Eu sou o verdadeiro pastor que leva à vida
Proclamar Libertação – Volume 41
Prédica: João 10.1-10
Leituras: Salmo 23 e 1 Pedro 2.19-25
Autoria: Anelise Lengler Abentroth
Data Litúrgica: 4º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 07/05/2017
1. Introdução
Chama a atenção a indicação do texto para a pregação deste domingo, já que, normalmente, incluem-se os v. 11-18, onde Jesus diz: “Eu sou o bom pastor”. Em nossa delimitação aparecem apenas “Jesus, o verdadeiro pastor” e “Jesus, a porteira (a porta do aprisco)”.
Nos evangelhos sinóticos, temos mais de quarenta parábolas, mas nenhuma delas aparece no Evangelho de João. E as duas que normalmente chamamos de parábolas são, na verdade, alegorias exclusivas do Quarto Evangelho: a do bom pastor (10.1-18) e a da videira (15.1-17).
Temos aqui um exemplo de como foi escrito esse evangelho. O longo discurso sobre o bom pastor é como tijolos que foram colocados numa parede já pronta. Ela ficou mais forte e resistente, mas cada tijolo contém seu específico.
Esse pastor verdadeiro, essa porteira do aprisco quer possibilitar o acesso ao verdadeiro pastor do povo: o próprio Deus. Assim está descrito no Salmo 23, texto de leitura complementar. Ele nos faz descansar em pastos verdes (alimento) e águas tranquilas (segurança). Ele guia seu povo pelo caminho da justiça, mesmo por sombras da morte e vales escuros. Em sua presença e companhia há vida, há dignidade, fartura, comunhão, alegria.
Jesus é a porta, é o verdadeiro e bom pastor, é o cordeiro que levou sobre si nosso pecado na cruz, para que vivêssemos uma vida em retidão e justiça. O autor remete-nos à esperança do povo de Deus contida em Isaías 53.1-6. Seus ferimentos nos sararam. De ovelhas perdidas fomos trazidos/as de volta para seguir nosso pastor. E é ele quem orienta nossas escolhas para uma vida com sentido e íntegra.
2. Exegese
Situemos a comunidade joanina em seu contexto. A partir dos anos 30 a 50 d.C., há a imposição do culto ao imperador, a “paz romana”. As comunidades cristãs da Galileia, Samaria e Judeia eram perseguidas, e as lideranças apostólicas, mortas. Dois grupos estão na origem da comunidade: judeus da Galileia, seguidores de João Batista, e judeus fiéis às tradições judaicas.
Provavelmente, após a ressurreição de Jesus, as pessoas começaram a congregar-se em comunidade ao redor do discípulo amado, uma figura-chave para elas, pois lhes transmitia seu testemunho sobre Jesus. Esse testemunho marca o início da formação do Evangelho de João (tradição oral).
Com a expansão missionária pelo Império Romano, intensificam-se as perseguições, mas a vontade de anunciar o evangelho levou os cristãos para fora da Palestina: passagem para o Ocidente, para uma cultura urbana, comunidades organizadas ao redor da casa (oikos).
Percebem-se tensões entre cristãos vindos do judaísmo e os novos vindos de outras etnias e culturas. Dois grupos integram e são acolhidos na comunidade: Jo 4.39-42: samaritanos e Jo 7. 5; 12.20-22: gentios (não judeus). Aos poucos, parte da pregação oral foi sendo colocada por escrito para uso na catequese ou na liturgia.
Dos anos 80-100 d.C. há a dominação dos imperadores Domiciano (81-96 d.C.), Nerva (96-98 d.C.) e Trajano (98-117 d.C.). Domiciano atribuiu a si mesmo títulos divinos, exigindo culto à sua pessoa. Fazia-se chamar de “Senhor” e “Deus”. As perseguições aos cristãos foram desencadeadas porque esses se nega- vam a prestar culto ao imperador (Ap 6.9; 7.14). Ele emitiu um decreto contra as comunidades cristãs, considerando sua religião como ilícita.
