Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: João 15.26-27; 6.4-15
Leituras: Ezequiel 37.1-14 e Romanos 8.22-27
Autor: Daniel Kreidlow
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação: 27/05/2012
1. Introdução
O Domingo de Pentecostes celebra a vida e o ânimo que Deus tem concedido à sua igreja em todos os tempos e lugares. Pois, se nossas comunidades ainda estão em pé, testemunhando, ouvindo e vivendo o evangelho, é porque Deus nos tem concedido a sua graça por intermédio do Espírito Santo. O Espírito, que encheu os primeiros discípulos de coragem após um tempo de temor e abatimento, é o mesmo que sopra entre nós, permitindo que sigamos em frente como cristãos e comunidades de fé.
Mais uma vez, o texto de João 15.26-27; 16.4-15 é previsto para o Domingo de Pentecostes, a festa que comemora o aniversário da igreja cristã. Nosso texto faz parte dos chamados discursos de despedida de Jesus (Jo 14-17). Entre outras coisas, esses discursos retratam a relação entre Jesus, o Pai, o Espírito Santo e os discípulos. No evangelho e na primeira carta de João, o Espírito Santo é denominado de parakletos. Etimologicamente, trata-se de uma palavra composta pela preposição para (junto a) e pelo adjetivo kletos (chamado), portanto chamado para estar junto a, correspondente a ad vocatu (advogado, em latim). A palavra sugere que o Espírito Santo é aquele que acompanha a comunidade ou está ao lado dela em seu testemunho ao mundo. Utilizaremos aqui a forma Paracleto, como consta no Dicionário Aurélio.
Juntamente com o texto joanino, temos previsto para esse domingo outros dois textos muito significativos. Do livro de Ezequiel temos o conhecido texto do vale dos ossos secos (37.1-14). Ali se diz que Deus vivifica, pela palavra do profeta, um vale cheio de ossos sem vida por meio da respiração, do espírito. É o Espírito de Deus que conduz o profeta Ezequiel, e é o Espírito soprado por Deus que vivifica o que já estava morto. Da Carta aos Romanos, a comunidade reunida ouvirá o capítulo 8, versículos 22-27, que retratam o Espírito como o auxiliador, que assiste e intercede por todo o universo angustiado e sofrido.
Os três textos previstos possuem muitos pontos de ligação, o que ajudará a comunidade na reflexão sobre o tema.
2. Exegese
João 15.26-27 – No Evangelho de João, a narrativa das últimas horas de vida de Jesus é interrompida pelo assim chamado discurso de despedida. Jesus encontra-se junto ao grupo de pessoas que o seguiam. Despede-se delas e dedica a elas algumas palavras de ensino e instrução, entre as quais se encontra o anúncio do Paracleto, que virá da parte do Pai, enviado por Jesus.
A palavra parakletos é traduzida de diferentes formas: advogado, auxiliador, intercessor, consolador, conselheiro. Já o significado do verbo parakaleo, no grego clássico, variava entre convocar, mandar chamar, intimar, exortar, encorajar, confortar e consolar, sugerindo um emprego na forma passiva, como o de alguém chamado para ajudar.
Interessante é perceber que, diferentemente das fórmulas trinitárias encontradas no Novo Testamento, no Evangelho de João já percebemos indícios de uma reflexão sobre a relação que hoje definimos como trinitária.
Aqui, o Paracleto é enviado por Jesus da parte do Pai para estar junto aos discípulos entristecidos e aflitos pelo fim próximo de seu mestre. O Espírito, como o Consolador, Auxiliador ou Advogado anunciado por Jesus, estaria ao lado dos discípulos, dando testemunho dele ao mesmo tempo em que auxiliaria no testemunho que se esperava dos seguidores de Jesus.
Esse Paracleto, que como um advogado se colocará ao lado deles em um momento de perseguição (16.2; 16.33), terá a tarefa de apontar para Cristo, dando testemunho e falando de Jesus, e não de coisas estrondosas no futuro. Esse testemunho estará intimamente ligado ao dos discípulos (v. 27), pois ambos se relacionam e estão fortemente vinculados, como nos demonstra a sequência formulada no texto.
