Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: João 14.15-21
Leituras: Atos 17.22-31 e 1 Pedro 3.15-22
Autor: Acir Raymann
Data Litúrgica: 6º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 29/05/2011
1. As leituras do dia
A primeira leitura – Atos 17.22-31 – apresenta o apóstolo Paulo falando aos atenienses no Areópago, também chamado Monte de Marte, o deus da guerra. Seus ouvintes parecem ter conhecimento do Antigo Testamento (v. 17), mas, quando o assunto da ressurreição vem à tona como ápice do discurso, seus ouvintes o repelem. 1 Pedro 3.15-22 afirma que a salvação vem através do Batismo, que, por sua vez, está ligado à ressurreição de Jesus.
2. Contexto e texto
A pregação de hoje tem como base a leitura do evangelho do dia, a saber: João 14.15-21. Esse texto faz parte do discurso de despedida de Jesus no Cenáculo, na Quinta-feira Santa, em Jerusalém. Parece estranho falar de um texto da Paixão quando estamos no período da Páscoa. Como é próprio de Jesus, ele está a antecipar fatos e eventos futuros a seus discípulos e a nós também. Despedir-se de alguém que a gente ama é muito difícil. Há tristeza, dúvidas e muita emoção envolvidas. Se alguém já teve essa experiência, pode imaginar o momento em que Jesus se despede de seus discípulos. Mas o Jesus que se despede é também o Jesus que promete voltar. Essa parte do discurso enfoca não o que Jesus tem feito até agora, nem o que ele espera que seus discípulos façam depois que ele partiu, mas o foco está no que ele continuará a fazer depois de deixá-los. Jesus continua vivo. Ele ressuscitou. Não tivesse ele ressuscitado, essas palavras encheriam de muita tristeza os discípulos e a nós. Sua ressurreição, entretanto, dá a esse discurso uma nova perspectiva, nova dimensão. Claro, Jesus está tentando ajudar especialmente seus confusos e assustados discípulos a lidar com o fato de que ele os deixaria. Jesus sabe que eles estão perturbados com o sentimento de ser deixados, num certo sentido, órfãos. Antes, em 14.1-12, ele os havia confortado, mostrando-lhes “o Caminho, a Verdade e a Vida”, ou seja, ele mesmo. Agora ele os conforta falando-lhes da provisão que ele e o Pai tomaram para suprir a carência entre a sua partida e seu retorno no fi m dos tempos, a saber, o “outro Consolador”.
V. 15 – Numa primeira leitura, parece que Cristo está impondo uma carga pesada sobre seus já fragilizados discípulos e a nós, mas essa é a primeira impressão. Nesse sentido, Lutero afirma: “Cristo diz: Eu lhes dou mandamentos que vocês podem e irão cumprir sem coação se, de fato, me amam. Se não existir amor, não faz sentido eu lhes dar um monte de mandamentos, porque eles de qualquer maneira não seriam observados. Por isso, se querem guardar meus mandamentos, vocês precisam me amar e refletir sobre o que eu fiz por vocês”. Jesus não nos dá um novo mandamento de sorte, que devemos amar uns aos outros; antes Cristo afirma aqui que tudo agora flui do amor que temos por ele. Essa será a base para nossas ações e o fundamento de nossas vidas.
V. 16-17 – Os três evangelhos sinóticos não enfatizam tanto o Espírito Santo como faz o Evangelho segundo João. Esse dá bastante destaque à vinda do Parácleto e sua atividade na vida e na comunidade dos discípulos. Em seu discurso de despedida, Jesus faz referência ao Espírito Santo nada menos do que cinco vezes (14.16-17; 14.26; 15.26-17; 16.7-11; 16.13-15). Em lecionários da igreja, essas cinco perícopes são lidas na Festa de Pentecostes ou nos domingos imediatamente antecedentes. A presença de tais textos no Evangelho segundo João fez com que alguns Pais da Igreja qualificassem o quarto evangelho como evangelho espiritual. A inclusão de tantos textos que falam sobre o Espírito Santo também tem sido um dos motivos da popularidade do Evangelho segundo João entre grupos carismáticos, pentecostais e neopentecostais desde os tempos dos montanistas, no segundo século, até os dias de hoje.