Em torno de 85 d.C., o judaísmo reorganiza-se em Jâmnia e nasce o farisaísmo rabínico: um judaísmo sem templo sob a liderança dos fariseus e escribas. Esses decidem expulsar das sinagogas os judeus que aderiram a Jesus como Messias esperado por Israel. Os fariseus reorganizaram a religião judaica a partir do culto da sinagoga, gerando conflitos com as comunidades cristãs joaninas.
O conflito com a autoridade dos judeus provoca uma releitura das palavras de Jesus. Esse conflito influi na transmissão das palavras de Jesus e na formação do evangelho. Por isso as expressões: “a Páscoa dos judeus” (Jo 2.13); “a festa dos judeus” (Jo 5.1); “a purificação dos judeus” (Jo 2.6); “vossa lei” (Jo 8.17); “vossos pais” ( Jo 6.49).
O Evangelho de João apresenta uma costura de dois livros, o Livro dos Sinais e o Livro da Glorificação, que foram ligados através das reflexões e informações contidas no capítulo 12 (Jo 11.55-12.50). Acrescido de um prólogo (Jo 1.1-18) e o apêndice (Jo 21.1-25). Alguns estudiosos concluem que a redação final foi realizada por volta do ano 100 na cidade de Éfeso, Ásia Menor.
Nosso texto, portanto, está inserido no “Livro dos Sinais”. Sinais (= semeion) é um termo peculiar ao Quarto Evangelho, que narra alguns sinais realizados por Jesus que se tornaram significativos para a história da comunidade. As ações de Jesus não são chamadas de milagres, pois o milagre é feito para encantar as pessoas e satisfazê-las em suas buscas, mas o sinal é uma indicação para o engajamento das pessoas na missão de Jesus. Jesus não veio para ser admirado, mas para ser seguido em seu testemunho e em sua missão.
A situação de perseguição levou a comunidade joanina a usar uma linguagem simbólica, mas que lhe era familiar, com imagens tiradas do cotidiano, da tradição judaica e do momento presente.
Imediatamente antes do texto, Jesus está se referindo à cegueira espiritual dos fariseus. A conclusão dessa discussão vai aparecer em João 10.19-21. Portanto o discurso sobre o pastor verdadeiro, a porta, o bom pastor foi inserido aqui para tirar esse tipo de cegueira.
O “eu sou” introduz sete discursos de Jesus: desde “eu sou o pão da vida” (6.34-48) até “eu sou a videira verdadeira” (15.1-5). Nosso texto encontra-se nesse contexto. Nessas afirmações “eu sou”, Jesus autoapresenta-se com o mesmo nome de Javé: “eu sou” (cf. Êx 3.14). É uma resposta à inquietante pergunta feita pelos contemporâneos de Jesus, tanto discípulos como fariseus e o povo judeu nos capítulos 8 e 9: “Quem és tu?”. Para responder essa questão e, ao mesmo tempo, revelar a profunda identidade entre ele e o Pai, Jesus repete a expressão, mostrando o verdadeiro rosto de Deus.
Na Palestina, a cultura de criação de cabras e ovelhas garantia a sobrevivência do povo. As imagens usadas por Jesus fazem parte do cotidiano da comunidade. A imagem do pastor indica a função de quem guia, governa, cuida, mostra o caminho e guarda dos perigos. Já os profetas criticavam os reis por cuidar mal dos seus rebanhos, do povo, a ponto de serem levados ao cativeiro. A partir daí surge a esperança de que venha o verdadeiro pastor e que o povo saiba reconhecer sua voz: o Messias. Jesus realiza essa esperança e apresenta-se como o pastor verdadeiro, diferente dos que vêm para roubar o povo.
Nos evangelhos sinóticos, a expressão preferida de Jesus para referir-se à sua missão é o anúncio do reino de Deus. Em João, a expressão preferida é vida eterna, vida em abundância ou simplesmente vida. Por isso crer em Jesus é o verbo-chave, empregado 98 vezes (nove vezes nas epístolas). O objetivo é mostrar que o ato de crer é algo dinâmico, é adesão à pessoa e ao projeto de vida de Jesus, tendo uma prática consequente, manifesta por seus sinais.
