Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: João 18.33-38a
Leituras: Daniel 7.9-10, 13-14 e Apocalipse 1.4b-8
Autora: Cristina Scherer
Data Litúrgica: Domingo Cristo Rei
Data da Pregação: 25/11/2012
1. Introdução
O Domingo Cristo Rei é celebrado por decisão do papa Pio XI em 1925, por ocasião do aniversário dos 1.600 anos da realização do Concílio de Niceia em 325. O objetivo era festejar o reinado de Cristo. O nome completo dessa festa era: Festa-mor ao nosso Senhor Jesus Cristo, o Rei do Universo.
A necessidade de celebrar o Cristo Rei ocorreu em decorrência do avanço do ateísmo e da secularização da sociedade. Era necessário afirmar a soberana autoridade de Cristo sobre as pessoas e instituições. Assim, o Domingo Cristo Rei foi instituído como arma contra as “forças destruidoras” da época, que eram uma consequência do clima político e socioeconômico daqueles anos. Posteriormente, deu-se um destaque ao caráter cósmico e escatológico da realeza de Cristo. O papa Paulo VI transferiu a festa do Cristo Rei para o último domingo do ano litúrgico, reinterpretando o seu significado e colocando-o no contexto escatológico, que é próprio desse domingo.
Um estudo mais aprofundado sobre a origem dessa celebração no calendário litúrgico e sobre o sentido da mesma, do domingo da Eternidade e do dia de Finados encontra-se na tese de mestrado de Tânia Cristina Weimer, mencionada na bibliografia.
As leituras do último domingo do ano eclesiástico apresentam a realeza de Cristo com imagens bíblicas que expressam o caráter espiritual de Cristo. As leituras destacadas para esse domingo são as de Daniel 7.13-14 (a vinda do Filho do Homem) e de Apocalipse 1.5-8 (Cristo – o Senhor dos senhores, sobre todos os reis terrenos). O colega Odair Braun, que fez um comentário mais extenso sobre as leituras bíblicas do dia, afirmou: “Anunciar Jesus Cristo como Rei não deve levar-nos ao triunfalismo. Pelo contrário, deve levar-nos a crer no resgate da verdade e da dignidade, na renovação da vida e da sociedade a partir da boa-nova trazida e anunciada por Jesus Cristo” (PL 31, p. 296).
O texto de pregação destaca o diálogo entre Jesus e Pilatos (Jo 18.33-37), que quer ajudar a comunidade cristã a acolher o reinado que se expressa na verdade. O critério da existência do reinado de Cristo é a verdade, pois somente ela é capaz de libertar o povo e conduzi-lo ao reino de paz e justiça. Cristo é rei para trazer vida plena a seu reinado, para criar um povo real, livre de qualquer escravidão humana. A realeza de Cristo é universal e tem um poder real sobre tudo e todos.
2. Exegese
Os diálogos entre Pilatos e Jesus giram em torno dos títulos concedidos a Jesus. As autoridades judaicas levam Jesus perante a autoridade romana (18.28-19.16a) para que essa julgue “corretamente” o fato de um homem do povo judeu ser chamado de “rei dos judeus” ou “Messias” e “Filho de Deus”. Esses dois títulos conferidos a Jesus são apresentados nos quatro evangelhos.
Chama a atenção que esse interrogatório acontece dentro e fora do Pretório (local dos processos judiciais). Conforme João 18.28, a conversa de Jesus com Pilatos acontece dentro do palácio do governador romano. Mais tarde, numa segunda conversa (Jo 19.8-12), o tema gira em torno da origem de Jesus e de seu poder. Interessante é observar que os judeus que acusam Jesus não entram no palácio: todas as acusações são feitas do lado de fora do mesmo. Isso se deve ao fato de que naquela noite os judeus iriam celebrar a Páscoa e assim não deveriam estar contaminados, impuros, por entrar num ambiente “pagão”. É o governador que sai e vai ao encontro deles. Entregam Jesus sob a alegação: “Se não fosse esse homem um malfeitor, não o entregaríamos”. Ao invés de uma acusação concreta sobre a pessoa de Jesus, surge uma afirmação imprecisa: ele é um malfeitor. Dessa forma, o julgamento do “mundo” sobre Jesus já está feito. No Evangelho de João, o processo de Jesus torna-se objeto de interesse público.
