O Pai é o agricultor
Proclamar Libertação – Volume 45
Prédica: João 15.1-8
Leituras: Salmo 22.25-31 e 1 João 4.7-21
Autoria: Ricardo Brosowski
Data Litúrgica: 5° Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 02/05/2021
1. Introdução
Quem sou eu? Essa pergunta é frequente entre os humanos. Em verdade, essa pergunta é caraterística da humanidade. Não vemos nenhum cachorro questionando sua cachorrice. Mas os humanos se questionam. E isso é bom! Quando nos questionamos, falamos sobre nossas alegrias e dores e sobre louvor gerado pelo vencer dessas dores (como no Salmo 22.25-31. Quais os motivos que nos levam a Deus?). Questionamos nossos conceitos, definições e qual nossa tarefa diante deles (1 João 4.7-21 – Deus é amor! O que é o amor? Como amamos os outros?). Também podemos nos perguntar sobre nosso pertencimento – sobre os grupos, clubes, sociedades que temos, e com isso os compromissos que assumimos ao participar de determinados agrupamentos. Também devemos analisar quais pessoas “nos têm” e quais “temos”, sobre os relacionamentos que efetivamos – e, também, deixamos de efetivar – no cotidiano.
É essa pergunta que Jesus responde no texto de João 15.1-8. Eu sou a videira, vocês são os ramos e meu Pai é o agricultor. Para nós, pessoas cristãs, isso está bem claro: nós somos os ramos. Cantamos isso em dias de celebração batismal: “Seja um membro teu, Senhor, ramo, unido a ti, videira” (HPD 1 – 134, 3). Bem verdade que isso é uníssono. Contudo existem muitas discussões sobre quais os frutos gerados. Talvez não cheguemos a uma conclusão, e talvez essa não deva ser nossa intenção. Nossas conclusões humanas são pecadoras, falhas, provisórias, parciais e excludentes, até quando achamos que estamos incluindo.
2. Exegese
Jesus sai do local da última ceia e utiliza-se de uma metáfora para falar sobre o trabalho dos apóstolos no mundo depois de sua partida. É muito comum Jesus usar imagens do cotidiano das pessoas para fazer-se entender. Naquela região, todos conheciam a figura do pastor de ovelhas, todos sabiam o que significava o caminho, assim como também conhecem a imagem da videira.
V. 1 – Muito interessante notar neste texto que mais uma vez Jesus se apresenta como “eu sou” (egō eimi). Essa autoapresentação de Jesus remete-nos ao texto de Êxodo 3.14, onde Deus responde para Moisés a pergunta sobre o seu nome: “Eu sou o que sou” ou “Eu serei o que serei”.
– Eu sou a videira verdadeira – isso nos leva a crer que existam videiras não verdadeiras. Não há uma explicação de quais seriam as outras vides, mas Jesus é a verdadeira, a confiável.
– Vocês são os ramos – com isso Jesus mostra que ele é o caminho natural para a nutrição e produção da planta. Não há ramos sem que exista um caule de sustento e, ao mesmo tempo, uma raiz que suga o líquido e os sais minerais necessários para a nutrição da planta. Desse modo, Jesus mostra que seus discípulos são parte dele mesmo. Os discípulos não estão alheios, soltos e perdidos, pelo contrário, estão presos no próprio Cristo. E nele recebem nutrição e sustento.
– Meu pai é o agricultor (geōrgos – e não ampelourgos, como usado em Lucas 13.7, que pode ser traduzido como vinhateiro). Com isso mostra-se que por trás da obra de Jesus está o próprio Pai, que é quem salvaguarda a obra do Filho.
Como nos lembra BOOR (2002, p. 101), devemos lembrar que quem está no começo da ação e no seu final é o Pai, como o agricultor. É o Pai quem planta (envia Jesus), quem cuida (arrancando ou purificando) e quem, no fim de tudo, será glorificado.
V. 2 – É interessante notar que os termos arrancar, podar ou tirar possuem ações muito parecidas. Mas Jesus usa termos diferentes: aqueles que não dão frutos ele tira (airei) e os que dão frutos ele poda ou purifica (kathairei).
O termo kathairei pode ser traduzido como “poda”, embora o mais apropriado é que seja traduzido como “limpa”, ou ainda “purifica”. O Léxico do Novo Testamento coloca em destaque a palavra catarses. Em seu dicionário de filosofia, ABBAGNANO (2018, p. 137-138) explica a palavra catarse como sendo a “libertação do que é estranho à essência ou à natureza de uma coisa e que, por isso, a perturba ou corrompe”. Já Platão usava o termo no sentido de conservar o que é melhor e descartar o pior. Também Aristóteles usava o termo como forma de expurgo.
