O caminho verdadeiro que conduz à vida
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: João 14.1-12
Leituras: Salmo 113 e Colossenses 3.1-11
Autoria: Jaime Jung
Data Litúrgica: Ascensão do Senhor
Data da Pregação: 10/05/2018
“Não, não tenho caminho novo. O que tenho de novo é o jeito de caminhar. Aprendi (o caminho me ensinou) a caminhar cantando como convém a mim e aos que vão comigo. Pois já não vou mais sozinho.” (Thiago de Mello)
1. Introdução
A Ascensão do Senhor situa-se, dentro do calendário litúrgico, no trecho do caminho compreendido entre Páscoa e Pentecostes. Não seria demasiado explicar brevemente o termo “ascensão” à comunidade, já que não é de uso corriqueiro. Deriva do latim ascensio, significa “elevação, subida”. Pode surgir, então, uma primeira “pedra” no caminho, tanto para quem prega quanto para quem ouve, que é contrapor o significado literal da palavra ascensão ao sentido teológico mais amplo que se quer dar a essa data litúrgica: se Jesus ascendeu, como pode estar presente aqui e agora?
Uma pista para contornar esse percalço traz o teólogo Gerhard Ebeling: “Deus não está lá onde é o céu, mas o céu é ali onde Deus está”. Essa afirmação pode permear grande parte da proposta litúrgica para o culto, bem como auxiliar no preparo da pregação. No culto, a comunidade está reunida em nome e na presença de Deus onipresente, que a acompanha também no cotidiano.
O conteúdo do Salmo 113 é coerente com os demais textos previstos, ao lembrar que nosso Deus, que tem o seu trono nas alturas, […] se inclina para ver o que há no céu e na terra (v. 5 e 6). Também a perícope de Colossenses 3.1-11 aponta para o evento da ascensão: ponham o seu interesse nas coisas que são do céu, onde Cristo está sentado ao lado direito de Deus (v. 1b) e lembra que Cristo é tudo (e está) em todos (v. 11b).
Numa realidade carente de direção, parâmetros e esperança, é consolador e animador saber que Jesus é o caminho, a verdade e a vida.
2. Exegese
O texto de João 14.1-12 já foi objeto de estudo em Proclamar Libertação: PL I-II (Hermann Brandt), PL 21 (Ari Knebelkamp), PL 27 (Uwe Wegner) e PL 34 (Júlio Cézar Adam). Recomendo a leitura.
A perícope está dentro dos assim chamados “discursos de despedida” de Jesus. Ele já havia apontado para sua partida anteriormente (cf. Jo 13.33 e 36). Martim Lutero afirma que neste e nos dois capítulos seguintes temos o sermão de Cristo proferido aos discípulos “a fim de consolá-los e fortalecê-los duplamente: contra a tristeza presente, causada pela sua partida, e contra o sofrimento futuro, que lhes sobreviria”. Para o reformador, as palavras de Jesus aos seus seguidores são tão permeadas de amor e cuidado “a ponto de, por isso, esquecer seu próprio sofrimento e medo com a finalidade única de preservá-los por intermédio de seu consolo” (OSel 11,45).
O título dado a esse trecho na tradução de Almeida (ARA), mesmo sendo arbitrário, vem ao encontro de um dos pontos centrais da passagem: Jesus conforta os discípulos. Quem conforta oferece proteção, morada; oferece chão firme para que a outra pessoa encontre sentido para sua existência e sinta-se apta a continuar trilhando o caminho. O trecho imediatamente seguinte (Jo 14.16ss) traz a promessa do envio de um outro Consolador.
Jesus usa termos concretos para tentar esclarecer aos discípulos os acontecimentos que se seguiriam, como “casa, moradas, caminho”. Mesmo assim, eles não o compreendem. “O fim do tempo de Jesus na terra é como o início: um mistério envolto na linguagem do mito e do símbolo” (Braaten; Jenson, 2002, p. 536).