Pilatos não deseja se envolver na questão que lhe é trazida. Pede às autoridades judaicas que julguem, elas mesmas, o caso, conforme “a vossa lei”. Mas essas não aceitam e afirmam ser esse um caso de blasfêmia e subversão, o que também diz respeito ao Estado romano; por isso exigem uma posição. Os judeus não querem aplicar a sua lei, pois anteriormente é expresso “não nos é permitido matar ninguém” (Jo 18.31b). João deixa claro que a jurisdição dos judeus era limitada, sendo que podiam instituir processos segundo a lei judaica, emitir sentenças, porém não podiam executar a pena capital. Pilatos não deseja se envolver diretamente no caso e tenta dar uma solução que lhe trará menos problemas, devolvendo a questão para os judeus e, no fim, lava suas mãos como expressão de indiferença e fuga da verdade.
Pôncio Pilatos executa um interrogatório para saber qual é a culpa de Jesus. Esse alto funcionário do Estado romano passa a fazer parte da história do cristianismo, sendo até mencionado na confissão de fé (Credo Apostólico). Ele foi enviado como procurador para a Judeia durante o governo de Tibério e exerceu o poder durante dez anos (26-36 d.C.). Era conhecido por agir em seu governo com tirania, corrupção, crueldade, sendo citado por Filon como “de natureza inflexível, obstinado e duro” (BLANK, 1991, p. 68).
A iniciativa da prisão e morte de Jesus partiu dos sumos sacerdotes e saduceus. Porém a autoridade romana, na pessoa de Pôncio Pilatos, tinha em suas mãos a responsabilidade do supremo poder de decisão. Ele proferiu a sentença de morte contra Jesus. Nos evangelhos de Lucas e João, há a tendência de culpar mais as autoridades judaicas do que Pilatos na sentença de morte de Jesus. Sabe-se, porém, que Pilatos não ajudou Jesus em seus direitos, mas decretou uma sentença de morte injusta ou pelo menos consentiu com ela.
Eis que começa o diálogo. Pilatos pergunta: “Tu és o rei dos judeus?”. Essa pergunta é a mesma nos quatro evangelhos, bem como a resposta de Jesus: “Tu o dizes”. A diferença do Evangelho de João para os outros é a interseção (v. 34-36) que há entre a pergunta de Pilatos (v. 33) e a resposta de Jesus (v. 37b). Também há uma diferenciação no que diz respeito à interpretação da resposta, texto próprio do discurso joanino (v. 37b).
Pilatos acolheu a acusação dos judeus (v. 34 e 35), pois acusaram Jesus de ser pretendente a Messias, sendo acusado de “rei dos judeus”. Pilatos não o chama de rei de Israel, mas rei dos judeus, demonstrando assim desprezo e desrespeito para com o povo que esperava ardentemente a vinda do rei libertador, o Messias (Jo 1.49; 12.13; 6.14). A autoridade romana sabe que a pretensão de querer ser o “rei dos judeus” não é motivo para condenar Jesus e pergunta: O que fizeste? (v. 35b). Sabe que precisa de um fato jurídico palpável. Talvez Pilatos esteja inclinado, a partir dessa pergunta, a considerar Jesus realmente inocente. Agora Jesus pode expor seu próprio conceito de “rei” e “realeza”. Jesus passa a dar seu testemunho e afirma: “Meu reino não é deste mundo”, ou seja, sua origem não se baseia numa constelação de poder humano-política, mas está totalmente radicada na esfera divina.
Jesus não responde se é rei ou não, ele não entra no jogo de Pilatos, pois sabe que Pilatos e as autoridades judaicas entendem o reinado como extensão da política humana, sedenta pelo poder opressor e dominador. Jesus não é esse tipo de rei. Por isso diz que seu reinado não é deste mundo, fazendo alusão ao mundo de cima (reino de Deus) e ao mundo terrenal (reino humano), conforme João 8.23.
O reinado de Cristo sobre a humanidade é o tema central de nossa perícope. Esse texto possui paralelo com os sinóticos: Marcos 15.1-5, Mateus 27.11-14 e Lucas 23.2-5. Porém o diálogo a respeito da verdade é exclusivo do Evangelho de João. Interessante é observar que algumas palavras se repetem no texto e dão uma entonação sobre o sentido do mesmo. Aparecem três vezes as seguintes palavras: basileia (reino), basileus (rei), kosmos (mundo), aleteia (verdade).