Tanto airei quanto kathairei são obras exclusivas do Pai. É o Pai que tira e atira ao monte para o fogo. E é o Pai quem limpa, purifica para que mais frutos possam aparecer.
V. 3 – Os discípulos já estão puros por causa da palavra – é a palavra de Cristo que purifica. O termo lelalēka, no perfeito, mostra que essa purificação pela palavra é algo completado. Devemos ter em mente que a purificação acontece pela palavra. Lembremos que, no primeiro capítulo do evangelho, João apresenta Jesus como sendo “a Palavra”, “o Verbo”. Assim, os discípulos são limpos por causa da palavra, ou por causa do próprio Cristo.
V. 4-6 – Um ramo fora da videira não dá fruto e um discípulo sem Jesus também não. A comunhão com Jesus é fundamental. E é justamente essa comunhão com Cristo que gera fruto. BOOR (2002, p. 102) afirma que a frase de Jesus neste versículo é extremamente consoladora: “Não se espera deles que gerem qualquer fruto de si mesmos”. O ato de permanecer ligado à videira é que faz com que os ramos deem frutos. Os frutos não são dos ramos, e sim da videira. Vemos, assim, um caráter passivo dos discípulos.
Os que não permanecem unidos à videira são jogados fora, secam e, juntados, vão ao fogo. Mesmo o ato de ser lançado fora é passivo. É o Pai quem corta e lança fora, ao fogo.
V. 7 – Aqui, para o termo palavra não é mais usado o termo grego logos, mas rēmata. A continuação também é interessante: aquilo que quiserem, peçam, que acontecerá para vocês. Devemos ver esse texto com os olhos da terceira petição do Pai-Nosso: Seja feita a tua vontade. Aparentemente pode parecer uma contradição. Contudo, aquele que está ligado verdadeiramente à videira saberá aquilo que deve pedir.
Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. Que significa isto: A boa e misericordiosa vontade de Deus é feita sem a nossa oração. Mas pedimos nesta oração que ela seja feita também entre nós. Como acontece isso? Quando Deus desfaz e impede todo o mau plano e vontade que não querem nos deixar santificar o nome de Deus e não querem que seu reino venha. Vontades assim são a do diabo, do mundo e de nós mesmos. E, por outro lado, isto acontece quando Deus nos fortalece e mantem firmemente na sua palavra e na fé, até o fim. Esta é a sua vontade misericordiosa (Martim Lutero, Catecismo Menor).
V. 8 – Por meio dos frutos da videira, que surgem nos ramos, o Pai é glorificado. Esses frutos são, conforme a explicação dada na Bíblia de Jerusalém (2004, p. 1.881, nota i), a santidade de uma vida fiel aos mandamentos, especialmente ao do amor. Impossível não lembrar as palavras de Jesus em João 13.35: Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se amor (agapē) tiverdes uns aos outros. Esse amor é a mais sublime virtude cristã. E talvez a que mais falte às pessoas cristãs da atualidade.
3. Meditação
Escrevi esta meditação em dias conturbados para a humanidade. Hoje, ao ligar o telejornal, deparei-me com números assustadores da pandemia do coronavírus que assola o mundo desde dezembro de 2019. As notícias assustam, preocupam, geram insegurança. Ao mesmo tempo, quando busco um período de entretenimento nas redes sociais, deparo-me com a partidarização de um grave problema de saúde mundial; deparo-me com receitas mágicas para curar uma doença, sem tratamento científico comprovado, e mais disseminação de ódio e medo.
O texto de nossa perícope mostra-nos nossa incapacidade de entendermos algo bem básico e importante para nossa fé: sem Cristo nada podemos fazer. Esse é um alerta, mas, antes de tudo, um enorme consolo e motivo de esperança.
Os discípulos vão se espalhar pelo mundo, sofrerão perseguição e morte, mas estão presos ao próprio Cristo. Não existe nada que os ramos sofram que a videira como um todo não sofra junto. Hoje (março de 2020), as comunidades sofrem. Orientações da IECLB, decretos governamentais e bom senso impedem o encontro físico entre as pessoas. Cultos, encontros de grupos e até sepultamentos sofrem suspensões e restrições (ainda não sabemos até quando isso irá ocorrer). A impossibilidade de comunhão faz com que o corpo de Cristo (os ramos) sofra, e sabemos que a videira também sofre com isso.