O episódio da ascensão de Jesus é precedido por um período de 40 dias após sua ressurreição. O significado simbólico do número 40 já estava firmemente
estabelecido na história bíblica da salvação. Podemos lembrar os 40 dias e as 40 noites que Moisés passou no topo da montanha (Êx 24.18), os 40 anos da peregrinação de Israel no deserto, os 40 dias de jejum e tentações que Jesus passou no deserto. Esses “40 dias entre a ressurreição e a ascensão foram um tempo em que o Cristo ressurreto e exaltado se revelou às pessoas que ainda tinham que viver e pregar a mensagem sob as velhas condições deste mundo de transitoriedade e morte” (Braaten; Jenson, 2002, p. 535).
A sequência do trecho de João 14.1-12 pode ser assim entendida: Jesus vai para o Pai, para lá preparar morada para os seus seguidores (v. 1-4). O caminho para essa morada é o próprio Jesus (v. 5-7) e nele é possível encontrar o próprio Deus (v. 8-11).
Uma aproximação despretensiosa ao texto permite observar que:
v. 1: Jesus conhece o que se passa no coração de seus discípulos, por isso os consola e exorta para a fé, com o imperativo “crede”.
v. 2: Jesus assegura aos seus seguidores que conhece qual é o melhor lugar para eles estarem: debaixo do mesmo “teto” de Deus. Ele vai adiante para preparar esse lugar. O teólogo Karl Barth designou a ascensão de Jesus como “o regresso ao lar do Filho que tinha viajado a um país distante, um regresso à casa do Pai” (Braaten; Jenson, 2002, p. 536). A expressão “muitas moradas” e “vou preparar-vos lugar” também será trazida pelo apóstolo Paulo, de forma semelhante, como em 2 Coríntios 5.8 “habitar com o Senhor”e em 1 Tessalonicenses 4.17 “estaremos para sempre com o Senhor”.
v. 3: A expressão de Jesus “voltarei” aponta já para seu retorno, que é e será a conclusão do evento da ascensão. Esse evento “preparou o caminho para o tempo da Igreja, situado entre a ascensão de Cristo e seu retorno no fim do tempo” (Braaten; Jenson, 2002, p. 535ss).
v. 4: Jesus pressupõe que os discípulos saibam o caminho, já que nada lhes ocultara durante o tempo em que andaram lado a lado. Lutero interpreta essa fala de Jesus como quem lhes diz: “Agora, visto que me conhecem, também conhecem o caminho e sabem tudo o que devem saber” (OSel 11,70). Mas a dúvida de Tomé, no v. 5, mostra que eles não detêm esse conhecimento e ainda estão com os olhos fixos nas coisas deste mundo, pensando num caminho terreno.
v. 6: A afirmação tripla de Jesus “Eu sou” (ego eimi) deixa clara qual é a sua posição: ele é o caminho porque revela a verdade de Deus e, por meio disso, ele é e concede vida. No texto original grego, os substantivos caminho, verdade e vida estão todos precedidos pelo artigo defi nido, ou seja: Jesus não é um dos caminhos, mas sim o caminho; ele não é uma verdade, mas a verdade; ele não é uma opção de vida, mas a vida. A respeito de Jesus como caminho, Lutero impele a que “não se pense em um caminho ou em uma estrada onde se pisa e anda com os pés, mas entenda-se que se trata de um caminho onde se caminha com a fé que está no coração, que se apega tão somente a Cristo, o Senhor ” (OSel 11,75).
Nos versos 7 a 11, a resposta de Jesus à pergunta de Filipe aponta para o relacionamento intrínseco e sem igual que existe entre ele, Jesus e o Pai. Quem
vê e conhece um também vê e conhece o outro. O v. 12 deixa claro que a obra, a atuação de Jesus tem e terá continuidade
por meio das pessoas que o seguem, sem se prender a um local ou a um tempo específico (Holze, 1977, p. 61). Braaten afirma que “a ascensão marcou o início de algo novo na história […] A ausência de Cristo segundo a carne (kata sarka) abriu a possibilidade de uma nova forma de presença, segundo o Espírito (kata pneuma)”.
3. Meditação
Um desafio para a pregação sobre João 14.1-12 por ocasião da Ascensão do Senhor é deixar claro que esta “não foi uma viagem espacial ou interplanetária. Céu é espaço, mas não o espaço sideral. Céu é o espaço ocupado por Deus. Onde Deus se faz presente e exerce o domínio, ali está o céu” (Voigt, 2014, p. 45). O evento da ascensão quer deixar claro para a comunidade (a daquele tempo e a de hoje) qual é a posição de Jesus. Ele coparticipa do poder de Deus Pai e da sua presença. Não está longe, mas perto; ele não foi embora, mas está presente.
