Uma semana decisiva
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: João 12.12-16
Leituras: Salmo 118.1-2,19-29 e Marcos 14.1-9
Autoria: Manoel Bernardino de Santana Filho
Data Litúrgica: Domingo de Ramos
Data da Pregação: 25/03/2018
1. Introdução
Hoje, celebramos a entrada de Jesus em Jerusalém com ramos. A origem dessa aclamação é a Festa das Tendas, que era realizada no outono, depois da colheita (Dt 16.13; Lv 23.34). Ela lembra o tempo em que o povo israelita fazia sua caminhada pelo deserto (Lv 23.43), morando em tendas. Por isso, durante uma semana, eles recolhiam ramagens e formavam tendas por toda parte (Ne 8.14-17). O povo agitava os ramos e dizia: Bendito o que vem em nome do Senhor. E os sacerdotes respondiam: Da casa de Javé nós vos abençoamos (Sl 118.25-27). A Festa das Tendas era um momento de alegria e de louvor, que mantinha a identidade do povo e lhe dava resistência.
Todos os evangelhos falam desse acontecimento. O texto do Evangelho de Marcos assinala os dias que antecedem a Páscoa com a preparação do cordeiro para o grande dia. Jesus, em Betânia, é ungido pelo gesto simples de uma mulher que, ao honrá-lo com seu feito, prepara-o para a crucificação e a morte que o espera em Jerusalém. Sua unção é messiânica, uma preparação para o sepultamento. Ela antecipa a preparação para a morte de Jesus. Desta forma, ela demonstra solidariedade com o caminho da cruz. Ela é elogiada porque compreende o evangelho, e esse será, de agora em diante, identifi cado com ela.
O Salmo 118 apresenta a entrada do rei pelas portas da cidade e nele Deus promete restaurar a ventura do povo. Ele entra pelas portas da justiça inteiramente por sua ação, que foi aperfeiçoada pelo sofrimento. A multidão, ao saudá-lo com Hosana!, mostra que de modo intuitivo percebeu quem era aquele a quem agitava seus ramos de oliveira. O Salmo era cantado toda manhã pelo coro do templo durante a Festa das Tendas. Ele, o rejeitado pelos homens de infl uência da nação, era a pedra principal.
2. Exegese
Provavelmente, a experiência aqui apresentada se deu no domingo da semana da Páscoa. Desde aquele dia o volume de pessoas que chegavam a Jerusalém aumentava. Eram peregrinos de várias regiões da nação que se reuniam para a celebração da festa. Jesus foi encontrado na estrada de Betânia por peregrinos que já haviam chegado a Jerusalém. Certamente muitos desses peregrinos eram galileus já familiarizados com a pregação de Jesus; outros teriam ouvido falar da ressurreição de Lázaro e, dessa forma, procuravam uma oportunidade para se aproximar de Jesus. Alguns autores sugerem que o relato do quarto evangelho é baseado no testemunho de alguém que já estava em Jerusalém, enquanto que o relato sinótico é contado do ponto de vista dos peregrinos que acompanhavam Jesus.
Os ramos de palmeiras eram encontrados nos arredores de Jerusalém. Esses se tornaram um símbolo nacional desde que Simão Macabeu expulsou as forças sírias da cidadela de Jerusalém. Naquela ocasião ele foi festejado com música e acenos de ramos de palmeiras. Ao mesmo tempo em que aclamavam com o Hosana!, as pessoas agitavam os ramos de palmeiras numa coreografia que ganhava beleza à medida que o povo se multiplicava. As palavras bendito o que vem em nome do Senhor são também uma citação do Salmo 118.26. Era uma forma de conferir bênção sobre o peregrino que se dirigia a Jerusalém. No salmo, as boas-vindas e a bênção eram pronunciadas sobre um rei davídico, embora isso não esteja explicitado. No midrash sobre o Salmo 118, essa expressão é entendida de forma messiânica: aquele que vem é o Messias. Aqui também, no quarto evangelho, as multidões não pronunciam simplesmente uma bênção em nome do Senhor sobre aquele que vem, mas pronunciam uma bênção sobre aquele que vem em nome do Senhor. Elas proclamam: Bendito é o rei de Israel, que não é uma citação do Salmo 118, mas uma identificação messiânica daquele que vem em nome do Senhor.