3. Meditação
Jesus inicia o discurso de João 10.1-10 com a comparação entre o verdadeiro pastor que entra pela porta (porteira) e os ladrões e assaltantes que não entram pela porteira, mas pulam o muro. Para entender essa comparação, temos que lembrar que, naquele tempo, pastores cuidavam dos rebanhos o dia todo. Quando a noite chegava, levavam as ovelhas para um curral comunitário, protegido por muros contra ladrões e perigos. Todos os pastores da mesma região levavam para lá os seus rebanhos. Um porteiro tomava conta durante a noite. No dia seguinte, o pastor chegava, batia palmas na porteira e o porteiro abria. Então o pastor entrava e chamava as ovelhas. As ovelhas reconheciam a voz do seu pastor e saíam com ele para a pastagem. Acontecia, de vez em quando, que ladrões entravam por atalhos, derrubando o muro, feito de pedras amontoadas, e roubavam ovelhas. Eles não entravam pela porteira, pois havia o porteiro tomando conta.
Nessa comparação, Jesus está relacionando a figura do pastor com a função de quem lidera ou governa o povo. Os profetas criticavam os reis por ser maus pastores, que não cuidavam dos seus rebanhos. No contexto das comunidades joaninas, podemos afirmar que a comparação também inclui os governantes, especialmente quando eles se autodenominam “Deus” e “Senhor” e, ao invés de cuidarem das necessidades do povo, exploram, perseguem e agem em benefício próprio. Porém a comparação também se estende às lideranças judaicas, que por meio dos preceitos e leis excluem, intimidam e matam, especialmente, gentios, mulheres, doentes, samaritanos, pobres e demais grupos que não se alinhavam às suas normas. Jesus chama essas lideranças de “estranhos”, pois o rebanho ouve sua voz, mas não a reconhece, pois esses não as conhecem nem as chamam pelo nome.
Diante de tantas frustrações sofridas com os desmandos dos “ladrões e assaltantes”, aparece a comparação com o verdadeiro pastor, que é o próprio Deus (Sl 23). Jesus é o verdadeiro pastor. Ele conhece as ovelhas pelo nome, e elas reconhecem sua voz.
Creio que aí está o centro: na hierarquia e no poder instituído há roubo, enganação, violência e morte. A proposta de Jesus, compreendida pelas comunidades, é outra. O curral é espaço comunitário, coletivo e seguro.
As comunidades joaninas eram comunidades abertas, tolerantes e ecumênicas. Reuniam pessoas de diferentes grupos, culturas e mentalidades: judeus, galileus, samaritanos, estrangeiros, doentes, pobres, ricos, mulheres e homens, chamados a viver a nova aliança, baseada no amor e na solidariedade. Eram comunidades de periferia, sem poder, marginalizadas e excluídas do sistema. Mas experimentam o amor de Deus que se revelou em Jesus de Nazaré. “Amem-se uns aos outros. Assim como eu amei vocês, que vocês se amem uns aos outros!” (13.34). O amor era a única lei. A vivência do amor como sinal do discipulado de Jesus.
O verbo agapein aparece 67 vezes em João. Isso mostra que ser cristão é amar com gratuidade, sem esperar ou exigir algo em troca; sentir a presença viva de Jesus no Espírito enviado pelo Pai. Essa é a autoridade nas comunidades. Por isso não se permitia que suas comunidades se hierarquizassem (ou, pelo menos, esse era o princípio).
O perigo de que ladrões e assaltantes venham para roubar as ovelhas sempre há. Mas o desejo é que elas, agora, ouçam e reconheçam a voz do verdadeiro pastor. Então Jesus diz: “Eu sou a porta… Os que vieram antes de mim são ladrões e assaltantes…”. Aqui ele está se referindo aos líderes religiosos que arrastavam o povo atrás de si, mas não respondiam às esperanças por vida que eles tinham. Entrar pela porteira é o mesmo que agir como Jesus agia. O critério básico para discernir é a defesa da vida e vida plena, vida abundante.
