Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: João 17.1-11
Leituras: Salmo 68.1-10 e 1 Pedro 4.12-14; 5.6-11
Autor: Klaus A. Stange
Data Litúrgica: 7º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 1/06/2014
1. Introdução
O 7º Domingo da Páscoa encontra-se entre Ascensão e Pentecostes. Os textos e as leituras bíblicas sugeridas para este domingo têm como objetivo mediar consolo e ânimo para a comunidade cristã. Nessa direção já aponta o versículo da aclamação do evangelho para este domingo: “Jesus Cristo diz: Não os deixarei órfãos, voltarei para vocês” (Jo 14.18). O texto da prédica encontra-se no mesmo contexto, ou seja, no contexto das palavras de despedida de Jesus de seus discípulos. O texto é conhecido como a “oração sacerdotal de Jesus”, ocasião em que ele ora por si, por seus discípulos e por nós. O salmo sugerido para este domingo destaca o agir soberano de Deus em favor de seu povo. Ele se levanta, traz alegria e consolo, reverte o aparente fracasso em vitória. O texto da Epístola de Pedro também aponta para o Senhor vitorioso e anima a comunidade cristã a não esmorecer na fé, a despeito de adversidades e tentações. Percebe-se, portanto, que há uma estreita relação entre os textos sugeridos para este domingo.
2. Exegese
2.1 – Tradução, comparação de traduções e crítica textual
Para fins de comparação, usaremos a Bíblia de Jerusalém (BJ), Almeida Revista e Atualizada (ARA), Nova Versão Internacional (NVI) e Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH). Não se faz necessário discutir as variantes anotadas no aparato crítico do Novum Testamentum Graece, uma vez que as variantes são testemunhadas por manuscritos de menor valor.
V. 1 – A NVI traduz o verbo eipen como “orou”; porém esse verbo é o indicativo aoristo ativo de lego, que significa “falar, dizer”. A NTLH não realiza a tradução literal de doksazon, que é “glorifica”, assim como fazem as demais versões, mas interpreta o versículo e dá um possível sentido à palavra glorificar: “revela a natureza divina”. É compreensível a intenção da NTLH, pois a glorificação tem a ver com a revelação; entretanto, é preferível manter a tradução literal
de doksazon.
V. 2 – Ao contrário das demais versões, a BJ traduz eksousian por “poder” e não “autoridade”. As únicas versões que traduzem sarkos como “carne” são a BJ e a ARA. Percebe-se que a NVI (que traduz “humanidade”) e a NTLH (que traduz “seres humanos”) interpretam essa palavra e optam por explicar o que identifica sarkos.
V. 3 – Neste versículo, a única diferença entre as versões analisadas é o acréscimo “enviaste ao mundo”, feito pela NTLH.
V. 4 – A preposição epi possui diversos significados. Porém, neste versículo, a preposição está no genitivo, em ligação com ges, ou seja, um substantivo que identifica lugar. Assim, epi pode significar “sobre, em cima de, em”; poieso é o subjuntivo aoristo ativo de poieo, que significa “fazer, construir, praticar, efetuar”.
V. 5 – Novamente a NTLH não utiliza a tradução “glorificar”, mas interpreta a palavra como “mesma grandeza divina”. A preposição para, no dativo, significa “ao lado de, pelo lado de, perto, próximo de, com”. Literalmente, “ao lado de ti mesmo”. A BJ e a NVI utilizam “junto de/a ti”, e a ARA “contigo mesmo”. No final do verso, a BJ continua a utilizar a tradução “junto de”, enquanto as demais versões traduzem “contigo”.
V. 6 – Efanerosa é o indicativo aoristo ativo de φανερόω, que significa “revelar, mostrar, fazer conhecido”. O verbo tereo possui o significado de “guardar, manter vigilância sobre, manter, observar, cumprir”. Enquanto a BJ e ARA utilizam o significado de guardar, a NVI e a NTLH utilizam obedecer.
V. 7 – Gnokan é o indicativo perfeito ativo de ginosko, que possui diversos significados, sendo que o mais comum é “saber, conhecer”. Entretanto, o verbo também pode significar “reconhecer”. Por se tratar de um perfeito, também poderia ser traduzido como “têm conhecido” ou “têm reconhecido”. Parece-nos que é preferível utilizar a tradução reconhecer ao invés de conhecer, pois reconhecer diz respeito a admitir/afirmar algo que já é conhecido. As versões NVI e NTLH traduzem por “saber”.
