variantes, goza de simpatias até hoje. Jesus de Nazaré teria sido um simples ser humano, notável sim, mas nada mais.
O texto previsto para a pregação neste domingo diz outra coisa. Fala de Jesus como quem veio da parte de Deus. Insere-se num “evangelho epifânico” por excelência. De acordo com o testemunho do evangelista João, Jesus revela sua glória a cada passo e a cada gesto até sua morte na cruz. Perguntamos: Como fundamentar tal discurso hoje e qual a sua relevância? Vamos auscultar o texto e refleti-lo à luz de nossas perguntas. Considerando que ele já foi trabalhado cinco vezes nesta série de Auxílios Homiléticos, será breve nossa exegese. Remetemos às demais contribuições e concentraremos a atenção na parte meditativa.
2. O texto
O trecho de João 1.43-51 faz parte do bloco maior que compreende também os v. 35-42. Ele tem por conteúdo a vocação dos primeiros discípulos. Trata-se de André e de seu irmão Simão, mais tarde cognominado Cefas/Pedro, bem como de mais outro, cujo nome não é mencionado. A partir do v. 43, segue o relato da vocação de Filipe e de Natanael. Enquanto Filipe passa a integrar o grupo dos doze (Mc 3.18), Natanael permanece no anonimato. Somente em João 21.2, há mais outra referência a ele. Mesmo assim, parece ter pertencido ao círculo achegado a Jesus, que se compunha parcialmente de ex-seguidores de João Batista (v. 37). Nasce assim o primeiro núcleo dos que descobrem em Jesus o cumprimento das promessas de salvação dadas por Deus por meio dos profetas.
Chama atenção, nesse trecho, o acúmulo de títulos cristológicos. João Batista qualifica Jesus como sendo o Cordeiro de Deus (v. 36). André diz ter identificado nele o Messias, ou seja, o Cristo (v. 41). Natanael, por sua vez, ao ter encontrado Jesus, exclama: “Tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel” (v. 49), sendo que o ápice da titulação cristológica se encontra no v. 51, onde Jesus mesmo assevera que seus discípulos verão o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem. A imagem reporta-se à escada que o patriarca Jacó viu em sonho e aos anjos que nela subiam e desciam (Gn 28.12). O Filho do Homem, pois, conecta o céu e a terra, fenômeno esse que na pessoa de Jesus se concretiza. Ele traz o céu à terra e, por sua vez, leva as pessoas a Deus.
A concentração dos títulos, entre os quais, aliás, falta o termo kyrios (4.11; 6.34; 20.28 etc.), resume a essência do testemunho da comunidade cristã com respeito a seu Senhor. Ela exibe algo como uma primeira dogmática cristológica. Quem é Jesus de Nazaré? Ora, “aquele de quem Moisés escreveu na lei e a quem se referiram os profetas”. É essa a confissão de Filipe. E quando Natanael duvida, ele simplesmente diz: “Vem, e vê!”. Portanto, para crer importa conhecer Jesus de Nazaré, contemplar sua pessoa, ouvir sua palavra, observar seus feitos. E quem o fizer devidamente vai perceber que em Jesus se cumprem antigas promessas. Vale anotar que Filipe não se constrange em chamar Jesus de “filho de José”. A afirmação da encarnação de Deus em Jesus não necessita da tese do nascimento virginal. O “filho de Deus” pode perfeitamente ser “filho de José”, sem que isso fosse entendido como contradição. Pelo contrário, o lado a lado é sinal de “encarnação radical”. Deus veio ao mundo em alguém totalmente humano. O posterior dogma cristológico (451 d.C.), que atribui a Jesus natureza verdadeiramente humana e verdadeiramente divina, aqui se prenuncia.
No processo que dá origem à fé, a figura de Natanael desperta particular interesse. Ele não pode acreditar que de Nazaré possa sair alguma coisa boa. A Escritura não dá respaldo a tal suposição. Portanto, Jesus não pode ser o Messias esperado. Mas, no encontro com Jesus, ele deve abandonar sua resistência. Jesus atesta ser ele um autêntico israelita, sem falsidade. Com isso Natanael se surpreende. De onde Jesus o conhece? Jesus viu-o sentado debaixo de uma figueira, certamente meditando as tradições sagradas de Israel. Assim faziam muitos estudiosos na época. Mas isso não explica o conhecimento de Jesus. Natanael flagra-se como alguém “detectado”, “descoberto”, como quem sofreu um raio-x. Somente Deus conhece as pessoas de tal modo. Então, esse Deus que a todos conhece aparece em Jesus. Por isso Natanael exclama: “Tu és o Filho de Deus, o Rei de Israel”. O encontro com Deus implica o conhecimento do ser humano acerca de si mesmo. Perante Deus é impossível esconder-se. Ele traz à luz os segredos do coração, a identidade da pessoa, a natureza humana. Deus nos conhece melhor do que nós a nós mesmos. É isso o que Natanael experimenta no encontro com Jesus, que por isso só pode vir da parte de Deus – apesar de ser natural de Nazaré. Assim inicia sua jornada de fé.
