Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: João 15.1-8
Leituras: Salmo 22.25-31 e 1 João 4.7-21
Autoria: Beatriz Regina Haacke
Data Litúrgica: 5º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 29/04/2018
1. Introdução
O texto da prédica para o 5º Domingo da Páscoa não aborda temas e acontecimentos pós-pascais. Mesmo assim, a comunidade, neste domingo, ainda vive e celebra impulsionada pela ressurreição. Trata-se de uma fala de Jesus inserida no contexto dos eventos que antecederam a crucificação. A imagem da videira verdadeira não traz apenas mera comparação ou metáfora, mas é um discurso autêntico e autorrevelador de Jesus, através do qual ele assinala como é seu relacionamento com seus discípulos e discípulas e o que espera deles.
O texto da epístola, 1 João 4.7-21, está intimamente ligado ao da prédica quando se aponta para o amor como fruto que brota da união com Cristo. No pensamento joanino, tanto no evangelho como também nas epístolas, a vivência do mandamento do amor recíproco está baseada no amor que Deus demonstrou primeiro (1Jo 4.19).
O Salmo 22, muito lembrado durante as celebrações anteriores ao Domingo de Páscoa, tem sua atenção voltada, até o versículo 24, para o sofrimento humano e o pedido por livramento. Já os versículos 25 a 31, que acompanham os demais textos para este momento, concentram-se na grandeza de Deus. Todas as famílias das nações se prostrarão diante do Senhor. A ele pertence o reino e ele é quem governa as nações.
2. Exegese
A perícope está localizada dentro do discurso de despedida de Jesus (Jo 13.31-16.33). O bloco dos capítulos 15 a 17 parece ter sido uma inserção, pois ao final de 14.31 Jesus diz vamo-nos daqui, indicando movimento, e apenas em 18.1 a cena é a ida ao Getsêmani. Quase todo o material dos capítulos 15 a 17 é fala de Jesus. O autor do evangelho relata os últimos momentos de Jesus com os seus discípulos com uma preocupação: a continuidade da existência da comunidade de discípulos no mundo. São palavras de despedida, mas também de consolo e encorajamento. Afinal, o mundo logo não o verá mais, mas Jesus não pretende deixar os seus discípulos abandonados (14.18-19).
O Evangelho segundo João foi escrito ao final do século I. Para o seu autor, era importante mostrar à comunidade cristã de sua época que Jesus não a havia esquecido em um mundo hostil. Diante da ausência corporal de Jesus, as pessoas cristãs poderiam confi ar em sua presença em seu meio e junto de sua comunidade através do Espírito Santo (14.16).
Os v. 1 e 8 são como molduras para o texto; apontam para a ação de Deus como o agricultor (geōrgos). O Pai é o responsável por plantar a videira e seus frutos são para a sua glória. Jesus é a videira verdadeira, pois Deus já havia plantado uma videira anteriormente: Israel. A videira ou vinha é uma imagem usada para representar o povo de Israel (Sl 80.8-16; Is 5.1-7; Jr 2.21; 5.10-11; Ez 15.1-6). Os profetas Isaías e Jeremias anunciam o juízo de Deus sobre seu povo, que se voltou contra ele. A opressão de outros povos sobre Israel compara-se a uma vinha que é arrasada, que tem suas cercas derrubadas para que qualquer animal a pisoteie, que tem seus galhos arrancados e jogados ao fogo. Os profetas testemunham que a videira “Israel” trouxe decepções ao seu agricultor. Apesar de ser plantada com ramos bem escolhidos e de todo o cuidado e dedicação de seu agricultor, a videira não frutificou como Deus desejava. Porém, em Cristo, Deus dá início a uma nova vinha. Ao enviar seu próprio Filho ao mundo, ele proporciona o surgimento de uma comunidade ao seu redor, que pode produzir fruto não por si mesma, mas porque está ligada à videira. A videira não mais é o povo, mas Cristo. O que sustenta os ramos é a ação do próprio Deus em seu Filho e não mais a ação humana. O cuidado do agricultor para com a sua videira acontece através da limpeza dos ramos produtivos e da poda dos improdutivos (v. 2).