João 16.4 – A parte final de nosso versículo estabelece uma conexão entre João 14.26-27 e o restante de nosso texto. A partir de agora, Jesus sabia que seria diferente do tempo em que estava ao lado dos discípulos. Como Ele tinha agido como um protetor, que direcionava para si os ataques destinados também a seus seguidores, Jesus não havia visto necessidade de adverti-los da perseguição que estava prestes a surgir. Mas agora havia chegado o tempo deles se conscientizarem e se prepararem, porque as investidas que até agora haviam sido direcionadas contra Jesus, de agora em diante se voltariam com toda a intensidade contra seus seguidores.
V. 6 – Aqui está descrita a reação dos discípulos frente às palavras de Jesus. Parece que os seguidores de Jesus não estavam preparados até o momento para enfrentar as crises profundas que a ausência do Mestre causaria em suas vidas. Isso fica fortemente demonstrado na negação e fuga dos discípulos mais próximos de Jesus na hora da crucificação. A partida de Jesus desestrutura a esperança messiânica que os discípulos tinham até agora. Por conseguinte, seus rostos enchem-se de tristeza quando o Mestre lhes anuncia a sua separação e morte.
V. 7 – Aqui Jesus parece querer comunicar a seus seguidores uma palavra de esperança e alegria. Ao anunciar que sua partida seria compensada pelo envio do Paracleto, Jesus demonstra que esse envio há de suprir a perda de sua presença e que, além disso, irá auxiliá-los no testemunho sobre ele. Em meio à aflição dos discípulos, Jesus explica que é melhor que ele vá, mesmo que a sua ida para o Pai signifique maiores perseguições aos seus. Nesse ponto, o Paracleto apresenta-se como o advogado e auxiliador, que somente virá se Jesus retornar ao Pai.
V. 8-11 – Esse grupo de versículos relaciona o Paracleto com o mundo e com aqueles que não creem. Enquanto frente aos discípulos o Paracleto se apresenta como um advogado e auxiliador, pois os defende, frente ao mundo ele se apresenta como um acusador, que expõe, refuta, convence e condena. O Advogado terá como uma de suas obras mais importantes a tarefa de revelar o pecado, a justiça e o juízo. Nesse sentido, também aqui há similaridade com a obra de Jesus, pois assim como Jesus foi um auxiliador de seus discípulos enquanto esteve com eles, ao mesmo tempo sua vida, presença e testemunho tinham como consequência a condenação daqueles que se fechavam à sua mensagem.
V. 12-14 – O ministério de Jesus continua por intermédio do ministério do Paracleto. A revelação e os ensinamentos haveriam de ter continuidade a partir dele, depois da partida de Jesus. E da mesma forma que Jesus não falava e agia por iniciativa própria (5.19,30; 8.28;12.49), também aqui fica claro que o Paracleto não falará e agirá por si mesmo, mas falará do que ouviu. Assim, o Espírito da Verdade apontará para aquele que é a verdade (14.6), pois sua revelação nada acrescenta à verdade que é Jesus e está nele (Ef 4.21).
Não por último, o Paracleto que dá testemunho de Cristo, que ensinará os discípulos e exporá o erro do mundo também glorificará Jesus. Assim como o Filho glorificou o Pai com seu agir neste mundo (7.18; 17.14), o Espírito agora glorificará o Filho com sua vinda. Essa glorificação por intermédio do Espírito acontece porque ele não traz ao mundo nada à parte de Jesus, o Filho, e nem confere qualquer coisa que já não tenha sido oferecida por Deus em Jesus de Nazaré.
3. Meditação
As diferentes compreensões e reflexões surgidas sobre a terceira pessoa da Trindade têm causado muita confusão no seio da igreja cristã. Comunidades centenárias têm se dividido, cristãos têm circulado de igreja em igreja em busca da ação do Espírito Santo, muitos de nossos membros têm buscado experiências e explicações sobre o Espírito que façam mais sentido para suas vidas.