O texto em pauta oferece a chave para a compreensão da atuação de Jesus, tal como o evangelista a descreve. Os milagres de Jesus, seu discurso, sua paixão e ressurreição, tudo deve ser visto a partir de sua messianidade. “Vem, e vê!” Nesses termos, a comunidade do Nazareno convida as pessoas para compartilhar a experiência e sintonizar com a confissão que diz: “E vimos a sua glória” (1.14).
3. Meditação
Na confusão religiosa característica da sociedade atual, o credo cristão necessita de reafirmação. O mero recurso à tradição será insuficiente para fundamentar a fé. A maioria dos membros das igrejas evidentemente se recruta de gente batizada e educada num lar e ambiente cristão. Sua filiação à comunidade deu-se em processo quase “automático”. Isso é nada desprezível. Tradição é fator de continuidade e estabilidade. Mas ela, por si só, é incapaz de resistir ao impacto de questionamentos. Não basta repetir a tradicional terminologia cristológica. É preciso reinterpretá-la. Ela não será assimilada enquanto não forem percebidas sua plausibilidade e relevância. Em outras palavras, a igreja deve tratar de intensificar a consciência cristã de seus membros, convertendo cristãos por tradição em cristãos por convicção. Essa já sempre era a sua tarefa. Mas ela adquiriu particular urgência hoje.
Na aprendizagem da fé em Jesus, é fundamental aquele “Vem, e vê”. Missão cristã começa com um convite. Ele pode partir do próprio Jesus, como no caso de Filipe, a quem ele diz: “Segue-me”. Mas pode vir também de terceiros, como no caso de Natanael, a quem Filipe diz: “Achamos aquele de quem Moisés escreveu na lei…” A igreja precisa de gente que não se envergonha do evangelho e motiva as pessoas a se interessar por Jesus. Da mesma forma, porém, ela não pode dispensá-las de verificar, elas mesmas, a razão de sua adesão à fé. Qual é a diferença entre ser cristão ou não? Ninguém poderá dar resposta enquanto desconhece Jesus. Missão diz: “Vem, abre os olhos e os ouvidos, presta atenção, veja o que Jesus disse e fez”. Assim o observamos nesse texto, com o qual João introduz seu evangelho.
O testemunho de Filipe leva Natanael ao encontro com Jesus. É o evento decisivo em sua vida. Com ele tudo muda. Natanael é o exemplo da pessoa que duvida. Porventura pode vir coisa boa de Nazaré? Hoje as objeções são outras. Por que justamente Jesus? Ele é apenas um “salvador” entre outros. Além disso, vejamos os cristãos. Eles não são melhores do que os outros. Cometeram horrí¬veis crimes em sua história. Então, por que abraçar a fé? Enfim, a doutrina cristã fala de muitas coisas sobrenaturais, simplesmente inacreditáveis. Elas dificultam o acesso à fé. As dúvidas são muitas. E até certo ponto é natural que assim seja. Pois Jesus de Nazaré traz novidade. Ele não se enquadra simplesmente no que estamos acostumados a enxergar. Ele rompe os padrões da normalidade, traz à tona as dimensões profundas do ser humano, faz ver a realidade em nova luz. O conhecimento obtido por Natanael no encontro com Jesus não se limita a algumas noções objetivas, biográficas, históricas. Ele é de ordem existencial. Jesus toca nas pessoas e dá-lhes outros olhos para enxergar a si mesmas, as demais pessoas e o mundo. Com isso as dúvidas caem por terra.
Então, o que descobrimos em Jesus? Qual é a nova visão com que nos brinda? Em busca de uma resposta, não podemos prender-nos ao texto, com o qual nos ocupamos. Devemos olhar para além dele, ou seja, à história de Jesus em sua integralidade, ao evangelho em seu todo. De igual modo, não podemos esgotar o tema numa única meditação. Cada um dos títulos cristológicos necessita de abordagem à parte. Limito-me à confissão de Natanael, que apregoa Jesus como “Filho de Deus”. Tentarei fazê-lo sob um duplo enfoque, a saber: a linha de pensamento do quarto evangelista, de um lado, e o contexto religioso da atualidade, de outro.
Que Jesus Cristo seja o filho unigênito de Deus passou a ser parte integrante do Credo Apostólico. Qual o sentido? Ora, o evangelista João afasta de vez a compreensão biológica. Jesus não é um ser sobrenatural, disfarçado de ser humano, com um corpo apenas aparente. Jesus veio de fato da insignificante cidade de Nazaré, onde moram seus pais. Também a história do nascimento virginal não permite ser interpretada no sentido de Jesus ter sido um semideus e um semi-homem. A cristandade jamais se conformou com a diminuição da humanidade de Jesus. Ela afirmou, isto sim, que nesse Jesus de Nazaré Deus veio visitar a terra. A fé cristã é a única religião que fala da “humanização de Deus”. Deus chega perto da criatura, ouve seus clamores, estende-lhe a mão. Ele não se recolhe em lugar inacessível nem se mostra insensível à dor. Pelo contrário, ele vem para compartilhar o sofrimento, do que a paixão de Jesus Cristo é a mais enfática demonstração. Mas, por ser filho de Deus, ele não sucumbe na cruz. Por ele e com ele a vida celebra o triunfo até mesmo sobre a morte.