V. 8 – Elabon é o indicativo aoristo ativo de lambano, que possui sentido ativo e passivo. No sentido ativo, pode significar “tomar, pegar, apossar-se, agarrar, receber, coletar” e, no sentido passivo, pode significar “receber, conseguir, obter, aceitar”. O significado “receber” é mais comum, porém aceitar (NTLH) e acolher (BJ) também podem ser usados. Ekselthon é o indicativo aoristo ativo de ekserchomai, que significa “ir embora, sair, partir, proceder, descender”.
V. 9 – Eroto é o indicativo presente ativo de erotao, que significa “perguntar, questionar, pedir, solicitar, suplicar”. A preposição peri é traduzida como “por” no sentido de “em favor de”. Outra tradução poderia ser “em favor deles”.
V. 10 – Panta é o nominativo neutro plural de pas e significa “todas as coisas, tudo”.
2.2 – Contexto
Judas acabara de deixar o recinto onde se encontravam Jesus e os demais discípulos (Jo 13.30). Jesus começa a despedir-se de seus discípulos. O que Ele tem para lhes dizer soa como um legado: “Um novo mandamento lhes dou: Amem-se uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros” (Jo 13.34; 15.12). “Mas o Conselheiro, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, lhes ensinará todas as coisas e lhes fará lembrar tudo o que eu lhes disse” (Jo 14.26). “Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo” (Jo 16.33).
No final desse discurso de despedida, encontramos uma oração que Jesus dirige a seu Pai, conhecida como a oração sacerdotal de Jesus Cristo. Jesus ora por si (v. 1-8), intercede em favor dos seus discípulos (v. 9-19,22-26) e, não por último, Jesus intercede por nós (v. 20-26). Ele pede ao Pai por proteção, por unidade, pelo permanecer na palavra e por glorificação.
2.3 – Gênero literário
Na perícope em estudo, temos diante de nós palavras que Jesus dirige a seu Pai celeste: uma oração. É uma conversa íntima que Jesus tem com seu Pai. Penso que é a partir desse horizonte, dessa perspectiva que precisamos procurar entender o texto e comunicá-lo à comunidade. Nesse sentido, o texto adquire uma grandeza e um significado teológico todo especial, pois Jesus está se despedindo de seus discípulos e indo ao encontro da cruz, onde exclamará: “Está consumado!” (Jo 19.30). Quais são as palavras que Jesus dirige a seu Pai num momento tão sensível, crítico de sua vida e ministério? O que o move? Quais são seus anseios? O que está em jogo?
2.4 – Análise de detalhes e atualização
Parece-me que o tema central do texto é a questão da vida eterna (Jo 17.2-3,8). A oração de Jesus não possui um fim em si mesmo, mas aponta para o propósito da fé, da vida eterna (cf. Jo 20.30-31). Ainda que Jesus esteja principalmente orando por si, o horizonte maior de seus pedidos são os discípulos e somos nós. Penso que, para o domingo que se encontra entre Ascensão e Pentecostes, cabe uma palavra com enfoque pastoral e evangelístico (no sentido de que o evangelho é anunciado). Nesse sentido, pontuo alguns temas (entre outros possíveis) que se destacam no texto por sua relevância teológica.
a – Mudança de perspectiva: Na oração de Jesus, há uma mudança de perspectiva. Se antes Jesus olhava para seus discípulos e para o mundo (Jo 16.33), agora ele volta seus olhos para o céu, para o Pai. A partir da perspectiva da eternidade, Jesus olha para seus discípulos, aqueles que o Pai lhe concedeu.
b – A hora: Se Jesus agora olha para seus discípulos na perspectiva da eternidade, ele o faz em estreita ligação com sua paixão e morte na cruz. Pois chegou a hora! – diz Jesus. No Evangelho de João, essa expressão denota um tempo ou uma etapa que está completa. É um kairos (cf. Jo 7.6-8). Em nosso texto, a chegada da hora aponta para a glorificação de Jesus (Jo 12.23), é chegada a hora de Jesus deixar este mundo e ir para o Pai (Jo 13.1). Chegou a hora de Jesus entregar sua vida e morrer numa cruz (Jo 12,27). No entanto, a hora que chegou não indica
apenas sofrimento e morte, mas aponta para o momento da glorificação de Jesus. Note que a glorificação ocorre não na ressurreição de Jesus, mas precisamente em sua morte (1Co 1.18).