A pergunta pelo “céu” pode provocar as pessoas a saírem de um eventual caminho já trilhado e a indagarem: Onde fica o céu? O que significa “Pai nosso que estás nos céus”? Como experimentar o céu aqui e agora?
O texto pode suscitar nos ouvintes sentimentos com os quais se identificam. A insegurança dos discípulos é plausível, como a de uma criança que se agarra à mãe quando tem que se separar, mesmo que seja por um breve tempo, e ela lhe diz: “Meu filho, desta vez não posso levá-lo comigo. Mas logo eu volto”. Possível também é a identificação com alguma situação pessoal de despedida. Uma pessoa de referência está indo embora, as demais ficam para trás, com seus medos e dúvidas: O que virá agora? Individual e comunitariamente, situações como essa não são raras. E então, como seguir adiante?
A despedida de Jesus é diferente. Aqui, um fim é, ao mesmo tempo, um começo. Uma porta se fecha, mas outra se abre. Esse “ir embora” de Jesus acontece em benefício daquelas pessoas que ficam, mesmo que ainda não o compreendam. Elas recebem de Jesus a promessa de que a obra que foi iniciada terá continuidade e ficam com o desafio de esperar ativamente pela sua volta. Nesse sentido, o filósofo Mário Sérgio Cortella disse, numa entrevista a respeito do seu livro “Sobre a Esperança”, em 2013: “É urgente ter a prática da Esperança Ativa. Em outras palavras, aquela que vem do verbo esperançar e não do verbo esperar. Esperançar é ir atrás, é buscar, é persistir, enquanto que esperar é apenas aguardar, ficar na expectativa imóvel”.
As falas de Jesus para que seus discípulos querem libertá-los do medo e capacitá-los para dar continuidade à obra, também hoje: “A ascensão inicia uma nova realidade para Jesus e um novo momento para as pessoas que o seguem. O que caracteriza esse momento não é a ausência de Jesus, mas o compromisso com o testemunho. Agora, os discípulos e as discípulas têm a tarefa de continuar a missão dele (Mateus 28.18-20). Esse compromisso permanece atual, assim como a presença de Cristo é uma realidade hoje. Enquanto vivia, Jesus estava limitado pelo seu corpo. A partir da ascensão, ele pode estar em todos os lugares. Experimentamos sua presença nos sacramentos, especialmente na Ceia do Senhor, nos encontros em seu nome […] e em cada atitude de serviço e de amor ao próximo” (Voigt, 2014, p. 46).
Cada pessoa crente sabe que está debaixo do mesmo céu que as demais e é chamada a “caminhar com os pés firmes neste chão”, pois “enquanto falta tanto pão não posso me acovardar,” conforme a canção Resistência, de Rodolfo G. Neto. A pessoa cristã sabe, pela fé, que já tem uma morada defi nitiva. Não precisa ter medo, pois Jesus está perto. Acima de tudo, ela pode ter esperança, pois Deus tem a última palavra. Assim, o céu pode ser entendido como “Deus, aquele que está e estará ao meu lado, onde quer que seja” (Holze, 1997, p. 60).
Outro aspecto relevante a ser abordado é a falta de parâmetros do mundo atual, ou o reverso disso, o excesso de opções de caminhos que querem ser trilhados e verdades que querem ser cridas, cada qual querendo apontar o caminho mais fácil, rápido e agradável para se chegar a Deus.
A pergunta pelo caminho para chegar a esse alvo já foi feita pelos discípulos, na figura de Tomé. Ele incorpora a pessoa que, nos dias de hoje, não sairia de casa sem um mapa ou um aplicativo de localização. E faz a pergunta mais importante de sua vida, que vale também para as pessoas de hoje: Como podemos saber o caminho que nos conduz com segurança até o alvo? Em resposta, ele não recebeu orientações complicadas, como as que dão as pessoas que querem o indicar o caminho aos perdidos numa cidade estranha e que as deixam ainda mais confusas. Jesus é certeiro ao dizer: Siga em frente! Eu sou o caminho!
