O caminho e a forma de caminhar
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: João 14.1-14
Leituras: Atos 7.55-60 e 1 Pedro 2.2-10
Autoria: Gerson Acker
Data Litúrgica: 5° Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 10/05/2020
1. Introdução
Não sei por quais caminhos Deus me conduz,
mas conheço bem meu guia.
Martim Lutero
O tempo pós-pascal é um convite para a comunidade reunida em culto experimentar as maneiras como o Cristo ressurreto se apresenta. No Evangelho de João 14, texto previsto para a pregação, Jesus se apresenta como “o caminho” a ser seguido. Em Atos 7.55-60, nos é relatado o apedrejamento de Estevão, que sofre tal condenação por confessar Jesus como “O caminho” e não apostatar de sua fé. A perícope de 1 Pedro 2, fundamento do sacerdócio geral de todas as pessoas crentes, testifica em exemplos bem concretos o que significa seguir o caminho de Cristo. Queremos experimentar, ao longo deste subsídio, homilético as nuanças do Cristo como “O caminho” e como o guia da vida de fé.
2. Exegese
A segunda metade do Evangelho de João é intitulada “o livro da glória”, pois deixa a temática do ministério público de Jesus com seus sinais reveladores e passa para o período de sua glorificação, isto é, sua morte e ressurreição, na qual a glória e a presença de Deus se manifestarão. Nesse bloco, encontramos os discursos de despedida (caps. 13 a 17), a narrativa da paixão (caps. 18 a 19), a ressurreição (cap. 20) e o epílogo (cap. 21). A perícope de João 14.1-14 está dentro do bloco dos “discursos de despedida”. Ao que tudo indica, esse texto faz parte do discurso iniciado em 13.31 e que só termina em 14.31.
O discurso de despedida de Jesus inicia com uma palavra de conforto e confiança. A ideia de ficar sem o Messias desperta medo nos discípulos. Por isso Jesus quer acalmar seus corações. O termo “coração” é empregado como o centro dos sentimentos e da fé, da vida espiritual mesma (Rm 10.9-10). A ausência de Jesus não deve abalar a vida de fé de seus seguidores e seguidoras. Nesse processo doloroso, crer no Pai e no Filho é fundamental para a superação desse “vazio”.
Jesus insiste na necessidade da fé, afirmando que vai preparar um lugar para eles e voltará para levá-los com ele (v. 3). O termo “moradas” é uma tradução melhor do que “mansões” que encontramos em algumas traduções, posto não haver aqui qualquer indicação de luxo e, sim, aponta a amplitude da casa de Deus. Por um lado, “as moradas” podem indicar uma promessa de parousia, ou seja, a volta de Jesus que levaria os fiéis a um paraíso futuro e desconhecido. A igreja primitiva esperava por essa volta com ardente esperança (1Ts 4.16-18). Por outro lado, se tomarmos o capítulo 14 todo como referência, as tais “moradas” que Jesus vai preparar não se localizam em algum lugar geográfico, mas serão encontradas dentro dos próprios fiéis.
O discurso de Jesus é interrompido duas vezes, primeiramente por Tomé (v. 5) e, em seguida, por Filipe (v. 8). Tais intervenções oferecem a oportunidade para maiores explicações, ao passo que revelam também a incapacidade dos discípulos de compreenderem o mistério de Deus, ou seja, apesar de terem convivido com Jesus, eles não o compreendem.
A incompreensão dos discípulos tem mão dupla: não entendem como a partida de Jesus seja um ir ao Pai e não entendem como o Cristo pode ser a via que eles devem percorrer para chegar à mesma meta. O discurso pretende ajudar os discípulos a reconhecer seus motivos de fé e coragem. Portanto o tema central do discurso não é a partida (morte-ressurreição) de Jesus, mas a situação dos discípulos que permanecem.
Jesus afirma Eu sou o caminho, a verdade e a vida (v. 6a). Diferentemente dos evangelhos sinóticos em que encontramos parábolas, ditos e discussões, no quarto evangelho, as palavras de Jesus são preponderantemente discursos continuados ou dialogados. Esses discursos frequentemente culminam na fórmula ego-eimi (Eu sou), reproduzindo o autotestemunho de Jesus para a humanidade.