No Evangelho de João, não aparece a expressão “reino de Deus” assim como nos outros evangelhos, mas aparece com frequência a afirmação de Jesus: “meu reino não é deste mundo”, afirmando assim que sua realeza não depende do poder mundano, mas de Deus somente.
Pilatos não entende esse reinado que Jesus veio inaugurar, que transcende o poder político corrupto. Pilatos deseja que Jesus se confesse como messias político meramente. Jesus nunca designou a si mesmo como “messias”, em grego, christos, palavra derivada do verbo chrio (ungir) e tradução do hebraico mashiach (ungido). Pilatos só pensa em defender o seu território e poder opressor e afirma: “Então tu és o rei?”. E Jesus responde, sem desmentir a formulação de Pilatos, pois essa contém parte da verdade: “Tu o dizes”. E segue falando sobre sua missão: “Eu vim para dar testemunho (martireso) da verdade, e quem está do lado da verdade, aquele que é da verdade, escuta a minha voz” (confira Jo 10.16: as ovelhas conhecem a voz do bom pastor).
Sua realeza demonstra-se no serviço ao próximo, a fim de promover vida, abrindo mão do poder que escraviza e oprime. A realeza de Jesus quer ser reconhecida neste mundo, mas não segue as regras do jogo dos poderosos. Sua opção é ser rei para servir e doar-se em favor do mundo. Aderir ao reino que Jesus propõe é aderir à verdade, não significa fugir deste mundo, de seus conflitos e opressões, mas lutar baseado na verdade para que haja justiça, libertação, solidariedade, responsabilidade e compromisso, vida plena. E a verdade liberta aqueles que aderem ao projeto do reino de Deus, que não vai ser inaugurado neste mundo, mas no eon vindouro, no novo céu e na nova terra (Ap 21).
Pilatos está preso à forma de pensar o mundo como ele mesmo conhece, fundado na mentira, opressão, desrespeito, falsidade. Não está apto a abrir-se à verdade que liberta e promove vida, assim como as autoridades judaicas também não estão. Pilatos termina o interrogatório de Jesus com uma pergunta lançada no ar: “A verdade, o que é a verdade?”. E, ao deixá-la no ar, dá a entender que é a sua verdade, a sua forma de pensar que vai imperar, pois ele não está interessado em saber a versão de Jesus e aprender dele. Está fechado para a verdade que liberta. Prefere aderir à “verdade” cômoda que lhe confere status, poder e domínio. Ao finalizar o interrogatório, Pilatos vai para fora e dá uma satisfação às autoridades judaicas, afirmando não ver nenhum motivo para condenar Jesus.
3. Meditação
Esses dois temas devem estar bem presentes na pregação do último domingo do ano eclesiástico. Jesus pretende instaurar seu reino neste mundo, mas não da forma como este mundo pensa e vê a realidade. Jesus quer instaurar sua realeza de Rei servidor com o testemunho da verdade e com a prática da não violência, da justiça, da lei do amor ao próximo, inclusive aos inimigos. É um reino que não é deste mundo, mas está neste mundo e nele deseja proclamar suas exigências. Ao proclamar sua realeza (v. 36), Jesus o faz em forma de testemunho (martiria). Não se trata de um “conhecimento” somente, mas de uma “confissão de fé” que perpassa toda a sua vida e forma de ser. Isso nos conduz ao segundo tema da pregação: a verdade.
Quem de fato vive e testemunha a realeza de Cristo neste mundo dá testemunho da verdade. E ela é parâmetro para a ação de “reinados mundanos”. A pergunta que Pilatos faz: “O que é a verdade?” leva a crer que ele mesmo não tem conhecimento nenhum da verdade e adia sua decisão final, demonstrando ter se tornado um mero instrumento nas mãos de autoridades locais. Pilatos somente poderia conduzir bem o processo contra Jesus se estivesse pautado na justiça, sendo neutro e tolerante, assumindo a posição que se coloca à disposição da exigência da verdade, sendo que Jesus mesmo afirmou: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Somente essa verdade é capaz de libertar todos os seres humanos. Jesus, em todo o seu ministério, deu testemunho da verdade e opôs-se à mentira que gera a incredulidade e a não aceitação do amor e da graça de Deus neste mundo. Estar aberto à verdade, dar testemunho somente dela e não de meias-verdades ou de “nossas verdades” é o desafio enquanto ainda estamos neste mundo. A celebração deste domingo deverá conduzir a comunidade para o testemunho da verdade que liberta de cegueiras e miopias espirituais e abrir as vistas e os corações para o reinado daquele que veio nos servir e ensinar o caminho do amor que produz vida plena.
