Prédica: João 14.15-19
Autores: Valdemar Lückemeyer e Eckhard Krol
Data Litúrgica: 20º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 27/05/1990
Proclamar Libertação – Volume: XV
I — Contexto
A perícope está inserida no grande bloco do discurso de despedida que se estende nos capítulos 13 a 17. Os discípulos estão tristes e abatidos, porque Jesus está se despedindo e, conseqüentemente, eles ficarão sozinhos. Diante disso, Jesus procura confortá-los e animá-los, falando-lhes a respeito da necessidade de ele voltar ao Pai. Em seu lugar, no entanto, o Pai enviará o Consolador (14.16 e 16.7), o outro Consolador, o Espírito da Verdade (14.17), que os consolará e guiará a toda a verdade (16.13). Eles, pois, não ficarão sozinhos, tampouco órfãos (14.18); Deus, o Pai, permanecerá com eles e os guardará (17.11).
Pode-se observar que há um constante entrelaçamento de assuntos que se reflete nestes 5 capítulos do discurso de despedida. Assim, p. ex., aparece por diversas vezes a promessa de Jesus de enviar outro apoio; também o apelo à unidade dos discípulos, o incentivo à comunhão dos seus, aparecem sempre, de novo, cruzando-se com palavras de estímulo à prática do amor. Os assuntos se repetem ao longo dos capítulos. Por isso é necessário que a perícope seja lida à luz de todo o Ev. de João, tendo sempre como pano de fundo os grandes temas amor ao próximo (= irmãos de fé), o poder do mundo e das trevas, o envio do Filho e sua unidade com o Pai (= cristologia) e outros. Este Jesus, que se despede e promete outro apoio, é o mesmo que revela o Pai e que é o ‘Verbo que se fez carne e habitou entre nós (1.14).
II — Delimitação do texto
É difícil achar bons argumentos para defender a delimitação proposta, isto é, vv. 15-19. Não há grandes mudanças ou rupturas nem antes, nem após estes versículos. Por isso é possível incluir os vv. 20-26, por trazerem novamente assuntos já referidos e mencionados anteriormente. Mas este mesmo argumento vale para não incluí-los. A dificuldade, parece, está no fato de que, neste bloco das palavras de despedida, os assuntos se repetem e se entrelaçam constantemente. Na elaboração de subsídios para o estudo e pregação desta perícope vamos nos ater aos vv. 15a 19.
Existem nestes versículos pequenas unidades, que assim podem ser estruturadas:
V. 15-17 = a promessa do envio do apoio.
V. 18-19 = a promessa da volta de Jesus.
A pregação desta perícope está prevista para o domingo Exaudi, o domingo entre Ascensão e Pentecoste. A comunidade cristã celebrou há poucos dias a ascensão do seu Senhor e agora, enquanto aguarda a sua volta, clama por proteção, amparo e fortalecimento de Deus, o Pai.
Ill — Comentário exegético
V. 15: AGAPAN, amar, é o termo central no Ev. de João (bem como de seus outros escritos), pois ê a descrição completa da nova vida dos discípulos. Para o evangelista, fé não consiste apenas numa postura de vida que aguarda uma nova realidade no futuro, mas é um posicionamento que já agora se manifesta expressa e claramente. Isto acontece na nova conduta dos discípulos na vivência do amor. Fé é amor aos irmãos, pois amor, amor aos irmãos é o conteúdo da ação (Wendland, p. 111). O Evangelho de João tem três compreensões distintas, porém entrelaçadas, do termo amor: a) amor de Deus ao mundo (3.16); b) amor de Jesus Cristo em favor dos seus (10.11; 15.13); c) amor do discípulo, como alguém nascido de Deus, para com os seus irmãos (Wendland, ibid.).
O grande mandamento, que também é o novo mandamento, do discípulo de Jesus Cristo, nasce do convívio com o Mestre e nele tem toda a sua fundamentação: que vos ameis, assim como eu vos amei (13.34). Jesus veio trazer nova vida ao mundo. Ele é a vida (l 1.25) proposta por Deus.
Interessante de se observar é que João, quando fala do amor aos irmãos, se refere apenas aos irmãos de fé e não aos de fora. De um amor universal ao próximo, dirigido a qualquer um, não se fala em João (Wendland).