Teologicamente falando, é importante notar que o Espírito Santo é “outro Parácleto” ao lado de Jesus. Isso significa que Jesus não se identifica com o Espírito Santo. São pessoas distintas. Mesmo em relação a seu futuro e sua existência celeste, Jesus não é o Espírito, e o que se diz do Espírito em outros lugares é distinto do que se fala de Jesus. Essa distinção de pessoa e obra é mantida todas as vezes que lemos a respeito de Jesus e o Espírito Santo (cf. 15.26; 16.7). Uma característica do quarto evangelho, entretanto, é o quanto a obra do Espírito Santo como Parácleto da igreja está atrelada à do próprio Jesus e deve ser entendida à luz dessa. O Parácleto é outro Parácleto além de Jesus, alguém que o Pai enviará a pedido de Jesus e a serviço do que Jesus havia dito e ensinado (cf. v. 26). O Espírito não falará de si mesmo, mas glorificará Jesus, ensinando todas as coisas e lembrando tudo o que “eu [Jesus] vos tenho dito”. Logo, toda obra do Espírito Santo retroage à obra de Jesus (cf. 16.13ss). Daí se depreende a intimidade da obra do Espírito com a obra do próprio Jesus. Vez por outra, as atividades de ambos até coincidem, como em 14.23, onde é dito que Jesus, juntamente com o Pai, “fará morada” na pessoa que guarda a sua palavra – coisa que se diz também do Espírito praticamente com os mesmos termos em nosso texto de hoje (cf. 14.16, 17).
Durante seu ministério, Jesus refere-se pouco ao Espírito Santo. À medida que ele “sobe a Jerusalém” a caminho da cruz, a relação da sua obra com a do Espírito Santo se intensifica. Agora, às vésperas de sua partida, Jesus chama-o de “outro Consolador”, o que significa que o próprio Jesus era um Parácleto. Em 1 João 2.1 se diz: “Filhinhos meus, essas coisas vos escrevo para que não pequeis. Se, todavia, alguém pecar, temos advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo”. “Parácleto” é alguém que é chamado para acompanhar e ajudar alguém. No grego secular, a palavra é empregada para descrever o defensor de alguém que está no tribunal. Mas não significa apenas defensor, como também acusador. No capítulo 14 e aqui em nosso texto, Jesus fala do Parácleto como o defensor dos discípulos; no capítulo 16, falará do Parácleto como acusador do mundo. Durante seu ministério terreno, Jesus foi nosso Parácleto na terra. Depois de sua ressurreição, Jesus é nosso Parácleto diante do tribunal celeste, e o Espírito Santo é nosso Parácleto, advogado e defensor aqui na terra. Por meio das palavras que o Parácleto nos coloca na boca, podemos testemunhar diante de acusadores, juízes, governadores e reis deste mundo (Mt 10.18-20). Por isso o Espírito é também chamado de “Espírito da verdade” (v.17).
O Consolador será como que um “substituto” de Jesus, continuando seu ministério entre os discípulos enquanto Jesus estiver ausente deles. Jesus ensinara (7.14; 13.13), assim também o Espírito ensinará (16.13); Jesus testemunhou a verdade (8.14), assim fará também o Consolador (15.26ss); Jesus convenceu o povo do pecado deles ((15.24), também assim fará o Consolador 16.8-11); Jesus estará com seus discípulos para sempre (14.23), assim será também com o Espírito Santo (14.16). Embora o Espírito Santo seja como Jesus, coube apenas a Jesus dar a sua vida pelos pecados do mundo.
V. 18-21 – O termo grego orfanús, “órfãos”, designa não apenas quem foi privado de seus pais como alguém que foi abandonado por eles. Pelo que se observa na narrativa desse capítulo, a preocupação dos discípulos está relacionada ao segundo sentido. A ausência de Jesus deixá-los-á abandonados diante de um mundo hostil. É verdade que, em 13.33, Jesus chama seus discípulos de “filhinhos”, mas em lugar algum Jesus é chamado de seu pai.
