Vocês entenderam o que eu fiz?
Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: João 13.1-17,31b-35
Leituras: Salmo 116.1-2,12-19 e 1 Coríntios 11.23-25
Autoria: Gleidson Ademir Fritsche
Data Litúrgica: Quinta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 18 de abril de 2019
1. Introdução
O amor de Deus se fez gente em Jesus Cristo. O verbo se fez carne. Jesus não apenas anunciou verbalmente o reino de Deus. Ele viveu aquilo que pregou. Porém esse viver responsável e comprometido com Deus teve consequências e não encontrou aceitação em todo o povo. Jesus está prestes a ser preso, torturado e assassinado. Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos – afirma o Salmo 116.15. Os laços da morte o estão envolvendo, aproximam-se a solidão e a angústia do Getsêmani, onde Cristo invoca o nome do Senhor, que o escuta, assim como o salmista afirma no Salmo 116.1. Porém essa angústia não impede Cristo de ter um bom momento de comunhão e de ensino junto aos discípulos. Jesus tinha conhecimento daquilo que o aguardava. No entanto, ainda havia tempo para ensinar, mais uma vez, através do exemplo, o amor tantas vezes anunciado. O salmista afirma: Cumprirei os meus votos ao Senhor na presença de todo o seu povo (Sl 116.18). Cristo está cumprindo, vivendo o amor de Deus, aquilo que ele é em carne e osso. O texto da carta (1Co 11.23-25) reproduz a instituição da última ceia na versão a que Paulo teve acesso. O texto de prédica substitui essa tradição pelo episódio do lava-pés.
2. Exegese
O Evangelho de João foi escrito por volta do ano 100, na Ásia Menor, mais precisamente em Éfeso. Foi o último dos quatro evangelhos a ser redigido. João usa uma linguagem distinta, diversas vezes enigmática, porém expressa com profundidade o ser e o agir de Deus em Jesus Cristo.
O autor opta pelo fato narrado ao invés do conceito teológico. O objetivo do evangelho não é apresentar uma biografia, e sim conduzir as pessoas à fé. O conteúdo distinto do evangelho escrito por João pode nos remeter ao fato de que o autor não quis repetir aquilo que as comunidades já sabiam. João omite a instituição da Santa Ceia, por exemplo, além de muitas parábolas e exorcismos.
Por outro lado, a cura de um enfermo no tanque de Betesda, a cura de um cego de nascença, a ressurreição de Lázaro e boa parte do texto em foco, o lava-pés, são exemplos do rico material que consta apenas no quarto evangelho. O capítulo 13 do Evangelho de João faz parte do bloco que identificamos como o último discurso de Jesus aos discípulos, que inicia em 13.1 e se estende até o fim do capítulo 16. Esse bloco está localizado após a entrada de Jesus em Jerusalém (Jo 12.12-19) e antecede a oração sacerdotal, paixão, morte e ressurreição de Jesus (Jo 17 – 21).
Em João 13, Jesus volta-se ao círculo mais íntimo de seguidores, mais especificamente ao grupo dos doze. Faltava pouco tempo para a Páscoa. Estava acontecendo a ceia. O diabo, aquele que separa, que divide, havia posto no coração de Judas que traísse Jesus. Mesmo assim, Jesus amou os seus no kosmos (mundo) até o fim. No grego, o termo usado para referir-se a “fim” é telos, o qual aparece no último grito de Jesus na cruz: tetelestai (está completado, Jo 19.30). O termo usado para se referir a amor é agapē: amor incondicional, que não depende de reciprocidade, amor que vem de Deus, que se fundamenta em Deus.
Jesus sabe de onde veio e para onde vai. Ele serve e ensina, mesmo em meio à hostilidade que o cerca. Ele se levanta da ceia, tira a vestimenta de cima, pega uma toalha, amarra na cintura, coloca água na bacia e começa a lavar os pés dos discípulos. João redige com riqueza de detalhes a ação de Jesus e, assim, dá destaque extraordinário ao fato. Em geral, lavar os pés era serviço dos escravos. Num grupo de escravos, era o mais desvalorizado que servia lavando os pés. De modo algum era um mero ato simbólico.
Há uma tradição que afirma que Calígula, imperador romano, humilhou os senadores ao ordenar que lavassem seus pés. Jesus, por sua vez, mostra o seu amor na liberdade de realizar esse humilde serviço com os discípulos.