Nos v. 1 e 5 encontram-se as palavras “eu sou” de Jesus (egō eimi), que são como chaves para a hermenêutica joanina. Através delas, Jesus se autoproclama, respondendo a pergunta sobre quem ele é e o que isso significa para quem crê nele. De acordo com Schnelle, essas sentenças são como evangelhos em miniatura, pois são palavras de vida, apresentam um convite ou chamado para a fé e uma promessa. Elas possuem uma estrutura básica (apresentação, palavra metafórica, convite e promessa), que no texto em questão aplica-se da seguinte forma:
Apresentação – Eu sou
Palavra metafórica – a videira verdadeira
Convite – o que permanece em mim e eu nele
Promessa – este produz muito fruto
No v. 2 fica claro que a ligação do ramo à videira não o isenta de ser limpo pelo agricultor. A limpeza ou poda dos ramos tem como finalidade a produtividade (para que produza mais fruto ainda). No entanto, ramo que não dá fruto é porque está fora da relação vital com Jesus e, logo, está exposto ao juízo (v. 6: é lançado fora e queimado). Assim, o vínculo com Cristo é vital para a pessoa cristã. Ao final do v. 5, o termo grego que foi traduzido por “sem” (sem mim nada podeis fazer) é chōris, que significa, originalmente, “separado de”. Somente através do vínculo com Cristo é que se possibilita todo o ser, poder e fazer dos discípulos e discípulas (v. 5). Por sua vez, é a palavra de Jesus que promove a limpeza (v. 3).
Podem ser observadas no texto de João 15.1-8 algumas ocorrências das chamadas fórmulas de imanência, que visam expressar a unidade do Pai com o Filho e, consequentemente, de Deus com a pessoa que crê, por meio de Cristo (Jo 15.4,5,7; outras ocorrências, por exemplo, em 14.10,20; 15.9; 17.21). Nas palavras e ações de Jesus, o próprio Pai é revelado e age. Estar ligado a Cristo, a videira, é o mesmo que estar ligado ao Pai. O verbo menō (permaneço, v. 4, 5, 6 e 7) expressa a dimensão ética da comunhão com Deus e com Cristo, pois permanecer em Deus/Cristo implica permanecer no amor (15.9) ou produzir frutos, que é a expressão usada na perícope.
O mesmo verbo no imperativo (meinate) é empregado em permanecei em mim e permanecei no meu amor (v. 4 e 9). As palavras de Jesus que purificam e que devem permanecer nos discípulos e discípulas se resumem no chamado para amar uns aos outros. Na verdade, isso perpassa todo o discurso de despedida de Jesus, desde o lava-pés – modelo e vocação para o serviço –, da instrução do novo mandamento até a promessa do Consolador. A base para esse chamado é o amor que o Pai tem pelo Filho e este pelos seus (14.23; 15.10).
3. Meditação
O verbo permanecer é palavra-chave nesta perícope, enquanto que “amor” vem a ser a palavra-chave do texto que segue: 15.9-17. Contudo, não é possível dissociar essas palavras neste contexto. A mensagem central da alegoria da videira está clara: Permaneçam em mim e eu permanecerei em vocês. Quando isto acontece, a pessoa que crê produz muito fruto.
Permanecer em Jesus é possibilidade que acontece por meio da fé. Por isso quem permanece na palavra de Cristo já está limpo (v. 3). A fé, por sua vez, nos conduz para o amor, que é o fruto que brota da união com Cristo. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida (v. 13). Permanecer na fé em Cristo significa permanecer no amor. A partir disso podemos compreender o sentido do versículo 7. Discípulos e discípulas de Jesus produzirão frutos para a glória do Pai, e suas orações serão atendidas à medida que amarem uns aos outros. Quem permanece em Cristo e Cristo, nele, pede e ora: “seja feita a tua vontade”.
A imagem dos ramos da videira aplica-se inicialmente em nível pessoal, pois o permanecer é condição dirigida a cada discípulo e discípula. Mas amplia–se para o nível comunitário, pois todos os ramos têm em comum a união com uma mesma videira e o chamado para frutificar para a glória de Deus, e estende–se para além da comunhão cristã quando o amor é fruto notado também através da presença e do testemunho cristão no mundo. Que frutos são esses que Deus nos chama a produzir? Ora, nunca poderiam ser frutos diferentes daqueles que Jesus produziu.
O fruto é a multiplicação da vida que está na planta. Os frutos da videira representam a vida nova que corresponde à própria videira. Assim como o fruto da videira não pode ser outro do que a uva, dos discípulos e discípulas de Jesus são esperados o mesmo amor e disposição em servir de seu mestre. Dar fruto equivale à observância ativa do mandamento do amor. O amor recebido de Cristo e do Pai nos impulsiona para o amor uns aos outros. O amor de Deus nos é dado e de nós é esperado o mesmo amor. Assim como o amor de Deus e sua graça vêm antes do nosso amor, o permanecer em Cristo só é possível porque, primeiramente, o próprio Cristo permanece nos seus (v. 4).
Esse indicativo é graça experimentada pela igreja cristã em meio às condições adversas de um mundo marcado pelo afastamento de Deus, pelo pecado. Para a comunidade de sua época, o evangelista registrou as palavras de Jesus na intenção de confortá-la na ausência do Senhor. E ainda hoje, na expectativa pela volta de seu Senhor e enfrentando dificuldades na tarefa de testemunhar o amor, as pessoas cristãs sabem que ele não está ausente, mas permanece junto delas. Cristo permanece presente em mim, no irmão e na irmã. Na comunhão isso pode ser percebido. A união de um ramo com a videira não é nada estática ou inerte, assim também a fé não o é. Ao contrário, é dinâmica e viva. Há a nutrição do ramo através da seiva. Há o crescimento e o fortalecimento do mesmo.