As palavras figuradas (caminho, verdade, vida) não são nem comparações nem metáforas. É discurso autêntico. À primeira vista, parece que se deveria entender assim: Jesus é como a estrada que conduz à verdade e à vida. No entanto, o verso 6b: ninguém vem ao Pai senão por mim, coloca maior ênfase sobre o vocábulo caminho, não em vida ou verdade. Logo, a vida e a verdade não são propriamente a meta para a qual Jesus conduz, mas a razão que lhe permite proclamar-se “O caminho”. Nos escritos de Paulo, por exemplo, é Deus que prevalece como sujeito do caminho de Cristo. Ressurreição e exaltação, respectivamente, são interferência escatológica de Deus no mundo. Segundo Goppelt, o “clímax dessa intervenção, ou seja, do caminho de Cristo é, segundo Paulo, a cruz” (GOPPELT, 1983).
Tomé pergunta: Como poderíamos saber o caminho?. A resposta de Jesus fala de uma fé que não se baseia em métodos ou procedimentos, mas em uma pessoa. O próprio Jesus é “O caminho”. Por meio de Jesus e nele chegamos ao Pai, conhecemos o Pai, vemos o Pai. Filipe se reveza com Tomé ao perguntar, não se dando conta de que Jesus já lhe respondeu, afirmando ser o caminho, isto é, o lugar onde o Pai se manifesta. Jesus responde, certamente decepcionado: Eu estou convosco há tanto tempo e não me conheceste? Aquele que me vê, vê ao Pai (v. 9). E Jesus segue explicando sua união perfeita com o Pai: suas palavras e suas obras são do Pai (v. 10-11).
No Evangelho de João, por diversas vezes, encontramos a declaração da unidade essencial existente entre Pai e Filho, de tal modo que todas as obras e afirmativas sobre o Filho podem ser reputadas como representantes da vontade do Pai, servindo de provas de que o Pai estava realizando seu querer por meio do Filho (Jo 5.19; 8.39; 10.30,38).
No término da perícope, a expressão em verdade, em verdade salienta a importância, a autoridade e a certeza daquilo que é afirmado em seguida. Só em Jesus é que se pode ter a experiência do Pai. As palavras, a existência e as obras de Jesus são clara expressão do próprio Deus. Ao afirmar que quem crer fará obras ainda maiores, parece que o evangelista João pensa no percurso missionário dos primeiros tempos apostólicos, ou talvez na experiência cristã de cada indivíduo, se entendermos a expressão pedir algo em meu nome como uma relação de proximidade e intimidade com Cristo por meio da oração.
3. Meditação
Jesus sabe que a hora de sua morte está próxima. Desde o início do seu ministério, ele foi muito consequente em seus atos. Jesus sabia que suas atitudes despertavam a ira e o ódio dos poderosos de seu tempo e que mais cedo ou mais tarde, essas autoridades arranjariam alguma forma de matá-lo. Mas antes da morte, Jesus mais uma vez se preocupa com seus discípulos. Jesus precisa acalmar os corações aflitos e apontar-lhes um caminho e uma forma de caminhar. Nós ainda hoje precisamos dessas orientações do Mestre.
Jesus aponta um caminho: ele mesmo é “O caminho” que nos leva ao Pai. Quem conhece Jesus, conhece Deus. Jesus é misericordioso. Deus é misericordioso. Jesus ama incondicionalmente cada um de nós. Deus ama incondicionalmente cada um de nós. Deus e Jesus são um só! Precisamos, como parte da missão da igreja, apontar para esse caminho. Pessoas andam perdidas e precisam da nossa ajuda para encontrar um rumo em suas vidas.
Jesus aponta uma forma de caminhar: ele se preocupava com as pessoas de forma integral. Conversava, curava, dava de comer aos famintos e de beber aos sedentos. Andava com prostitutas, fariseus, pobres, leprosos, gente de má fama; a esses não recriminava, mas amava incondicionalmente. Caminhar com Jesus significa levar ao extremo a compreensão de amor ao próximo. Significa caminhar ao lado das pessoas, compartilhando cargas, partilhando alegrias e pesares. A vida com Jesus é dinâmica, movimentada, cheia de surpresas. Por outro lado, também é uma vida com todas as características dos caminhos, isto é, com altos e baixos, com dificuldades, com momentos de calma e segurança, mas que finalmente nos levará ao destino certo.