A inversão dos papéis é tão surpreendente que, mesmo entre os doze, não teve aceitação e compreensão, pelo contrário, foi um escândalo. Pedro não compreendeu que o senhorio de Jesus estava no servir. Jesus afirma que mais adiante Pedro entenderá: Agora você não entende o que estou fazendo, porém, mais tarde, vai entender. Compreendemos isso como uma referência à morte e ressurreição, a qual, muito mais do que o lava-pés, expressa o servir de Jesus.
Pedro não quer ter os pés lavados, ou então, quer ser lavado por completo. Pula de um extremo a outro e segue sem entender o mestre. Se eu não lavar, você não será mais meu discípulo, diz Jesus. Entendemos isso no sentido de que a comunhão com Jesus só é possível a partir do momento em que compreendemos o seu servir, bem como o significado e a profundidade do seu amor.
Através do lava-pés, Jesus deixa claro que não é o ser humano que opera a pureza para chegar a Deus. Aqui, em ato concreto, nos é mostrado que é Deus que se aproxima do ser humano. O ser humano não pode contribuir com nada nisso. Pode sim seguir o exemplo do mestre em gratidão pela imensa graça recebida: façam o que eu fiz. Fica claro que uma definição meramente verbal do amor de Deus fica muito longe de expressar o que realmente é o amor. Só compreende o sentido do agapē quem age por e em amor, até mesmo no grupo em que se encontra o seu traidor, aquele que irá negá-lo e os que irão abandoná-lo em meio ao sofrimento.
Após lavar os pés dos discípulos, Jesus questiona: Vocês entenderam o que eu fiz? Ele mesmo dá a resposta e ordena que os discípulos façam o mesmo, que sigam o seu exemplo. Jesus ordena que, assim como ele os amou, que eles amem uns aos outros. Justamente nesse amar reside a identidade dos discípulos: Se tiverem amor uns pelos outros, todos saberão que são meus discípulos. O termo utilizado segue sendo o agapē. Vale reforçar que não se trata de um 11° mandamento, e sim do mandamento que abarca toda a lei.
3. Meditação
Vocês entenderam o que eu fiz? É a pergunta que Jesus nos dirige. Não apenas para a comunidade, mas também a ministros e ministras. Vocês entenderam o que eu fiz? Atualmente, lavar os pés de alguém não é mais tão usual como era na época de Jesus. Talvez tenhamos lavado os pés de algum familiar doente, de filhos e filhas quando pequenos, de pais quando idosos, da esposa ou do esposo em algum momento de dificuldade etc. Mas é bem provável que todos já tivemos nossos pés lavados, ainda que tenha sido na infância. No entanto, lavar os pés de alguém em gesto de pura humildade é coisa rara, escassa em nossos dias. Talvez até seria estranho ou incompreendido se ocorresse fora da liturgia do culto de Quinta-Feira Santa.
No entanto, esse gesto concreto de Jesus pode ser atualizado em outros gestos. Com o que podemos assemelhar o lava-pés? Essa é uma pergunta que a
comunidade como um todo precisa se fazer. Lavar os pés significa servir. Onde estamos servindo? Ou, antes disso, perguntar: estamos servindo? Como comunidade cristã evangélico-luterana, não podemos apenas teorizar o amor. Comunidade que não ama verdadeiramente a ponto de servir não tem identidade, não é reconhecida como igreja de Cristo.
Comunidade que existe apenas para si mesma vai ler e ouvir como lei que acusa o versículo que diz: Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns pelos outros. Nossa identidade reside em seguir o exemplo do mestre que amou incondicionalmente a todos e todas, não em placas de identificação. Não desmerecemos as mesmas, porém essas se tornarão ridículas se não forem legitimadas pelo agir.
É importante ressaltar que comunidade não são os outros, igreja não é só o presbitério. Falar em igreja na terceira pessoa (eles, elas), a meu ver, é errado. Quando nos referimos à igreja, devemos usar a primeira pessoa (eu, nós), na plena certeza de que somos parte de um mesmo corpo.
Uma forma de servir como comunidade são as ofertas recolhidas em culto. Elas podem se transformar em “ação de lava-pés”. Como as comunidades lidam com essa oportunidade de servir? As ofertas locais que a comunidade escolhe para onde destinar estão sendo destinadas ou, simplesmente, “colocadas” no caixa? Seria oportuno transformar isso em pão, em remédio, em fralda geriátrica etc.
Outra forma de servir é fazendo campanhas de arrecadação de alimentos a pessoas ou instituições. Há tantos sinais do Reino que percebemos na IECLB e fora dela quando comunidades se engajam em favor de uma causa justa, para auxiliar hospitais, escolas, instituições de longa permanência, pessoas etc.