Contudo sabemos que não estamos abandonados em nosso sofrimento. Aquele que cuida da videira e de seus ramos permanece ao nosso lado. Talvez possamos até dizer que o Agricultor é o mais preocupado – e o mais afetado – com toda essa situação de afastamento social (que é importante e necessário para a ocasião). Esse é o primeiro ponto que sustenta a esperança cristã: o Agricultor continua cuidando (arrancando e podando) de sua videira e de seus ramos. Afinal de contas, essa videira e tudo que nela existe é parte do seu Reino.
Esse consolo surge como alerta quando vemos que permanecer em Cristo é o que nos faz permanecer ligados ao Reino. A própria Confessio Augustana nos lembra disso, em seu artigo IV:
Ensina-se também que não podemos alcançar remissão do pecado e justiça diante de Deus por mérito, obra ou satisfação nossos, porém, que recebemos remissão dos pecados e nos tornamos justos diante de Deus pela graça, por causa de Cristo, mediante a fé, quando cremos que Cristo padeceu por nós e que, por sua causa, os pecados nos são perdoados e nos são dadas justiça e vida eterna.
E nisso mostra-se nossa incapacidade. Não é a doçura ou a beleza do que fazemos que nos fixa a Cristo. A lógica é diferente: é o estar em Cristo que nos faz dar frutos, mesmo que com sinais de imperfeição, marcados que somos pelo pecado. E por estarmos ligados a Cristo, mesmo em meio às nossas falhas, temos a tarefa de dar frutos. Os frutos que ele mesmo gera.
Temos a tendência a considerar como frutos da obra de Deus apenas aquilo que confere com a nossa visão de reino de Deus. Em tempos de polarização doentia, temos dificuldade de considerar aquilo que os outros fazem igualmente como frutos de amor. Se não concordamos com alguém, seja politica ou teologicamente, de forma arrogante tendemos a taxar sua posição ou atitude como equivocada.
Quando nos damos conta que é Deus quem concede os frutos, deveríamos reconhecer igualmente os frutos que outros ramos produzem, pois estão ligados ao mesmo caule e à mesma videira, cultivada pelo mesmo Agricultor. Demonstrar esse amor significa amar e orar também por aquele que pensa e age diferente de nós. Essa unidade é escassa na igreja!
O discurso do amor está sempre presente entre nós. Mas sua prática muitas vezes deixa a desejar. É claro que isso pode ser um exagero. Afinal, vemos muitos sinais de amor ao nosso redor: comunidades que, sem os cultos presenciais, continuam vivendo a fé de forma virtual; pessoas e comunidade que oferecem comida e teto aos desalentados; pessoas que fabricam e distribuem EPI’s para profissionais da saúde, entre outros sinais. Também nessas pequenas coisas experimentamos o amor de Deus expresso pelos frutos. Que eles sejam abundantes em nosso meio, para a glória de Deus.
4. Subsídios litúrgicos
A oração seguinte de Martim Lutero pode ser usada antes da meditação:
Vê, Senhor, que sou um vaso
Vê, Senhor, que sou um vaso que carece muito de ser preenchido.
Meu Senhor, enche meu vaso, pois sou fraco na fé.
Fortalece-me, pois sou frio no amor.
Aquece-me e torna-me quente, para que meu amor transborde para o próximo.
Não tenho fé robusta e forte, acontece que sou acometido de dúvidas,
não podendo confiar em ti inteiramente.
Ó Senhor, ajuda-me a fazer
crescer minha fé e confiança.
Tudo o que tenho se encerra em ti.
Eu sou pobre, tu és rico e vieste para receber
em misericórdia os pobres.
Eu sou pecador, tu és justo.
Comigo está a doença do pecado, em ti a plenitude da justiça.
Por isso quero ficar contigo, não preciso dar
de mim para ti: de ti posso receber. Amém.
(VOIGT (Org.), 2016, p. 50.)
Sugestões de hino
Eu sou a videira e vocês são os ramos
Bibliografia
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2018.
BOOR, Werner de. Evangelho de João II. Curitiba: Esperança, 2002. (Comentário Esperança).
VOIGT, Emílio (Org.). Quem é a IECLB? São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: IECLB, 2016.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).