A humanização de Deus implica uma nova “cosmovisão” em termos acima expostos. O mundo já não se encontra abandonado, entregue à sua própria sorte, sem sentido e sem rumo. Da mesma forma, não permite ser visto sob o regime de implacável “carma”, que paga ao ser humano conforme merece. A cristologia bíblica exclui a imagem de um deus inclemente, tirano, vingativo, sedento pelo sangue dos “incrédulos”. Reprova a conformidade com um mundo brutal, regido por violência e ganância. Jesus de Nazaré define Deus como sendo amor que acolhe a criatura culpada, que sara as suas enfermidades e que lhe dá a promessa de vida eterna. Não há salvação sem amor. Ódio, indiferentismo e desesperança produzem a ruína da humanidade. Em Jesus de Nazaré, porém, torna-se visível a imagem de um Deus que ama até mesmo seus inimigos.
Todo discurso sobre Deus é transparente para a visão que se tem da realidade. Quem somos nós e quem é Deus é assunto inseparável. Para a fé cristã, é Jesus de Nazaré quem coloca os critérios. Ele mostra um Deus misericordioso, com o que, sem dúvida alguma, vai ao encontro dos mais profundos anseios humanos.
4. Imagens para a prédica
Sugiro agrupar o conteúdo da prédica em torno de três imagens:
1 – A primeira poderia ser a figura de Natanael. Ele é convidado para crer em Jesus, mas ele duvida. E com justas razões. Pois é nada lógico que em Jesus nos deparamos com o próprio Deus. São muitas as objeções, tanto antigamente como hoje. Todo mundo as tem. Não se trata de pecado. Mas é preciso discuti-las. Jesus quer cristãos conscientes.
2 – Por isso somos animados a fazer um teste de qualidade. Poderia ser essa a segunda imagem da prédica. Ninguém compra coisas sem conhecê-las. Assim também deverá acontecer quando se trata da fé. Convém examinar as ofertas religiosas antes de se envolver com elas. Recomenda-se seguir o conselho que diz: “Vem, e vê!”. Vejamos o fundamento de nossa fé, que está em Jesus Cristo. Por que enxergamos nele o Filho, o representante, o plenipotenciário de Deus?
3 – Ora, porque esse Jesus nos toca no fundo de nossa alma. Em Jesus de Nazaré, Deus se aproxima de sua criatura e o faz com amor e bondade. Ele vem para ser solidário conosco, até mesmo na dor e no sofrimento. Em Jesus, nós descobrimos um Deus humano, diferente de tantos outros deuses que escravizam as pessoas ou que nada lhes têm a dizer. A imagem para explorar essa proximidade poderia ser a da escada de Jacó, na qual os anjos sobem e descem. Assim é Jesus: Ele traz Deus ao mundo e leva o mundo a Deus.
Resta perguntar: Se Deus não está em Jesus Cristo, onde estaria então? E que Deus seria esse? Nós cremos no Deus a quem invocamos “Pai nosso”, bem assim como Cristo o ensinou.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão dos pecados:
Senhor! Confessamos-te humildemente as nossas dívidas em relação a ti e às pessoas ao nosso lado. Por demais vezes, temos ignorado o convite que nos diriges por meio de teu Filho Jesus Cristo para viver e testemunhar o teu amor. As pessoas necessitam dessa mensagem para não afundar em apatia e desesperança. Perdoa nossa fraqueza e fortalece em nós a fé para cumprir o que esperas de nós. Perdão, Senhor, perdão!
Oração do dia:
Senhor, nós te agradecemos pelo privilégio de poder celebrar a tua epifania. Tu não ficas escondido na vastidão do espaço nem no escuro do universo. Tu vens e te dás a conhecer. Já não somos obrigados a adorar um deus desconhecido. Em Jesus Cristo enxergamos o teu rosto e identificamos a tua ação. Por ele tu falas e por ele tu salvas. Dá-nos a sabedoria para perceber o teu recado e agarrar a tua mão. Queremos ser agentes de tua missão para que a paz e a alegria reinem entre as pessoas. Amém!
Oração geral da igreja em favor:
– das vítimas de catástrofes naturais. Os efeitos dos estragos demoram a ser superados. Desperta a solidariedade que não elimina a dor, mas a ameniza;
– das vítimas de violência, seja em guerras externas, seja na criminalidade interna nas cidades e no campo. Faze crescer a inconformidade com a agressão principalmente contra a mulher, as crianças, os idosos, grupos minoritários;
– das vítimas de doença, abandono, golpes, enfim de todo tipo de sofrimento que ameaça a vida. Dá-lhes coragem para resistir e intensifica em nós o espírito diaconal empenhado na cura do mal.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).