De que vinda Jesus está falando ao dizer: “Voltarei para vós outros”? Há possibilidade de três respostas: a Parusia, o Pentecostes e a Ressurreição. A primeira possibilidade é que Jesus esteja se referindo à sua segunda – e final – vinda, descendo nas nuvens para julgar vivos e mortos. A segunda, defendida por alguns teólogos da Teologia da Libertação, como José Porfírio de Miranda, Jesus estaria falando aqui de sua vinda no Espírito Santo. Conforme Miranda, o Pentecostes é a única segunda vinda de Jesus que acontece e, visto que o Pentecostes já aconteceu, ela, portanto, já se realizou. Diz Miranda que os cristãos não devem esperar outra segunda vinda, mas devem assumir agora a tarefa de transformar a si mesmos e ao mundo em reino de Deus, lutando contra sistemas corruptos, forças desumanas e, a partir daí, edificar o reino de Deus. Essa interpretação, que se propõe a transformar o mundo aqui e agora por iniciativas próprias, é denominada de escatologia realizada. A terceira maneira de se interpretar o “voltarei” de Jesus nesse versículo é entendê-lo na relação com sua ressurreição. O verbo emfanízoo em 14.21 indica manifestações visíveis de Jesus, como as que ocorrem no capítulo 20: “Por um pouco e o mundo não me verá mais, vós, porém, me vereis”. Palavras semelhantes constituem o discurso de Pedro na casa de Cornélio tempos depois da ressurreição de Jesus: “A esse ressuscitou Deus no terceiro dia e concedeu que fosse manifesto, não a todo o povo, mas às testemunhas que foram anteriormente escolhidas por Deus, isto é, a nós que comemos e bebemos com ele, depois que ressurgiu dentre os mortos” (At 10.40-41). Assim, a ênfase principal aqui provavelmente está na manifestação de Jesus em sua ressurreição. Essa ênfase, contudo, possui uma dimensão mais ampla e estende-se até a sua efetiva, visível e final segunda vinda.
As belas palavras de Cristo, que com muita frequência são usadas pelos cristãos em cartões ou mensagens de Páscoa – “porque eu vivo, vós também vivereis” – demonstram que Jesus não está se referindo a uma escatologia realizada, mas à sua ressurreição dentre os mortos. Afinal, é assim que a igreja cristã no mundo entende, e por isso essa perícope integra esse sexto Domingo após a Páscoa. A ressurreição de Jesus é a garantia de que nós também ressuscitaremos. Essa é base de nossa esperança e de nosso consolo em tempos de angústia, sentimento de abandono e morte.
“Por um pouco” – assim nos ensina o Parácleto em tempos de sofrimento, hostilidade e perseguição. Depois “voltarei para vós outros”. O Espírito Santo nos lembrará de que as aflições dos cristãos não são sinais da ira de Deus, mas de seu amor, por meio dos quais podemos testemunhar nossa fé e manifestar em nós a vida que temos em Jesus Cristo (2Co 4.7-17). Em meio a nossos sofrimentos, o Consolador nos lembrará as palavras de Jesus: “Não temais, ó pequenino rebanho; porque vosso Pai se agradou em dar-vos o seu reino” (Lc 12.32).
Qualquer dúvida sobre a relação de Jesus com o Pai ou sobre seu poder de levar a termo o que ele prometera desvanecerá “naquele dia”, ou seja, naquele dia em que o Senhor derramará o seu Espírito Santo sobre seu povo, fazendo-o lembrar tudo o que Jesus disse e fez (14.26). Essa promessa é dada a todos os que amam Jesus. Aquele que ama Jesus é amado pelo Pai. A ele Jesus continuará a se manifestar através do Consolador, não apenas na sua ressurreição, mas também e continuamente após ela até a sua parusia.
3. Sugestões homiléticas
Tema: Dois consoladores para o desconsolado
1) Jesus está anunciando sua partida “por um pouco”. Qualquer partida, por mais breve que seja, desperta insegurança, tristeza, angústia. Os discípulos sentem isso, assim como nós sentimos. os capítulos anteriores, Jesus aponta para si mesmo como base para o conforto quando deles se ausentasse; em nosso texto, afirma que, na verdade, não se ausentará de seus discípulos, isto que lhes dará outro Consolador. Nesse ínterim, entre sua saída e seu retorno, fornece a eles meios de como serão consolados. Ao fi m e ao cabo, tais meios não serão diferentes, porque o Espírito Santo, pelos meios da graça, continuará a lhes/nos dar testemunho de Jesus e sua obra redentora.
2) Não são poucas as vezes em que nos sentimos órfãos, separados de Jesus. O fato não é apenas sentimento (que não conta muito), mas especialmente porque o pecado nos conduz a essa separação.
3) Jesus consola-nos por meio do Parácleto, o Consolador, o Advogado, que nos foi dado através do Batismo e por causa da sua ressurreição (cf. a Epístola do Dia de 1 Pedro 3.15-22).
4) O parácleto é distinto de Jesus. Ele é o “outro Parácleto”, mas da mesma essência. Fará muitas coisas que Jesus fez quando esse esteve com seus discípulos. Ele é o Espírito da Verdade, que falará toda a verdade. Trará à nossa lembrança tudo o que Jesus falou e ensinou e especialmente o que ele fez por nós ao subir a Jerusalém.
