Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: João 10.22-30
Leituras: Salmo 23 e Apocalipse 7.9-17
Autor: Norberto Berger
Data Litúrgica: 4º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 21/04/2013
1. Introdução
A ligação com o Salmo 23 é fácil, pois até a linguagem apresenta semelhanças (pastor, ovelha). É necessário que tenhamos bem presente o específico do texto da homilia. As analogias não nos devem seduzir. Conhecemos a realidade das comunidades do Apocalipse: perseguição e morte; testemunho vivo da fé em Jesus Cristo. Essa situação traz riscos à fé. Um deles é o fechamento das comunidades sobre si mesmas. A consequência é o autoisolamento, que poderá promover o egoísmo da salvação. A confissão de fé que não buscar transformações na sociedade torna-se irrelevante para a missão de Deus.
O Apocalipse revela uma vivência comunitária aberta e de acolhimento. As comunidades sabem que não são as únicas a resistir contra o Império. Há muitas comunidades que resistem aos poderes ameaçadores da fé em Jesus Cristo. As testemunhas de Jesus Cristo não são proprietárias do agir de Deus no mundo. A marca na testa revela uma opção de vida numa realidade histórica determinada.
O bom pastor conhece suas comunidades. Elas caminham na certeza de que Deus as aceitou como sua propriedade: marca na fronte e a certeza de que nada será capaz de arrancá-las da mão do Bom Pastor. Vejo que as duas comunidades (a do Apocalipse e a do Evangelho de João) são abertas e acolhedoras. Não são monopolizadoras do agir de Deus.
2. Exegese
V. 22 e 23 – Em João 8.59, lemos que Jesus deixou o templo depois da festa dos tabernáculos. Em 10.22-23, encontramos Jesus novamente na região do templo. Veio para participar da festa da reconsagração do templo. Essa festa chama-se egkainia (renovação), em hebraico chanukka = consagração, dedicação. Desde os macabeus, é a festa da purificação e reinauguração do templo em Jerusalém por Judas, o Macabeu, em 164 a.C. Após três anos de profanação por Antíoco IV – Epífanes – (175-164 a.C.), o templo foi rededicado, e a comunidade judaica celebra a festa anualmente no inverno.
V. 24 – Os opositores não permitem nenhuma trégua a Jesus. Exigiam seu posicionamento transparente quanto à sua messianidade. Jesus respondeu com uma descrição de seu relacionamento com o Pai, apontando para o pastor e as ovelhas. A discussão gira em torno da expressão “Filho do Homem”. Levanta-se uma pesada acusação contra Jesus: sua fuga diante da autorrevelação cristológica. Jesus é responsabilizado pelo aumento da tensão entre ele e seus interlocutores.
V. 25 – A comunidade do discípulo amado apresenta-nos o rosto de Jesus com nuanças peculiares. Os redatores de João empregam o verbo apokrinomai (responder) para falar de revelação (3.5; 4.13; 5.17,19) e dos debates com opositores (6.26,29; 10.25).
Jesus afirma que já declarou a sua identidade. Havia, entre o povo, muitas opiniões divergentes a respeito do Messias. Relembremos algumas: alguns esperavam um erudito, profundo conhecedor da lei (Torá); outros esperavam um sumo sacerdote; para outros ainda, um rei, um juiz severo ou um general guerreiro para combater e expulsar os romanos do país. Com a vinda de Jesus nenhuma expectativa se confirmou. Um messias humilde e servidor não fazia parte das expectativas.
A palavra grega Cristo é tradução da palavra hebraica Messias (ungido). Na Bíblia Hebraica e no judaísmo, o Messias é esperado como rei, que trará libertação. Quando isso acontecer, está se corroborando a sua messianidade. A compreensão de Jesus como rei é problemática. Não consigo enxergar em Jesus nenhum vestígio de rei. Reavaliemos esse e outros conceitos que adotamos em nossa caminhada eclesial e pastoral quando nos referimos a Jesus. A ideologia que alimenta as caracterizações das funções de governantes choca-se, frontalmente, com a opção de Deus, concretizada em Jesus Cristo. Conheço os argumentos que defendem títulos para Jesus, que caracterizam a sociedade hierárquica com sua estrutura piramidal. Ressalta-se que Jesus é um rei diferente, inigualável aos reis deste mundo. Introduz-se um jeitinho, não plenamente convincente, para salvar os títulos honoríficos para Jesus. Nossas liturgias e hinos estão carregados com aclamações, derivadas de um contexto sociopolítico, econômico e cultural imperial.