João afirma que tendo Jesus conseguido um jumentinho… (v. 14), montou nele para entrar na cidade. Os sinóticos são mais precisos e abundantes nas informações acerca desse acontecimento. Certamente, Jesus utilizou os contatos de seus discípulos com pessoas que pudessem suprir essa necessidade. A expressão “jumentinho” confirma que ele cavalgou um animal novo, sobre qual Marcos vai dizer que nunca havia sido montado (11.2). A cena cumpre o dito de Zacarias (9.9) que afirma que o Messias virá em paz, humilde e montado num jumento, um jumentinho, cria de jumenta. Isso mostra que suas aspirações não são políticas nem nacionalistas. Um rei guerreiro entraria na cidade montado num cavalo imponente como expressão de suas intenções.
Ao associar a entrada de Jesus em Jerusalém com a profecia messiânica de Zacarias, o contexto pleno do Antigo Testamento deve ser levado em conta. Após a promessa da vinda do rei humilde, Deus ainda promete: Ele destruirá os carros de guerra de Efraim e os cavalos de Jerusalém, e os arcos de batalha serão quebrados. Ele proclamará paz às nações e dominará de um mar a outro, e do Eufrates até os confins da terra. Quanto a você, por causa do sangue da minha aliança com você, libertarei os seus prisioneiros de um poço sem água (Zc 9.10-11). Três conclusões se destacam aqui: 1) a vinda do rei humilde está associada com o fim da guerra. Isso também foi entendido por João como definidor da obra de Jesus, de tal forma que ele nunca poderia ser reduzido a um zelote fanático; 2) a vinda do rei humilde está associada com a proclamação da paz às nações, estendendo seu reino aos confins da terra. A última parte de Zacarias 9.10 é uma citação do Salmo 72.8, que promete um reino mundial para o rei de Sião, um filho de Davi; 3) a vinda do rei humilde está associada com o sangue da aliança de Deus, que resulta em libertação para os prisioneiros, associado com a Páscoa e com a morte do servo-rei que está imediatamente à frente.
João destaca, no versículo 16, que os discípulos não entenderam o significado do gesto de Jesus. Parece haver uma incoerência no fato de os discípulos não entenderem o significado da entrada do salvador humilde, enquanto que a multidão o saúda como rei de Israel. No entanto, as multidões confessam Jesus como rei de Israel antes de Zacarias 9.9 ser citado. Jesus se recusou a reforçar suas aspirações políticas e nacionalistas. Seu gesto de humildade começa em sua montaria. O pleno significado dele nem os discípulos nem a multidão perceberam naquele momento. Esse conhecimento só se deu quando Jesus foi glorificado e o Espírito Santo derramado (Jo 14.26; 16.12-15).
O contexto mais amplo retrata duas multidões: uma vinha caminhando com ele desde a ressurreição de Lázaro. Essa multidão poderia incluir também pessoas que foram se alinhando pelo caminho, como, por exemplo, gente de Betânia, algumas das quais foram convidadas para o jantar (12.2). Essas pessoas estavam ali para dar testemunho de tudo que tinham visto e ouvido e, dessa forma, espalhar os fatos como se deram. A outra multidão saiu de Jerusalém para encontrá-lo, estimulada em parte pelos relatos dos milagres.
A cena completa estava carregada de potencial explosivo. Jesus podia ter começado uma revolta armada naquele momento. Os fariseus observavam tudo e estavam inquietos. Achavam que o melhor era suportar a ocupação romana. Por isso estavam aborrecidos com a crescente popularidade de Jesus. O Sinédrio tomou sua decisão (11.49-53), mas teve que executá-la furtivamente por causa das multidões. Temiam por si mesmos, pois não queriam se opor à vontade do povo.
Quando eles afirmam olhem como o mundo todo vai atrás dele, soa também como uma ironia joanina. Ainda que eles quisessem dizer que todas as pessoas presentes para a festa se voltassem para o messias-humilde, no entanto, o evangelho, em sua plenitude, quer mostrar que a missão de Jesus é salvar o mundo (3.17). Essa multidão, na verdade, antecipa o alcance mais amplo que a humanidade desfrutará do reino de salvação de Jesus.