Fazer a comunidade como um todo refletir sobre as ações concretas em que tem se engajado é oportuno neste dia. Entretanto, cabe esclarecer que esse agir não pode, de forma alguma, ser motivado pelo mérito ou destaque que a causa pode proporcionar. Servimos por gratidão. Se somos reconhecidos por isso, que bom! Se não somos reconhecidos ou se somos criticados, seguimos servindo alegremente.
Além do servir comunitário, o servir em família ou individualmente pode ser avaliado. Que “pés” tenho “lavado”? Tenho “lavado”? Onde tenho feito isso? Acaso estou apenas vendo e cuidando do que é meu, reclamando da minha unha encravada e fazendo dela o maior problema do mundo? Somos discípulos e discípulas de Cristo todos os dias. Servi-lo faz parte de nosso ser. É nossa identidade.
Nosso mundo está carente de cuidado e humildade. Não temos condições de resolver os problemas do mundo inteiro. Não temos como acabar com a fome do planeta. Mas podemos fazer a diferença para quem está próximo. Cristo lavou os pés dos doze. Quem sabe, vamos lançar o desafio de cada um dos presentes no culto ajudar, de alguma forma, doze pessoas no período de um mês. Mas ajudar concretamente, com gesto, com ação, com amor e humildade. Faça uma conta rápida e avalie quantas pessoas serão alcançadas por Deus através da comunidade reunida em culto se todos os presentes aderirem ao desafio.
Além de servir, estaremos ensinando, anunciando o evangelho através de nossas ações. Assim como Jesus ensinou com exemplos, também nós podemos fazê-lo. É fato que as pessoas aprendem com mais facilidade através de gestos do que de discursos.
4. Imagens para a prédica
Sobre a importância de não apenas falar sobre amar e servir, propomos contar, nos últimos momentos da pregação, a seguinte fábula:
Certa vez, três sapos estavam em cima de uma folha de vitória-régia, que flutuava sobre um lago. Um dos sapos começou a falar sobre como a água estava boa para nadar e decidiu pular na água. Quantos sapos ficaram em cima da folha? Deixe alguns instantes para que a comunidade reflita. Havia três sapos na folha, um decidiu pular, quantos sobraram? A resposta certa é: sobraram três sapos, pois aquele um apenas decidiu pular, mas, na verdade, não pulou.
Às vezes, nosso viver se parece com o desse sapo. Também nós decidimos fazer isso, fazer aquilo, e não fazemos nada. Muitas vezes, ouvimos falar sobre como ajudar, como servir, como “lavar os pés”. Contudo, nem sempre temos mãos, mentes, gente disposta a realmente fazer, a “pular na água”. Que como igreja não apenas falemos sobre o amor de Deus, que não sejamos meros ouvintes da mensagem do evangelho, mas que sirvamos com palavras e ações, seguindo o exemplo de Jesus. Assim, seremos conhecidos como filhos e filhas de Deus, discípulos e discípulas de Cristo.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados
Querido e amado Deus, diante de ti reconhecemos que somos pessoas pecadoras. Por vezes, deixamos de lado a tua Palavra e não dedicamos tempo suficiente para aprender de ti. Nem sempre praticamos aquilo que aprendemos. Preferimos apenas ouvir e esquecemos de servir com nossos dons. Nem sempre estamos dispostos e dispostas a praticar a humildade, a lavar os pés uns dos outros. Não te amamos de todo o coração, nem amamos o nosso próximo como a nós mesmos. Por amor de teu filho Jesus Cristo, que nos deu o exemplo da humildade, que revelou seu grande amor por nós na cruz e que ressuscitou para nos dar a vida eterna, nós te pedimos: tem compaixão de nós e perdoa-nos. Amém!
Oração do dia
Senhor, agradecemos o teu imenso amor por nós e pedimos-te: vem nos ensinar através da tua Palavra. Que possamos ouvir e compreender o significado do serviço cristão em nossa vida. Que não sejamos meros ouvintes, expectadores do evangelho, e sim gente que serve. Que tua palavra alimente nossa fé, para que a partir dela anunciemos em palavras e ações a tua salvação. Que tua Palavra nos impulsione para que, assim como Cristo nos deixou o exemplo, nós deixemos bons exemplos a quem convive conosco. Amém!
Sugestões de hinos
Livro de Canto da IECLB (LCI), n° 412 – Foi no calvário; LCI, n° 422 – Lava-pés; LCI, n° 613 – Canto de esperança; LCI, n° 582 – Há sinais de paz e de graça; LCI, n° 577 – Qual barco singra pelo mar; LCI, n° 321 – Tua vontade.
Bibliografia
BOOR, Werner de. Evangelho de João. Curitiba: Esperança, 2002.
SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2010.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).