Jesus é o que veio de Deus (v. 28). O Jesus joanino sempre fala do Pai como aquele que o enviara. Ele é o enviado do Pai.
Desde 5.19, Jesus declara, diante dos observadores atentos, que é o Filho (6.40; 8.36) ou o Filho do Homem (6.27,53,62; 8.28). Fala de si mesmo aos judeus com as palavras “Eu sou” (6.28).
O Jesus da comunidade joanina aborda, diante dos opositores, quem ele é: o Messias. Esse testemunho não convenceu seus interlocutores. Não acreditaram que fosse o enviado, o Cristo.
A palavra “obras” abarca todas as facetas do agir de Jesus. O testemunho de Jesus é confrontado com a falta de fé. Essa fé não aceita, não assume e muito menos o reconhece como “Cristo”, o prometido e enviado de Deus. A identificação das obras de Jesus com as de Deus está alicerçada num único fundamento: na unidade do Pai com o Filho (v. 30).
Jesus tem consciência de que sua maneira de ser e agir é uma interpretação de suas obras. Seu trabalho responde por ele: “As obras que faço em nome de meu Pai dão testemunho de mim” (10.25; 10.32; 10.37-38). O evangelho ressalta duas facetas inseparáveis: os sinais e as palavras. Os sinais promovem a abertura de um caminho para a fé. Aqueles que estagnarem sobre os sinais transformam-nos em obstáculos à fé. O procedimento dos fariseus transformou as Escrituras em obstáculos. Da mesma forma, os sinais podem impedir a formação da fé autêntica, confessante no cotidiano da vida.
A segunda faceta do trabalho de Jesus são as palavras. As falas de Jesus são argumentos que querem persuadir os interlocutores. Nas atividades de Jesus, o discurso admoestador e consolador teve um espaço preponderante (17.8; 17.14). Jesus faz uma retrospectiva avaliadora e conclusiva (17.8,14).
V. 26 – Levanta-se aqui a problemática da predestinação. Há ovelhas que não são de Jesus. Elas não podem crer, como também a sua fé não se desenvolve. Estamos diante de uma genuína constatação joanina: o não crente é responsável por sua falta de fé. Ele, no entanto, não consegue fazer sua fé se desenvolver (8.43b; 12.39). Alega-se que essa constatação esteja arraigada em 8.23. Quem é “de baixo” corrobora o poder de baixo. Seu pensar e fazer são inspirados pelo “embaixo”. Aqueles que assim vivem optaram em organizar sua vida em conformidade com a ideologia que prioriza o individualismo, o carreirismo, o egoísmo, a formação piramidal da sociedade… Essa linguagem dualista está a serviço dos defensores da predestinação (17.6-13).
V. 27-29 – Somos incentivados a pensar nas pessoas que irradiam sinais visíveis e identificáveis de uma clara opção de fé. As ovelhas escutam a voz de seu pastor (v. 27) e seguem-no (v. 4). O pastor conhece as ovelhas (v. 14 e 29). Ninguém as arrebatará de sua mão (v. 28). A certeza de que ninguém poderá arrebatar as ovelhas da mão do pastor faz-nos enxergar que os v. 28-29 transcendem o conteúdo dos v. 1-18.
V. 28-29 – O v. 28 encerra a mais dinâmica e solidária manifestação de confiança do Evangelho de João. O v. 29 coloca diante de nós um problema de crítica textual. Não vamos resolvê-lo nesta reflexão. A decisão a ser tomada deverá considerar o contexto da comunidade joanina. Aconselho a tradução conhecida. Variantes: “Meu Pai, o que (aquilo que) ele me deu é maior que tudo” ou “Meu Pai, que as deu a mim é maior que tudo”. Esse versículo fundamenta a ilimitada promessa protetora do v. 28. Vejamos facetas específicas quanto ao emprego do verbo didomi (dar). No evangelho e nas cartas, esse verbo revela um conteúdo teológico central. O dar é uma faceta do agir de Deus. A iniciativa é exclusiva de Deus. O Pai doa “tudo” ao Filho. O Filho exemplifica essa opção divina ao mundo (pessoas, humanidade), sobretudo no que tange à “vida” (João 4 e 6). O acento recai sobre a doação do Filho (Jo 3.16). O ser humano é totalmente dependente do doar de Deus (3.27). O verbo didomi é um conceito da comunidade joanina que destaca o “somente a graça”.