3. Meditação
Como eu mesmo afirmei no Proclamar Libertação 33, entrar em Jerusalém significa que Jesus está pronto para cumprir o seu destino. Ele adentra a cidade e ali toca na ferida do sistema político-religioso, que se corrompeu. Os judeus, com seus ritos de purificação, buscavam sua santidade sacramental. Lavavam-se da imundície do convívio social, do qual às vezes não podiam fugir. Jesus transforma a intolerância em tolerância para recuperar a festa da convivência. Não é por acaso que Jesus inicia seus “sinais” com o milagre da transformação da água em vinho (Jo 2.1-12). A água dos judeus promove a diferença, a separação das classes. O vinho que Jesus traz à festa une. Isto é, produz a volta da amizade, da conversa livre, do bate-papo amigo. Olhando assim, o milagre em si é secundário. O que importa é o resultado que esse gesto produz. Dizer que o vinho acabou é dizer que desapareceu a possibilidade do diálogo, da convivência saudável. Quando a intolerância predomina, o vinho da convivência se transforma nas talhas petrificadas da intransigência e da separação.
O evangelho de Jesus denuncia a incapacidade de construção de um povo sem que primeiro se reconstrua os caminhos da convivência. Quando se fala de igreja como povo de Deus, não é um povo já estabelecido, é um povo que está sendo construído, edificado. Mais e mais pessoas excluídas precisam entrar. Jesus chama a todos, mas nós queremos chamar apenas alguns que nós julgamos que sejam dignos. Nesse sentido somos antipovo.
Lembramo-nos do cego de Jericó? Ele estava “à beira do caminho” (Lc 18.35). Por que à beira? Excluído. Fora da estrada. Quando grita por Jesus, mandam que se cale. Mas o que Jesus faz? Chama-o para a estrada e o inclui na comunidade. Este é o maior milagre: é a inclusão no povo de Deus. Não é a cura física. Jesus não veio meramente curar doentes físicos. A religião que estiver construindo sua fé em cima de milagres, exorcismos e curas está se distanciando do verdadeiro evangelho de Cristo.
Jesus recria as condições para a convivência. Deseja nos ensinar a compartilhar, a dar mais atenção para as pessoas do que para as coisas. Para se viver o evangelho, é preciso se recuperar a convivência. É aqui que começa o evangelho.
A entrada em Jerusalém é prenúncio da mensagem do Reino que chega até nós. Jerusalém é o mundo. A ordem vigente e injusta precisa ser denunciada. Os poderes da morte precisam ser derrotados. Jesus vai ao templo e se enche de indignação. Quebra as tendas de negócios no entorno do templo. Por quê? Porque as tendas lembram o sacrifício pelo mérito. Só sacrifi ca quem pode pagar. Será que tem alguma semelhança com hoje?
O quarto evangelho apresenta o tema da inclusividade. Jesus encontra uma samaritana e fala com ela (Jo 4). Ela se assusta. Por quê? Porque os judeus não falavam com samaritanos, muito menos uma mulher. Havia uma muralha étnica. Ele quebra a muralha e traz a mulher para dentro. No capítulo 5, ele vai ao tanque de Betesda, lugar de excluídos de toda ordem. Ali jazia uma multidão de enfermos, cegos, coxos, paralíticos (5.3). Jesus ordena que se ponham de pé e saiam para a vida. No capítulo 8 está a mulher pega em adultério, sozinha. Ela não tem parceiro. Queriam apedrejá-la, pela lei. Jesus confronta aqueles religiosos hipócritas, manda que atirem pedras se estiverem sem pecados. Ele então põe a mulher dentro da comunidade. Eles queriam sua exclusão radical, com a morte. Jesus a inclui no conceito de povo. E joga a lei deles para fora da muralha.
Jesus queria incluir todo mundo no conceito de povo de Deus. João 11.50 é a chave para se entender todo o Novo Testamento. Já que Jesus queria incluir a todos, é necessário que morra para que não venha a perecer toda a nação, isto é, toda aquela compreensão de povo de Deus que eles criaram para si. A sentença de morte foi estabelecida na ressurreição de Lázaro.