A relação dos discípulos com Jesus é mediada pela sua palavra, conforme os v. 3 e 7. Permanecer implica ouvir a palavra de Jesus. Pela palavra acontece a limpeza dos ramos. O permanecer em Cristo por meio da fé concretiza-se no dia a dia da pessoa cristã, no viver o seu batismo, pelo arrependimento, pelo perdão, pelo servir e amar. Ser discípulo e discípula de Jesus significa estar unido com ele, significa proximidade e relacionamento. A união com a videira é graça de Deus, porém relacionamentos são cultivados. O relacionamento com Jesus, que envolve o cuidado que é recebido do agricultor para melhor produzir e a seiva que alimenta a vida dos ramos, é cultivado através da palavra, da comunhão com irmãos e irmãs, do envolver-se na vida comunitária, dos sacramentos, da bênção.
Sem o vínculo com a videira não haverá fruto. Por outro lado, sem fruto a ligação com a videira é rompida. O juízo também é claro para aqueles e aquelas que não frutificam. Todavia, ramos não cortam outros ramos. A limpeza e a poda são ações do agricultor. Todos estão suscetíveis à tentação de assumir o papel que pertence a Deus. O querer ser igual a Deus coloca em risco a vida de todos os ramos numa comunidade. Da mesma forma, a união com a videira abala-se quando a glória dos frutos não mais é dada a Deus. Quando os ramos são saudáveis, os frutos vêm por si. Não há mérito nosso. Nada fizemos a não ser aquilo para o qual fomos criados.
4. Imagens para a prédica
O que significa “permanecer”? De acordo com o dicionário, é continuar a ser, ficar, estar. E o que significa permanecer em Cristo? Será algo passivo, como não sair do lugar, ou sofrer as intempéries sem mudanças em seu estado? Na verdade, permanecer em Cristo tem sentido dinâmico, transformador, participativo, pois acontece mediante a fé e resulta em frutificação.
Podem ser lembradas as palavras de Martim Lutero: “Fé e amor perfazem a natureza do cristão. A fé recebe, o amor dá; a fé leva a pessoa a Deus, o amor a aproxima das demais. Através da fé ela aceita os benefícios de Deus, através do amor ela beneficia seus semelhantes”.
No que consiste o amor (1Jo 4.10-11)? Uma médica conta que conheceu uma menina chamada Liz, que sofria de uma doença rara. A única possibilidade de recuperar-se era a transfusão de sangue de seu irmão de cinco anos, que milagrosamente havia sobrevivido à mesma doença e desenvolvido anticorpos para combatê-la. A médica explicou a situação ao menino que, após pensar um pouco, tomou fôlego e disse: “Sim, vou fazer isso para salvar a Liz”. À medida que a transfusão progredia, o menino sorria para a irmã ao ver que o rosto dela tomava cor novamente. Após alguns minutos, o garoto ficou pálido e, com voz temerosa, perguntou à doutora: “É agora que eu vou morrer?”. O pequeno havia interpretado mal a explicação da médica. Mas, por amor, estava disposto a fazê-lo. Pensou que tinha que doar à irmã todo o seu sangue, junto com sua vida
(autor desconhecido).
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados: Senhor Deus, a dádiva do teu amor em Jesus nos impulsiona para o amor ao próximo. Assim como de uma boa árvore se espera bons frutos, tu nos vocacionas para a prática do amor. Mas nem sempre nossas ações e palavras são condizentes com a relação que tu queres ter conosco. Por isso pedimos perdão quando apontamos o dedo para o erro do irmão, da irmã e o julgamos, antes de reconhecer nossas próprias falhas. Perdão quando duvidamos e quando nossa fé é fraca. Perdão quando deixamos que nosso orgulho fale mais alto e não apontamos para a tua honra e glória. Também necessitamos ser limpos e podados naquilo que nos afasta de ti e uns dos outros. Ouve a nossa confissão, por Cristo Jesus, perdoa-nos. Amém.
Oração do dia: Deus de amor e bondade, tu que demonstras o teu cuidado para com teu povo da mesma forma que o agricultor cultiva com dedicação a sua plantação, envia teu Santo Espírito para que sejamos alcançados pela tua palavra. Que essa palavra seja nutriente para a fé. Fortalece entre nós os vínculos do amor, o mesmo amor com que amaste Jesus, teu Filho, e com o qual ele também nos amou. Por Jesus Cristo, que contigo vive e reina, na unidade do Espírito Santo. Amém.
Bibliografia
BOOR, Werner de. Evangelho de João: comentário esperança. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2002.
SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2010.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).