ENTOLE, o mandamento: Quem guarda as palavras de Jesus, guarda o(s) seu(s) mandamento(s) (cf. 14.15 e 14.23). O conteúdo deste mandamento é o amor mútuo de uns com os outros. Quem ama, obedece à lei (= mandamento) e quem obedece à lei, ama. Esta é a nova vida de quem se sente amado e foi nascido de novo (é necessário frisar o passivo). Do recebimento do amor, surge a obrigação para amar (Bultmann, Theologie des NT, p. 433). Isto podemos ver de forma bem clara na parábola ou no exemplo da videira e dos ramos. Para o discípulo não há outra alternativa: ele produzirá ao natural os seus frutos, ou seja, ele vai amar, cumprir o mandamento, espontânea e livremente. A vida do discípulo, renascido/despertado vocacionado por Deus, será uma vida no amor, em comunhão com Cristo. Não há vida com Cristo e andar nas trevas, viver sem amor; os dois se excluem.
V. 16: PARACLETOS, o auxiliador, o consolador, o que dá apoio (não advogado ou defensor). No Ev. de João o Espírito que os discípulos recebem após a ascensão recebe o nome de parácleto. Em algumas passagens é qualificado como Espírito da Verdade (14.17) ou Espírito Santo (14.26). Para João este Espírito dá força à comunidade, para ela entender e testemunhar a Jesus Cristo (Bultmann, p. 441). O parácleto não é um outro espírito, mas é o próprio Jesus Cristo que vem aos seus.
V. 17: PNEUMA, Espírito. Quando o evangelista João fala do Espírito, ele não lembra suas manifestações extraordinárias em fases de êxtase, como por exemplo, a glossolalia. Antes descreve o Espírito como uma maneira de ser do próprio Deus (João 4.24) e como continuidade da revelação dele que iniciou em Jesus. V. 16 fala do Espírito como o outro (!) Consolador, subentendendo que Jesus foi o primeiro. No Espírito, aqui chamado de consolador, Jesus mesmo volta. Continua no e pelo Espírito o que Jesus Cristo iniciou: Ele é o totalmente diferente do mundo, a ponto de não ser entendido por este. Ele parte de Deus como Jesus e dele dá testemunho. Ele denuncia e revela a culpa e perversão do mundo. Ele é o poder da pregação cristã e faz reconhecer Jesus como Salvador.
KOSMOS, mundo. O anúncio de João consiste na mensagem de que Deus amou ao mundo de tal maneira, que enviou seu ‘único’ filho — não para condená-lo, mas para salvá-lo (Bultmann, p. 367). Este mundo, amado por Deus e sobre o qual pesa o juízo, tem o seu específico, a saber, que está distante de Deus e age contra a sua vontade. Por isso ele se apresenta como mundo de trevas, mundo da mentira. Mas é justamente este mundo que é criação de Deus e é o lugar onde Deus se revela para chamar as pessoas à luz. No antagonismo de luz e trevas, as pessoas são chamadas à decisão a favor da luz, que lhes proporciona a vida. O mundo não precisa ficar assim como está. Pode voltar a ser mundo de Deus. Quem o possibilita é Jesus Cristo. (Brakemeier, Observações introdutórias ref. ao Ev. de João, p. 13).
V. 19: ZOE, vida. Esta palavra se refere à existência humana, bem no sentido físico, biológico, e a tudo que é essencial para ela. Fala de trabalho, lazer, dormir, comer, beber, amar, etc. (veja a explicação de Lutero para o 1o Artigo do Credo no Catecismo Menor). Como esta vida depende de Deus de muitas maneiras, como ela tem a sua mais profunda origem em Deus e na vontade divina de criar e manter vida, ela só pode ser experimentada em plenitude quando vivida em harmonia com a finalidade e as orientações do autor da vida. O ser humano, portanto, não obtém a vida plena, a vida eterna como resultado da sua pesquisa científica, organização social, seu avanço tecnológico ou sucesso econômico, mas, sim, a recebe como doação, herança, dádiva gratuita. O Ev. de João acentua a presença desta vida na pessoa de Jesus de Nazaré, que traz consigo a força criadora de Deus. O envolvimento com este Jesus, o portador da vida, na fé (= cumprimento dos mandamentos dele no amor), dá participação na vida, no sentido mais amplo da palavra. Deus garante a vida e, pela ação do Espírito Santo, anima a comunidade cristã a persistir na luta por vida em todo e qualquer sentido.