5) Não somos órfãos; não fomos abandonados por Jesus, nem pelo Pai. Ausente sim, mas nem tanto. Jesus está conosco como prometeu (14.23) e, mesmo assim, enviará o outro Consolador. Em meio à transitoriedade da vida, da hostilidade do mundo, das implicações e consequências do pecado, temos a segurança e a certeza da presença “dupla” de Deus na pessoa e obra de Jesus e na pessoa e obra do Espírito Santo, reveladas na Palavra e sacramentos.
6) O amor ao mandamento de Deus não deve ser visto como carga a ser carregada por nós, mas como um privilégio, uma bênção, decorrente do amor que Jesus teve para conosco. Guardar os mandamentos, portanto, flui dessa relação natural e espontânea com Jesus iniciada em nosso Batismo. O assunto central dessa perícope é a obra de Deus a nosso favor. Esse texto, na verdade, é cheio de conforto. Em seu sermão sobre essa perícope, Lutero diz: “Aqui, de jeito nenhum, existe ira, ameaça ou terror para os cristãos”; e acrescenta: “Aqui há apenas um sorriso amigo e um doce consolo nos céus e na terra” (LW, 24.111).
7) Há uma passagem no Mishná, o código de leis e tradições dos escribas e fariseus, que diz que, por cada mandamento que guardamos neste mundo, recebemos um parácleto ou defensor no céu. Por cada mandamento que desobedecemos aqui na terra, recebemos um acusador. Por esse motivo, os escribas, com suas obras de justiça, tratavam de obter tantos defensores quanto possível. Nosso texto claramente desmente que tenhamos outros defensores no juízo final. Nossos Parácletos, nossos defensores, mesmo quando pecamos, são apenas dois: o Filho e o Espírito Santo.
4. Subsídios litúrgicos
Invocação:
Oficiante: Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo.
Congregação: Amém.
Confissão e absolvição:
O.: As palavras de Jesus – “Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados” – nos dão autoridade e garantia neste momento de confissão e arrependimento. Confessemos, pois, diante do Deus justo e santo, com humildade todos os nossos pecados, os conscientes e os inconscientes. E arrependidos, aceitemos o seu gracioso perdão.
O. e C.: Senhor Deus, quem sou eu diante da tua santidade e justiça? Sou apenas uma pessoa dividida ao meio, pois não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço. Ao querer fazer o bem, encontro a lei de que o mal reside em mim. Tenho prazer na tua lei, ó Deus, mas ao mesmo tempo me sinto prisioneiro da lei do pecado. Assim dividido estou eu, por isso me sinto desventurado. Nesse estado suplico a tua graça e o teu perdão em Cristo. O.: Agora já não há mais condenação para os que estão em Cristo Jesus. Porque a lei do Espírito da vida em Cristo te livrou da lei do pecado e da morte. Em ti habita o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos. Esse mesmo vivificará também a ti, mediante o seu perdão e reconciliação. Perdoados estão todos os teus pecados. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
C: Amém!
Introito (falado responsivamente):
O.: A tua palavra é lâmpada para guiar os meus passos, é luz que ilumina o meu caminho.
O.: Ó Senhor Deus, a tua palavra dura para sempre;
C.: ela é firme como o céu.
O.: A tua fidelidade permanece em todas as gerações;
C.: tu colocaste a terra no seu lugar, e ela fica firme.
O.: De acordo com as tuas ordens, todas as coisas permanecem até hoje,
C.: pois tudo te obedece.
O.: Se a tua lei não tivesse sido o motivo de minha alegria,
C.: eu já teria morrido de tanto sofrer.
O.: Nunca esquecerei os teus ensinamentos,
C.: pois é por meio deles que tens conservado a minha vida.
Todos: Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo; como era no princípio, agora é e para sempre será, de eternidade a eternidade. Amém.
O.: A tua palavra é lâmpada para guiar os meus passos, é luz que ilumina o meu caminho.
Oração do dia:
Ó Deus, doador de tudo o que é bom, por tua santa inspiração concede que possamos pensar naquelas coisas que são corretas e por tua misericordiosa direção possamos realizá-las; por Jesus Cristo, teu Filho, nosso Senhor, que contigo e o Espírito Santo é Deus e reina sobre nós agora e sempre. Amém.
Bibliografia
BLANK, Rodolfo. Juan: Um comentário teológico y pastoral al cuarto evangelio. Saint Louis: Editorial Concordia, 1999.
RIDDERBOS, Herman N. The Gospel according to John: a Theological Commentary. Trad. John Vriend. Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing
Company, 1997.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).