A caminhada cristã não é livre de obstáculos. Diante desses não podemos nos esquivar. A Bíblia está repleta de relatos de homens e mulheres que, ao optarem seguir o caminho de Deus, não tiveram uma caminhada fácil. O próprio Jesus seguiu seu caminho rumo a Jerusalém, apesar do horizonte da cruz. Penso que uma das premissas evangélicas mais sublimes e certas é de que toda caminhada cristã genuína passa obrigatoriamente pela cruz. É impossível caminhar com e como Jesus sem atritar com o sistema opressor que ostenta seus caminhos tortuosos, suas fake news e seus sinais de morte. O que nos sustenta nessa caminhada? A certeza de que não caminhamos sozinhos. O próprio Cristo caminha conosco. Esse é o testemunho de fé nas palavras de Lutero: “Não sei por quais caminhos Deus me conduz, mas conheço bem meu guia”.
4. Imagens para a prédica
Escolher o caminho de Cristo e não se desviar dele apesar dos obstáculos é um desafio diário que nos compromete em palavras, pensamentos e ações. Existem muitos testemunhos de fé que podem nos inspirar na caminhada cristã. Lembro-me de Malala Yousafzai, adolescente paquistanesa de 11 anos, que em 2009 começou a se manifestar contra a proibição de estudar. Ela continuou a frequentar a escola apesar das ameaças do Talibã.
Em 2012, aos 14 anos, Malala levou um tiro no rosto quando voltava da escola. Um soldado talibã mascarado entrou no ônibus armado com um rifle e perguntou: “Quem é Malala? Digam ou atiro em todo mundo”. Malala se identificou e o homem atirou na cabeça dela na frente de todos os passageiros. A menina entrou em coma e quase morreu. Quase que como milagre sobreviveu. Hoje autora de um best-seller, Malala ainda fala sobre a violência e a opressão contra as mulheres em países mulçumanos e defende a educação para todas as pessoas. Em 2014, recebeu o prêmio Nobel da Paz por seus esforços. Teria sido fácil e cômodo para Malala deixar de lado esse caminho. Mas ela decidiu trilhá-lo, mesmo correndo riscos. O caminho de Malala é muito parecido ao caminho do Cristo: nessa caminhada há cruz, mas também graça.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados
Amado Deus, quantas vezes enveredamos por caminhos tortuosos e nos perdemos dentro do labirinto do nosso orgulho e egoísmo. Mostra-nos o caminho certo! Quantas vezes somos portadores de mentiras! Quantas vezes caluniamos e falamos mal de nosso próximo. Purifica nosso pensar e falar! Confessamos-te, Senhor, nossos pecados e nossa tendência de fomentar sinais de morte. Liberta–nos dessa carga e ajuda-nos a caminhar com mais leveza. Por Cristo: o caminho, a verdade e a vida. Amém.
Kyrie eleison
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
O poeta Oswald de Andrade transforma em poesia a difícil experiência das “pedras no caminho”. Irmãos e irmãs caem, tropeçam e se machucam nas “pedras” deste mundo. Muitos se cansam e desistem da caminhada porque as pedras se tornam intransponíveis. Em solidariedade aos que sofrem, cantemos: (após a costura litúrgica, a comunidade canta o Kyrie de sua escolha).
Oração do dia
Bondoso Deus, livra-nos da fé simplória de que na vida tudo tem que dar certo. Que os reveses, as dificuldades e os tropeços no caminho sejam para o nosso crescimento. Dá-nos forças para caminhar seguindo os passos de Cristo. Que tua Palavra seja a bússola que nos leva a ti. Por Cristo, que contigo e o Santo Espírito vive e reina eternamente. Amém.
Bibliografia
BERGANT, Diane; KARRIS, Robert (Orgs.). Comentário Bíblico. São Paulo: Loyola, 1999. v. 3.
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1983. v. 1.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).