Parece-me que, enquanto zanzamos tontos em busca do agir do Espírito, ele em sua liberdade efetua sua obra apontando enfaticamente para Cristo. Em nosso texto, é esta a sua tarefa mais nobre: “falar a respeito de mim”, diz Jesus. O Espírito da Verdade dá testemunho daquele que é a Verdade, não o querendo subjugar, suplantar ou substituir. Ao contrário, Ele falará daquilo que já ouviu, rememorando nos seguidores de Jesus seus atos e ensinamentos, o que indica sua atividade por meio dos verbos ensinar, instruir, lembrar, recordar, rememorar.
Acredito que, a partir da dinâmica e relação trinitária que encontramos no Evangelho de João, antes de nos perdermos falando sobre Trindade, deveríamos nos limitar a falar de relações e dinâmicas em torno de nosso Senhor Jesus Cristo. Se atentarmos um pouco para as comunidades cristãs que nos cercam, perceberemos que um falar sobre Trindade é um falar descontextualizado e até sem sentido e vazio. Falar sobre cristologia apontando para Cristo, assim como faz o Espírito, e a partir daí falar sobre relações em torno de Jesus Cristo pode levar-nos a ficar mais próximos da reflexão cristã cotidiana das pessoas. Falar de relações e dinâmicas obriga-nos a falar de um Deus que age, não uma Trindade filosófica, dogmática, do mundo das ideias. Pois Trindade é ação amorosa de Deus como Pai, Filho e Espírito Santo. É ação de Deus em amor, agir divino dinâmico, sempre realizado a partir de sua incomensurável compaixão, a fim de resgatar e possibilitar nova comunhão com ele.
Em relação ao atual mundo evangélico brasileiro, sob esse prisma, o texto auxilia-nos a visualizar a obra do Espírito intrinsecamente ligada a Cristo, tendo o seu verdadeiro sentido somente nele e em sua obra salvífica em favor do ser humano. O Espírito Santo age como, onde e como quer, mas cumprindo sua função de revelar a Cristo Jesus, o Salvador, e não operando maravilhas por si só, como se fosse a principal pessoa da Trindade. Sua ação no texto em apreço só faz reforçar aquilo que Cristo já revelou e fez em prol do ser humano, que precisa de salvação.
Consequentemente, toda essa íntima relação soteriológica só faz sentido em vista do ser humano. Acredito que os discípulos não estavam mais assustados e aflitos do que muitos de nós. Diante de catástrofes climáticas, como a ocorrida na serra fluminense, como o acontecido no Japão por meio de terremotos e tsunamis, como o ocorrido no sul do Brasil no município de São Lourenço do Sul, também muitos de nós, cristãos, podemos nos sentir abandonados, assim como os discípulos no tempo de Jesus se sentiram ante a iminência de sua morte. Também diante disso, esse texto quer nos confortar com a sempre renovada palavra sobre o Consolador e Auxiliador, que não nos deixa órfãos e renova a nossa fé ao novamente abrir nossos olhos para o Cristo que venceu a morte.
Em sua tarefa de testemunhar a Cristo, o Espírito, diante de todas as dificuldades, auxilia-nos a testemunhar e a não permanecer na angústia e no desespero. Individual ou comunitariamente, somos amparados e auxiliados pelo Espírito enviado por Cristo. Jesus prometeu a presença e a permanência de outro Paracleto para sempre ao nosso lado. Esse estar junto se refere, sobretudo, à ajuda, defesa e proteção, o que se depreende da preposição meta com genitivo no texto original. Além do estar conosco, é também prometido um estar em. Essa expressão indica uma interiorização, imanência do Paracleto em nossas atividades e em nossas vidas, tornando possível a assimilação da Palavra da verdade e da revelação de Jesus na fé. Nossas comunidades, muitas vezes pequenas e tão criticadas por nós mesmos, possuem a história que possuem e estão abertas acolhendo nossos membros, porque o Espírito de Deus é parte fundante dessa caminhada de fé comunitária. Essa relação entre fé, testemunho, Cristo e o Paracleto diz respeito a todos os cristãos, porque é o Espírito quem nos auxilia a dar nosso testemunho concreto de fé em Cristo Jesus, manifestando-se por intermédio de palavras e ações em meio à sociedade.