IV — Meditação
O texto se dirige ao grupo de discípulos que está numa situação angustiante e, por não ver perspectivas para o seu futuro, tem medo. Como continuar sozinhos, visto que o Senhor não estará mais perto, ao lado? Como continuar, se não se tem certeza de que haverá apoio e segurança? A falta de perspectiva, via de regra, gera uma situação angustiante. Mas, realmente é esta a situação dos discípulos, da comunidade cristã? A angústia se faz sentir quando refletimos sobre nossa força e percebemos que não somos tão capazes como deveríamos! Ela também se faz sentir quando constatamos que somos poucos diante de problemas enormes — a ameaça é grande, e poucos apenas se sentem motivados e chamados a entrar na luta!
Jesus não repreende os seus discípulos pelo fato de estarem tristes, por acharem que vão ficar sozinhos. Ele os ensina e os anima, dizendo que: a) Ele vai permanecer com eles, no Espírito Santo. A comunidade de Jesus Cristo, pois, não está sozinha e tampouco precisa agir sozinha. Inclusive a força para enfrentar adversidades não provém dela mesma (esta é fraca e cambaleante), mas é o Espírito da Verdade que a acompanha e impulsiona.
b) Os seus são chamados a praticar os mandamentos = o amor. A comunidade cristã vive e espera pelo seu Senhor amando. E não porque isto lhe convém, por ser interessante, mas por incumbência do seu Senhor. Ela espera agindo! Discípulos de Jesus Cristo aguardam a plenitude dos tempos agindo; a sua fé se manifesta no amor praticado, vivido e exercitado. Quem não ama, não crê e, portanto, não espera pelo Senhor.
A comunidade vê e sabe qual é a sua tarefa nos dias de hoje? Ela vê tarefas? Ela se sente impelida pelo Espírito Santo a agir ou apenas quer ser atendida, guardada e protegida?
A vida dos discípulos, isto é, da comunidade provêm de Deus. Ele quer os seus discípulos agindo e cumprindo os seus mandamentos, sabendo-se amparados e confortados por Ele que está presente, que vive!
O Espírito da Verdade, que é santo porque vem de Deus, não aceita e não se conforma com a mentira! O mundo vive na mentira; gosta de mentira; sobrevive na e pela mentira. Mas a mentira leva à morte! Ela afasta de Deus. Por isso discípulos de Jesus Cristo são guiados pelo Espírito da Verdade, que também dá coragem e discernimento para ver como e onde agir.
Em que situações de angústia e medo é sufocado e desaparece o amor aos irmãos? Jesus não permitiu que adversidades sufocassem o amor, mas amou sempre, até o fim!
V — Pistas para a prédica
O lugar litúrgico deste texto — domingo Exaudi é o último antes de Pentecoste — faz refletir sobre a nossa esperança pela presença e força de Deus em nosso meio. Para não distorcer a intenção básica do texto, que é a de erguer, animar, equipar, alegrar e encorajar a comunidade, o pregador deve tomar cuidado para realmente pregar evangelho, no sentido mais nobre da palavra. Quem sabe, deve até EVITAR falar muito em dever, obrigação, compromisso para, primordialmente (não exclusivamente!), falar das novas perspectivas, forcas, chances, futuro bom, horizontes abertos, com os quais o cristão, por vontade divina, pode e deve contar.
Posso imaginar que o pregador inicialmente retrate a situação existencial dos discípulos de Jesus, antes da sua crucificação e/ou a situação da comunidade de João (perseguição, fraqueza, situação minoritária, etc.). Deve fazer isso de tal modo que a comunidade descubra semelhanças com a sua própria situação de hoje. Surge então a pergunta: há razão para cultivar esperanças? Poder-se-ia continuar falando das (im)possibilidades de esperar hoje! Há diversos tipos de esperanças: esperança confusa e sem perfil claro (esperar só por esperar), esperança à toa, esperança por coisas próximas, concretas, precisas; a esperança lúcida, que sabe o que espera. De que tipo é a esperança do cristão? Parece-me que agora se podem anunciar três aspectos do evangelho contidos no texto.
1. A base da esperança cristã não reside e não precisa residir no cristão, porque está irrevogavelmente posta e garantida na vontade de Deus Pai, de continuar no Espírito o que em Jesus iniciou: Deus nos garante forças, coragem, sabedoria, orientação e futuro. Com isso, a esperança cristã não depende mais dos resultados favoráveis ou desfavoráveis de uma análise da situação.