Tarefa da comunidade cristã é colocar em prática o sonho de Jesus: garantir vida e vida em abundância para todos, sem exclusão de ninguém, sem um poder hierarquizado que busca manter a si próprio e seus interesses, e sim baseado na lei do amor. Somos chamados/as a organizar nosso modo de ser e de viver de acordo com os princípios que o pastor verdadeiro Jesus ensinou: uma comunidade de diferentes, mas iguais em valor, dignidade e cuidados. Será isso possível? Reconhecemos a voz do pastor verdadeiro? Passamos pela porta? Ou deixamo-nos roubar e assaltar por propostas diferentes?
4. Imagens para a prédica
1) Se for possível o recurso de audiovisual, um vídeo mostra como as ovelhas se comportam ao chamado de diferentes vozes. Elas só reagem à voz conhecida.
2) Pode-se abordar as diferentes teologias trazidas pelas diferentes autoridades religiosas nos cultos e missas em nossos dias. Há aquelas que dão sustentação ao sistema vigente à medida que Deus precisa me abençoar com bens materiais, pois a “vida em abundância” é a capacidade de possuir riquezas. O desejo humano passa por aí. Desejamos ter especialmente o que os outros têm. Nos tempos passados, a moral e a religião davam limites claros a esses desejos através das normas socialmente aceitas e leis de cada cultura. Hoje, “o céu é o limite”. Ou seja, não há limites… e tudo pode na medida em que “eu” quero, sonho, mereço, almejo… O sistema vigente promete realizar todos os desejos, e a religião da prosperidade também, pois Deus “tem que me ouvir”.
Nesse contexto, onde está a voz do pastor verdadeiro? Qual a porta para pastos verdes e águas tranquilas? Primeiramente, precisamos ser lembrados de que nada é infinito: nem o planeta, nem os recursos naturais, nem as riquezas, nem os seres viventes. Tudo é limitado. E necessita de limites, de cuidados. Jung Mo Sung disse, numa entrevista concedida na EST, que o papel das igrejas cristãs (que ouvem a voz do verdadeiro pastor) é dar um “limite saudável aos desejos”. Diríamos em outras palavras, está mais do que na hora de mudar nossos critérios de vida: o dinheiro e o poder econômico não podem continuar sendo os deuses do nosso viver, agir, votar, incluir ou excluir. A vida da criação e de todas as criaturas é o valor máximo para as ovelhas que ouvem e reconhecem a voz do pastor. É preciso buscar soluções em conjunto para o convívio humano fraterno e o respeito com a criação. Essa é nossa tarefa!
5. Subsídios litúrgicos
Acolhida
Aqui nos reunimos em nome daquele que disse: “Eu sou”.
Eu sou o pão da vida.
Eu sou o pão vivo que desceu do céu.
Eu sou a luz do mundo.
Eu sou o verdadeiro pastor.
Eu sou a porteira.
Eu sou o bom pastor.
Eu sou a ressurreição e a vida.
Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
Eu sou a videira.
No Êxodo, “Eu sou” tirou o povo da casa da servidão e levou-o à liberdade.
Em Jesus, “Eu sou” revela seu rosto amoroso e a sua proposta de vida:
E vida em abundância!
Kyrie
Vida é muito mais do que ter.
Vida é muito mais do que querer.
Vida é muito mais do que parecer.
Vida é muito mais do que desejar.
Vida é muito mais do que prazer.
Vida é muito mais do que consumir…
Clamamos a Deus por todas as vidas assaltadas por esses valores.
Clamamos a Deus por todas as vidas que são levadas dos pastos verdes para caminhos enganosos e águas lamacentas.
Faz-nos somente ouvir e reconhecer a tua voz, ó verdadeiro pastor!
Bibliografia
BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado. São Paulo: Paulinas, 1984.
MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco; LOPES, Mercedes. Raio-X da Vida. São Leopoldo: CEBI, 2015.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).