c – Glorificação: Jesus pede ao Pai para que glorifique o Filho (Jo 17.1). Mas o texto também aponta para o fato de Jesus ter glorificado o Pai (Jo 17.4). Como Jesus glorificou o Pai? Primeiro, revelando o nome do Pai àqueles que lhe foram confiados pelo Pai (Jo 17.6). Segundo, dando-lhes, transmitindo as palavras do Pai (Jo 17.8). Na medida em que Jesus revela o nome do Pai e transmite as palavras do Pai, os discípulos conhecem a essência de Deus (Êx 3.14). Por isso o convite do evangelho para que as pessoas creiam (Jo 1.12) e invoquem (Jo
14.13) esse nome.
d – Vida eterna como (re)conhecimento do Pai e do Filho: Na glorificação de Deus, ou seja, à medida que Jesus torna visível a glória do Pai, revelando o seu nome aos discípulos, vida eterna é mediada (Jo 17.3). Vida eterna, portanto, não é uma coisa, um objeto, mas vida eterna consiste no constante (re)conhecer do Pai e do Filho. Por outro lado, (re)conhecer a Deus também não pode ser reduzido a um simples conhecer intelectual (gnosis). (Re)conhecer a Deus tem a ver com ser abrangido, envolvido por Deus. Em outras palavras, trata-se de ser envolvido num relacionamento vivo e pessoal com o Pai e com o Filho, descrito pela palavra crer ou permanecer em Cristo (Jo 15).
e – Justificação por graça: Jesus fala de pessoas que o Pai (do mundo) deu ao Filho (Jo 17.6-8). Quem são essas pessoas? Trata-se de um grupo exclusivo? Penso que não. Trata-se de pessoas que reconhecem que devem tudo a Deus. E especialmente reconhecem que a fé é dádiva de Deus. Reconhecem que foram atraídas para junto de Deus, chamadas. No Batismo, ouvimos esse chamado de forma bem pessoal. A iniciativa não é minha, mas de Deus. O fato de eu poder pertencer a Deus, o fato de poder crer é fruto da graça de Deus em minha vida. Quando Jesus ora ao Pai em favor de seus discípulos, ele me inclui em sua oração. Quando Jesus vai até a cruz, ele o faz em amor por mim. Ele me quer junto de si, a despeito de meus pontos fortes e fracos, a despeito de minha culpa e pecados. Pelo fato de ele ter dado o primeiro passo, posso confiar que ele também me sustentará e guardará até o meu dia final (Jo 17.11) .
Com sua oração de intercessão Jesus objetiva que eu não seja apenas um espectador de sua paixão e morte. Seu desejo é envolver-nos no evento da paixão. Ao redor da cruz de Jesus havia muitos observadores: soldados, peregrinos, fariseus, escribas, sacerdotes e muitas outras. O que é comum a todas elas é a distância. Para elas, a paixão e a morte de Jesus foram um grande espetáculo. Ainda hoje, em nosso mundo e em nossas comunidades, há muitas pessoas que assumem a posição de espectadores: elas veem o que acontece com Jesus. Elas têm um interesse pelos detalhes históricos no evento da cruz. Outras admiram-se da firmeza e perseverança de Jesus e como comprometeu sua vida com aquilo que ensinou. Outras pessoas têm profunda pena de Jesus: pena pelo fato de Jesus morrer de forma injusta, vítima de um processo jurídico corrupto, como ainda acontece muito em nossos dias. Todas essas perspectivas são válidas e importantes, mas são insuficientes. Em todas elas, eu continuo como espectador. O que Jesus imagina em sua oração é mais abrangente. Trata-se de conhecer quem eu sou e, principalmente, conhecer quem é Deus (Jo 17.3). Conhecer é mais do que tomar ciência, é também re-conhecer. Eu re-conheço o veredito de Deus, que me declara culpado. Mas, acima de tudo, também re-conheço sua absolvição através da cruz de Jesus Cristo. Pela fé eu digo “sim” ao evento da cruz. Onde há esse re-conhecimento, ali acontece transformação de vida. Quem experimenta o amor de Deus é constrangido por esse amor. E ele transforma meu pensar e agir.