V. 30 – Este versículo pode finalizar os v. 26-29 como também os v. 22-25. O v. 30 não é uma formulação isolada. Encontramo-la em todo o Evangelho de João. No Evangelho, aparecem outras formulações, que expressam essa unidade (12.45; 14.9).
3. Meditação
a – Na comunidade do discípulo amado, havia vários conflitos: com o mundo, os judeus, a sinagoga, os discípulos de João (Batista) e outros. Na tradição joanina, o mundo gera conflitos com a comunidade. Concentra-se em si mesmo e, por isso, busca a sua salvação. Às vezes, é identificado com os judeus. É a incompatibilidade entre o enviado do Pai e o mundo. As discussões de Jesus com os judeus revelam um conflito da comunidade joanina depois do ano 70 d.C. O judaísmo aparece no quarto evangelho como um bloco homogêneo. Os sinóticos mostram que antes de 70 o judaísmo era formado por vários grupos: fariseus, saduceus, herodianos, escribas, sacerdotes e outros. A uniformidade caracteriza o judaísmo rabínico.
Nas comunidades de hoje, não há, muitas vezes, clareza quanto ao significado de “mundo” em João. Muitas discussões infrutíferas acontecem por falta de conhecimento. Considero importante clarear esse conceito na comunidade.
b – Caracterizar e destacar algumas facetas do agir de Jesus. A abordagem das obras tem de deixar muito claro que sinais e palavras são inseparáveis. A atuação de Jesus abrange sinais (diaconia) e palavras (pregação, missão). Na atividade de Jesus, o discurso admoestador/questionador, consolador/motivador teve um espaço preponderante.
c – Os sinais promovem a abertura de um caminho para a fé. Podem também ser um obstáculo à fé se ficarmos marcando passo sobre os sinais. Confessamos que a fé é uma dádiva de Deus mediante a ação do Espírito Santo. Dádiva quer ser transformada em ação. O objetivo da fé é sua vivência, sua prática. Confissões de fé que não transformam o status quo servem para o contentamento pessoal. A fé sem prática torna-se irrelevante para o crescimento do reino de Deus.
d – Proponho refletir agora sobre a figura do pastor e das ovelhas. As ovelhas escutam a voz de seu pastor (v. 27). Seguem-no (v. 4). Sugiro fazer uma referência ao shemá – “Ouve, Israel” (Dt 6.4). A LXX emprega o mesmo verbo akouein (ouvir), que também os redatores de João adotaram. Arrisco afirmar que estamos diante da teologia do êxodo. O ouvir de Deus, um convite desafiador para também ouvi-lo. O ouvir significa crer, aceitar e comprometer-se com o projeto de libertação e salvação da humanidade.
O pastor conhece suas ovelhas. Ninguém as arrebatará de sua mão. Sinto-me motivado a sugerir uma avaliação da imagem da comunidade/rebanho de ovelhas. Essa imagem motiva o engajamento da comunidade de Jesus Cristo na realidade em que estamos inseridos? Fazer uma acareação entre as comunidades do Apocalipse e a que é identificada como um rebanho de ovelhas. O povo de Deus, liberto de todas as escravizações, é transformado num rebanho dócil e submisso, sem iniciativa e sem decisão. Não precisa ser assim, mas vejo que a figura do bom pastor e das ovelhas gira em torno de uma concepção idílica de comunidade.
e – O versículo 29 fundamenta a ilimitada promessa protetora do v. 28. Com que direito Jesus tem esse poder abrangente de preservação/proteção? A resposta engloba quatro passos:
– As ovelhas são do Pai. Ele as doou a Jesus. Às ovelhas é facultado, outorgado o direito de vivenciar essa opção do Pai.