O evangelho de Jesus Cristo, na narrativa de João, é o evangelho da inclusão. Nele cabem judeus, samaritanos, gregos, gente de qualquer lugar e qualquer nacionalidade. O reino de Deus é formado por pessoas de todas as etnias e de todas as condições sociais. Não há distinção.
A universalidade do ministério de Jesus começa a ser mostrada em sua entrada em Jerusalém e é ampliada pelo evangelista nos trechos seguintes, quando o Senhor começa a ser reconhecido por gregos e povos de outras nações. Ele veio para inaugurar o reino de Deus e mostrar a todos os benefícios de pertencer a ele, assumindo seus valores, que são eternos.
4. Imagens para a prédica
A entrada de Jesus em Jerusalém pode ser encenada pela comunidade. Dependendo da geografia da localidade do templo, o Domingo de Ramos pode ser coreografado a partir da participação de vários personagens percorrendo o entorno do templo, utilizando ramos de palmeiras ou de outras plantas. No interior do templo, a coreografia pode ser também utilizada com os participantes acenando com as folhas de palmeiras, enquanto a comunidade saúda aquele que chega com vestes brancas: Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor!
Deve-se cortar os ramos com bastante antecedência e oferecê-los às pessoas adultas e crianças. Estas, principalmente, haverão de participar com alegria de algo tão interessante. Também é possível organizar dois grupos de pessoas que caminham em direção umas às outras para representar os peregrinos que vinham seguindo Jesus desde a Galileia e aqueles que o esperavam às portas de Jerusalém, impressionados pelos relatos de milagres e, provavelmente, da ressurreição de Lázaro.
A entrada de Jesus em Jerusalém aponta para o significado último do evangelho: a concretização de um projeto de Deus, que é a constituição de uma comunidade que abrace e que seja solidária, que anuncie o Reino não tanto com a verbalização do evangelho, mas com a prática, com a experiência de quem teve um verdadeiro encontro com Jesus Cristo.
Jesus entrou em Jerusalém. Podemos ilustrar essa entrada como um plano estabelecido por Deus. Essa é uma figura para mostrar que ele deseja entrar na
vida de todas as pessoas. Ele disse (Jo 12.32) que, quando fosse levantado, atrairia para si a muitos. Somos atraídos pelo seu amor e por sua solidariedade.
5. Subsídios litúrgicos
Oração do dia: Deus, nosso Senhor, queremos louvar-te e agradecer-te porque te humilhaste por nossa causa, através de teu amado Filho, para exaltar-nos em tua incompreensível misericórdia. Queremos louvar-te e agradecer-te por este impressionante propósito para com teu povo Israel e para com os gentios, de quem chamaste nossos antepassados. Queremos louvar-te e agradecer-te por nos teres escolhido e chamado em tua graça, por seres também o Deus dos rejeitados e dos esquecidos, por sempre aceitares todos nós de forma paterna e plena. Não cansamos de te reconhecer e te adorar em todos esses mistérios e de tomar para nós na fé a tua Palavra, pela qual és glorifi cado e nos concedes paz e alegria através da bem-aventurança eterna já nesta vida.
Rogamos a ti por tua igreja aqui e em todos os países: pela igreja adormecida, que ela acorde; pela igreja perseguida, que ela permaneça alegre e confiante em tua causa; pela igreja confessional, que ela não viva para a sua própria, mas apenas para a tua glória. Rogamos a ti por todos os governantes e autoridades no mundo inteiro: pelos bons, que os mantenhas; pelos maus, que transformes seus corações ou ponhas fim à sua violência, conforme a tua vontade; que te reveles a todos como aquele a quem devem servir. Pedimos que haja resistência à toda tirania e desgoverno e que as pessoas e os povos oprimidos possam obter os seus direitos. Rogamos-te também pelos pobres, pelos enfermos, pelos prisioneiros, pelos desamparados, pelos aflitos, por todos aqueles que sofrem e talvez só tu saibas. Que encontrem consolo em ti e na esperança em teu reino! Amém. (Barth, 2013, p. 32-33, adaptado)
Bibliografia
BARTH, K. Senhor! Ouve nossa oração! São Leopoldo: Sinodal, 2013.
BRUCE, F. F. João; introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1987.
CARSON, D. A. O Comentário de João. São Paulo: Shedd, 2007.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).