2. A comunidade cristã não espera tudo isso de um futuro vago e distante. Esta seria uma esperança que não mudaria muito o presente! O cristão pode ouvir: em breve (v. 19!). Após Páscoa e Pentecoste o cristão pode saber que este futuro já o alcançou através de pequenos sinais do Reino. Seria bom o pregador falar de tais sinais no ambiente da comunidade.
3. Se assim for, que a base da esperança cristã está garantida e próxima, então, a única forma cabível de viver esta esperança é na ação desejada por Jesus Cristo, ou seja, no amor entre os irmãos. A esperança cristã se realiza no agir. Muitos exemplos do cotidiano provam que esperanças seguras sempre se tornam ativas. Como se espera no Advento, no noivado, numa gravidez?
Desnecessário dizer que, assim, a pregação facilmente pode encerrar com um casamento alegre (não forçado) para a ação concreta do amor. Não seria bom o pregador apontar para uma ou duas chances de atuação bem concretas no ambiente da comunidade local?
VI — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Misericordioso Deus, nosso Pai. Tu nos deste uma tarefa bem clara, e desta tarefa somos lembrados constantemente. De forma especial aqui hoje, neste culto, nos lembramos de que somos tua igreja e que, como tal, temos também uma responsabilidade. Mas tu nos conheces, Senhor, e sabes o quanto fracassamos — ainda nesta última semana. Cada um de nós agiu diversas vezes como se tu não existisses, querendo resolver tudo sozinho. E como tua comunidade fomos fracos e confusos: não nos organizamos para colocar em prática o teu amor. Queremos confessar-te esta nossa desorganização, também a nossa omissão, enfim o nosso pecado. Perdoa-nos, Senhor, quando te pedimos: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus e nosso Pai. As ofertas neste mundo são muitas e vêm sobre nós de forma tentadora. Há tantas vozes nos chamando; há tantos caminhos que se nos apresentam! Mas ajuda-nos, Senhor; continua nos ajudando. Ensina-nos e fala tu a nós! Queremos ouvir-te para que medo, angústia e tentação se afastem de nós! Dá-nos o teu Santo Espírito para que possamos te entender. Por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.
3. Oração final: Senhor, bondoso Deus e Pai. Queremos agradecer-te por não nos deixares sós em momento nenhum e por te dispores a caminhar conosco, ao nosso lado, orientando-nos e fortalecendo-nos com o teu Espírito Santo, o Espírito da Verdade. Como teus filhos e tuas filhas queremos te pedir, no encerramento deste culto:
Estejas com todos aqueles que estão atormentados e angustiados e que, por isso, não sabem mais adiante. Lembramo-nos especialmente dos doentes, dos que perderam o sentido da vida, dos pais que não sabem como continuar na educação de seus filhos, dos que estão endividados e não sabem como pagar, dos que não vêem nenhuma saída para a sua situação. Estejas com eles, Senhor, e usa-nos também como teus instrumentos para que possamos levar esperança e confiança a um e outro.
Fica com todos aqueles que, aqui na comunidade e também em outros lugares, lutam por melhores condições de vida para todos. Eles entenderam o que significa cumprir os teus mandamentos! Ajuda-nos para que nos coloquemos ao lado deles e que não desanimem nem desistam de lutar!
Fica com todos nós, Senhor, aumentando o nosso amor fraternal. Afasta, por isso, todo egoísmo que corrói nossas vidas e especialmente nossa comunhão. Acompanha-nos em todos os dias da nossa semana. Por Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador, que nos ensinou a orar dizendo: Pai nosso…
VII — Bibliografia
– BRAKEMEIER, G. Observações Introdutórias Referentes ao Evangelho de João, in: Proclamar Libertação, Vol. 8, São Leopoldo, 1982.
– BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes, in: Kritisch-exegetischer Kommentar über das NT, 19a edição, Göttingen, 1968.
– BULTMANN, R. Theologie des Neuen Testaments, 6a edição, Tübingen, 1968.
– STÄHLIN, W. Predigthilfen, Volume l, Kassel, 1958.
– VOIGT, G. Die bessere Gerechtigkeit, in: Homiletische Auslegung der Predigttexte, Reihe V. Göttingen, 1981.
– WENDLAND, H. D. Ethik des Neuen Testaments, In: Grundrisse zum Neuen Testament, NTD, Ergänzungsreihe 4, 1970.