– O Pai é maior do que “tudo”. É evidente que se pensa no relacionamento do Pai com o Filho. As ovelhas (comunidade) jamais serão arrancadas da mão protetora do Pai (exemplificar e concretizar).
– A mão do Pai torna-se concreta e perceptível mediante o agir de Jesus. Percebe-se essa mão protetora no cotidiano da vida (exemplificar e concretizar).
– Ser bom pastor conforme o Bom Pastor é “dar a vida” pelo rebanho. Que significa essa atitude na prática da fé no dia a dia? Engajar-se para que o povo tenha condições dignas de viver. Deus não deseja colher sacrifícios. Portanto sejamos sóbrios quando pregarmos sobre a atitude do bom pastor para não defender, de peito inflado, que o bom pastor entrega sua vida em favor do rebanho/povo.
Deus não quer vidas sacrificadas por ser o Deus apaixonado pela vida. A partir dessa perspectiva, vejo que o pastoreio evangélico é um desafio ao engajamento:
– estímulo à dignidade humana;
– engajamento pela saúde integral;
– convite à vivência da liberdade;
– desafio à participação;
– assumir a própria identidade;
– participar da alegria de um povo.
4. Caminhando em direção à prédica
A comunidade joanina reflete a realidade no fim do 1º século de nossa era.
Para situar os ouvintes, comentar um aspecto da meditação.
1 – Destacar a pedagogia de Jesus. A atuação de Jesus abrange sinais (diaconia) e palavras (pregação, missão).
Exemplos da atuação de Jesus:
– Jesus deseja a participação das pessoas (trabalho em equipe);
– Jesus pergunta;
– Jesus ouve;
– Jesus partilha;
– Jesus visita;
– Jesus devolve a dignidade às pessoas;
– Jesus encontra-se com as pessoas excluídas.
2 – Confissão: fé é dádiva de Deus. Impulsiona-nos à diaconia mediante o agir do Espírito Santo. Confissões de fé que não transformam o status quo servem apenas para o contentamento pessoal. Ela é irrelevante para o crescimento do reino de Deus.
3 – A fé, portanto, necessita de um contínuo fortalecimento: ouvir o que Deus nos tem a dizer. Esse ouvir recebe seu impulso do próprio Deus. Deus sempre ouve seu povo: do êxodo até os dias de hoje. Esse ouvir é assumido e vivenciado pela própria comunidade. Sugiro abordar agora a imagem do Bom Pastor e do rebanho de ovelhas. O Bom Pastor, Jesus Cristo, sempre está presente e acompanha o rebanho/comunidade. É um acompanhamento dinâmico. Pertencer a essa comunidade significa ouvir a voz do Bom Pastor/Jesus Cristo. Esse ouvir significa assumir a pedagogia de Jesus na caminhada da fé, no cotidiano. Agir como Jesus agia em sua prática diária. Ele, o enviado do Pai, age como o próprio Deus age. Ser testemunha de Jesus nessa comunidade é estar compromissado com a prática:
– acolhedora, solidária e questionadora do status quo;
– não monopolizadora do agir de Deus (ecumênica);
– engajada na conquista da saúde integral (comunidade terapêutica);
– comprometida com a vivência da dignidade humana.
4 – Essa prática é possibilitada à comunidade mediante o agir de Jesus Cristo, o Bom Pastor. Finalizar com os v. 28b e 29. Estamos diante da mais dinâmica e solidária manifestação de confiança na presença e no agir de Jesus no Evangelho de João. O v. 29 fundamenta a ilimitada promessa de proteção do v. 28b. A comunidade do Bom Pastor jamais será arrebatada da mão protetora de Deus. Não há como cair para fora da esfera de ação de Deus. Isso não é privilégio. É consequência do dar de Deus, é graça.
Bibliografia
DIETZFELBINGER, Christian. Das Evangelium nach Johannes. Zurich: Theologischer Verlag Zurich, 2004.
RIBLA 17. Quarto Evangelho e cartas de João. Petrópolis/São Leopoldo: Vozes e Editora Sinodal, 1994.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).