4. Imagens para a prédica
Como introdução à prédica, sugiro tematizar o labirinto como símbolo do caminho da vida. Pode ser a projeção ampliada da imagem de um labirinto. Em grupos menores, pode ser distribuída para cada pessoa a ilustração de um labirinto e uma caneta, desafiando-a, em alguns minutos, a traçar o caminho até o centro deste. Há modelos na internet. Uma sugestão de texto motivador: O labirinto remete à contemplação, à avaliação, ao planejamento do caminho da vida. Há aqueles desenhados no chão de alguma igreja ou um labirinto de plantas vivas. Há aqueles em que a pessoa segue até certo ponto e tem que retornar porque a passagem está bloqueada – é hora de rever decisões. Há também o caminho que leva a um alvo certo, sem obstáculos; basta perseverança para seguir em frente, mesmo sem ter a chegada diante dos olhos. Ao percorrer o caminho do início ao fim, com paciência, lembre-se de seu caminho da vida, das voltas e reviravoltas, das curvas suaves, tranquilas e acentuadas. No caminho da vida, tenha a certeza de que não está só. Há pessoas que caminham ao seu lado e, acima de tudo, há a companhia de Deus, em Jesus Cristo, que traz ânimo pela força do Espírito Santo. Jesus Cristo é, ao mesmo tempo, o alvo e o próprio caminho. A pergunta pelo caminho para chegar a esse alvo já foi feita por seus discípulos (aqui pode seguir a leitura do texto). O labirinto quer ser um incentivo e um convite para cada pessoa trilhar seu caminho, em alegrias e em dificuldades, em linhas retas ou curvas. Mas não sozinha e, sim, sabendo que Deus a conduz e, em Cristo, é o próprio caminho (aqui caberia resgatar, ainda que brevemente, o significado da palavra sínodo – “caminhar juntos”). A certeza de que alcançaremos nosso alvo último nos motiva a continuar andando, lado a lado.
5. Subsídios litúrgicos
Saudação inicial: O labirinto é um símbolo antigo e remete à contemplação e ao planejamento do caminho da vida. Há labirintos em que se segue até certo ponto e pode ser que se tenha que retornar, porque a passagem está bloqueada – é hora de rever decisões. Há também aquele que leva a um alvo certo, basta perseverança para seguir em frente, mesmo sem ter a chegada diante dos olhos. Quantas vezes somos confrontados com dificuldades em nossa vida privada, na família, no trabalho e também em comunidade! Aí surgem perguntas: quanto ainda vou ter que caminhar? É o caminho certo? Quanta força ainda tenho? No início não era melhor? Mas seguimos adiante. Mesmo que a vida seja por vezes permeada por dúvidas ou medo da solidão, um labirinto quer ser um incentivo para trilharmos o caminho. Mas não sozinhos, e sim sabendo que Deus nos conduz e que ele, em Jesus Cristo, é o próprio caminho. Junto conosco andam outras pessoas. Jesus diz: Segue em frente, um passo após o outro! Eu estou contigo e, mais que isso, eu sou o caminho!
Oração: Senhor, nosso Deus: Jesus nos assegura que não estamos sozinhos, mesmo quando a vida se assemelha a um labirinto no qual não vemos o centro. Cristo é o caminho. Nós cremos que tu és o centro de toda a vida e, por isso, pedimos: Fortalece nossa fé quando duvidamos, dá-nos um coração aberto para ti e para quem caminha conosco. Anima-nos a ser pessoas dispostas a indicar e a ser caminho, a exemplo de Cristo, em nome do qual oramos. Amém.
Bênção: Vamos em frente, passo a passo, com a bênção de Deus. Que ele te guarde e te mantenha firme na fé e no caminho que leva à vida eterna. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Bibliografia
BRAATEN, Carl E. e JENSON, Robert W. Dogmática Cristã. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2002. v. 1.
HOLZE, Henry. Johannes 14, 1-12: Der Himmel ist offen. In: KRUSCHE, Peter et alii. Predigtstudien zur Perikopenreihe V. Stuttgart; Berlin: Kreuz, 1977.
LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Canoas: Ulbra, 2010. v. 11. [OSel].
VOIGT, Emilio. Quem somos nós? Princípios da Fé Cristã e da Confessionalidade Luterana. São Leopoldo: Sinodal, 2014.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).