4. Imagens para a prédica
É aniversário da igreja cristã: Pentecostes. Para mim, sempre parece muito significativo retomar um pouco da história mais próxima de nossa comunidade, que nos revela também o agir do Espírito de Deus em meio a tantos sentimentos de aflição, angústia e abandono. Por isso acredito que uma imagem/ilustração para a prédica e o culto poderiam ser fotos de acontecimentos na comunidade. Alguns membros poderiam ser desafiados a trazê-las para a elaboração de um painel.
Assim como os discípulos não ficaram desamparados, também nós, comunidades, no transcorrer da história, pudemos experimentar a ação do Auxiliador, que aponta para o Cristo e nos quer ajudar com nosso testemunho de fé durante nossa caminhada. As fotos podem representar um sinal daquilo que o Espírito está causando em nosso meio. Batismos, construção de templos, encontros, cultos festivos mostram-nos o amparo de Deus e nos querem motivar a olhar em frente para a nossa futura história com mais esperança e ânimo por meio da promessa do amparo de Deus, que está conosco em todos os tempos.
Em meio aos nossos desesperos atuais (e aqui poderão ser lembrados muitos deles), também o Espírito quer auxiliar-nos, como fez com os discípulos e como fez com nossos antepassados. Ser comunidade de fé em nosso tempo, assim como foi na comunidade primitiva, também para nós implica um desafio. E esse só será superado a partir do Espírito, que nos capacitará a dar nosso testemunho de fé. Ele também nos auxiliará e renovará nossa fé em Cristo sempre de novo, possibilitando nosso testemunho prático ali onde estivermos.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
Senhor amado, nós queremos te agradecer porque cumpriste a tua promessa de enviar-nos o teu Santo Espírito. Por isso não ficamos abandonados e podemos crescer na fé em ti. Ele nos encoraja a chegar a ti com inteira confiança para confessar-te que não somos dignos de ser chamados teus filhos e tuas filhas. A nossa fé tem sido fraca muitas vezes. Amamos a nós mesmos, mas temos muita dificuldade para amar outras pessoas, principalmente aquelas que nos magoam. A nossa vida cristã e o nosso testemunho muitas vezes não têm vigor, e a nossa vida pouco reflete do infinito amor que tens demonstrado para conosco. Também damos atenção a tantas palavras de pessoas, que são contrárias às tuas palavras. Perdemo-nos em meio a tantos saberes e falas e, muitas vezes, nos encontramos sem rumo. Perdoa-nos se como comunidade de fé temos nos desesperado, não confiando em ti acima de todas as coisas, não permitindo que tua Palavra seja lâmpada para nossos pés e luz para os nossos caminhos. Por todos os nossos pecados: Perdão, Senhor, concede-nos a graça de um novo começo. Amém.
Bênção:
Que o Espírito Divino, vento suave da vida que revela a Cristo, nos encha com sua presença. Que o Espírito Divino, fogo que arde sem consumir, nos anime e alegre para o serviço ao próximo. Que rememore em nós os ensinamentos de Jesus Cristo. Que nos ilumine diante da escuridão deste mundo. Que, ao nos encontrarmos perdidos, aponte-nos novamente nosso Senhor, o Caminho, a Verdade e a Vida. Que assim nos abençoe o dinâmico Deus Triúno, Pai, Filho e Espírito Santo. Amém.
Bibliografia
BULTMANN, Rudolf. Teología del Nuevo Testamento. Salamanca: Sigueme, 1981.
MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O evangelho de São João. São Paulo: Pauli¬nas, 1989.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).