Onde há esse re-conhecimento, ali Deus me concede sua comunhão. Comunhão que é inabalável (Rm 8.28ss), comunhão que mesmo a morte não é capaz de romper. É vida eterna na presença de Deus. Estou envolvido na comunhão da Trindade! Onde acontece re-conhecimento, ali Deus alcança seu propósito em e com a minha vida, ali a obra de Jesus, sua paixão e cruz frutificam.
3. Imagens para a prédica
Como se trata de um texto que apresenta uma oração de Jesus em favor dos discípulos, em nosso favor, talvez seja uma boa ideia desenvolver a mensagem valorizando uma linguagem meditativa e reflexiva. Ajudar a comunidade a perceber que nós somos o grande tema da oração de Jesus. Talvez a prédica pudesse iniciar exemplificando a curiosidade de crianças (e adultos) quando segredos são cochichados pelos pais. Às vezes, como crianças, paramos atrás da porta tentando ouvir o que os pais estão dizendo a nosso respeito. Semelhante expectativa poderíamos ter para ouvir as palavras que Jesus diz a seu pai celeste.
Jesus tem uma grande preocupação: envolver seus discípulos na comunhão com ele e com o Pai; Jesus deseja que nós re-conheçamos quem ele e o Pai são, que creiamos nele, que tenhamos a vida eterna.
À luz da eternidade, Jesus intercede em nosso favor. Sua hora chegou, e ela passa pela cruz. Mas é exatamente na cruz que a glória de Deus se manifesta. O evento da cruz não quer ser apenas observado, mas nos quer envolver pessoalmente e convida-nos a crer e re-conhecer Deus em Jesus Cristo.
A prédica poderia finalizar com um claro convite que o próprio evangelho, que está contido no texto, faz à comunidade. É um convite à fé, ao re-conhecer, à vida eterna.
4. Subsídios litúrgicos
Hinos: HPD I nº 45 – Um desejo ardente em mim existe; HPD I nº 56 – Ó Jesus, Senhor amado; HPD II nº 414 – Quem quer falar do amor; HPD II nº 417 – Igreja que serve, serve.
Oração: Senhor Jesus Cristo, tu vieste ao nosso encontro! Vieste ao nosso encontro porque nos amas. Assumiste um caminho de sofrimento e cruz. Andaste esse caminho para que nós pudéssemos encontrar o Pai. Ajuda-nos a compreender corretamente a tua paixão e morte. Ajuda-nos a perceber a tua glória revelada na cruz, a compreender o mistério de teu amor. Kyrie eleison (HPD II nº 342 ou outro Kyrie).
Senhor, intercedemos por todos aqueles que têm dificuldades para compreender o teu agir. Lembramos das pessoas que passam por situações difíceis, às vezes incompreensíveis. Ajuda-os para que possam reconhecer na tua cruz o teu amor. Lembramos, Senhor, de todos aqueles que vivem com incertezas em seus corações. Permita que encontrem junto à cruz um firme fundamento para a sua fé, fundamento que os sustente em meio a todas as dúvidas insolúveis. Rogamos e intercedemos por todos os que sucumbem debaixo de sua culpa. Mostra-lhes, Senhor, o que tu fizeste por eles e permita que possam fazer um novo início contigo, que possam recomeçar. Kyrie eleison (HPD II nº 342 ou outro Kyrie).
Senhor, deixa que a mensagem da cruz, a mensagem do evangelho ressoe em nossos corações nesta semana. E que também em nossa cidade e em nosso país possa ressoar o evangelho, para que pessoas se voltem a ti e encontrem em ti a vida (HPD II nº 342 ou outro Kyrie).
Senhor, tu mesmo sofreste e por isso tu tens um coração que se compadece de todos os que sofrem. Concede a tua presença aos doentes, aos que estão enlutados, aos que vivem solitários, aos que não veem mais uma saída, aos que não sabem o que inventar com a sua vida (HPD II nº 342 ou outro Kyrie).
Senhor, deixa-nos viver esta semana como pessoas que re-conhecem o evento da cruz e o convite que dela emana. Queremos permanecer contigo, Senhor! Como pessoas que te re-conhecem e que em ti encontram vida eterna. (HPD II nº 342 ou outro Kyrie) Amém!
Bibliografia
BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
GINGRICH, F. Wilbur. Léxico do Novo Testamento: Grego – Português. São Paulo: Vida Nova, 2003.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).