4. Subsídios litúrgicos
Versículo de aclamação do evangelho ou de saudação:
“Eu sou o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último, o princípio e o fim” (Ap 22.13).
A poesia abaixo sobre a verdade poderá ser usada para finalizar a prédica. Após, cantar o hino 70 do cancioneiro O Povo Canta: A verdade vos libertará!
A verdade
A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
Porque a meia pessoa que entrava
Só trazia o perfil de meia verdade,
E a sua segunda metade
Voltava igualmente com meios perfis,
E os meios perfis não coincidiam com a verdade…
Arrebentaram a porta.
Derrubaram a porta,
Chegaram ao lugar luminoso
Onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
Diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual
a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela
E carecia optar.
Cada um optou conforme
seu capricho,
sua ilusão,
sua miopia.
(Carlos Drummond de Andrade)
Confissão de fé:
O Senhor da minha fé
Não creio no deus dos magistrados, nem no deus dos generais ou das orações patrióticas.
Não creio no deus dos hinos fúnebres, nem no deus das salas de audiências, ou dos prólogos das constituições ou dos epílogos dos discursos eloquentes.
Não creio no deus da sorte dos ricos, nem no deus do medo dos opulentos ou da alegria dos que roubam do povo.
Não creio no deus da paz mentirosa, nem no deus da justiça impopular ou das venerandas tradições nacionais.
Não creio no deus dos sermões vazios, nem no deus das saudações protocolares ou dos matrimônios sem amor.
Não creio no deus construído à imagem e semelhança dos poderosos, nem no deus inventado para sedativo das misérias e sofrimentos dos pobres.
Não creio no deus que dorme nas paredes ou se esconde no cofre das igrejas. Não creio no deus dos natais comerciais nem no deus das propagandas coloridas. Não creio no deus feito de mentiras, tão frágil como o barro, nem no deus da ordem estabelecida sobre a desordem consentida.
O DEUS da minha fé nasceu numa gruta. Era judeu, foi perseguido por um rei estrangeiro e caminhava errante pela Palestina. Fazia-se acompanhar por gente do povo; dava pão aos que tinham fome; luz aos que viviam nas trevas; liberdade aos que jaziam acorrentados; paz aos que suplicavam por justiça.
O DEUS da minha fé punha o homem acima da lei e o amor no lugar das velhas tradições.
Ele não tinha uma pedra onde recostar a cabeça e confundia-se entre os pobres…
O DEUS da minha fé não é outro senão o Filho de Maria, Jesus de Nazaré.
Todos os dias ele morre crucificado pelo nosso egoísmo.
Todos os dias ele ressuscita pela força do nosso amor.
(Frei Betto – Extraído do livro Salmos Latino-Americanos)
Cantos:
HPD 2, 317: Rei dos reis, Senhor dos senhores.
HPD 1, 95: Jesus Cristo é Rei e Senhor, seu é o reino e o louvor, é Senhor potente, hoje e eternamente.
HPD 2, 387: Eis a procissão do rei, nosso Deus.
HPD 2, 384: Exaltar-te-ei, ó Deus meu e Rei, e bendirei o teu nome.
O Povo Canta (OPC), 200: Eles queriam um grande rei.
A letra desta canção pode ser usada na oração de confissão de pecados ou cantada pela comunidade:
/: ELES QUERIAM UM GRANDE REI QUE FOSSE FORTE E DOMINADOR E POR ISSO NÃO CRERAM NELE E MATARAM O SALVADOR! :/
1. Quantos surdos que escutaram, quantos cegos que enxergaram, quantos coxos que andaram, só eles não enxergaram.
2. Quantas pessoas de má vida se converteram e aceitaram no que viram e que ouviram, só eles o rejeitaram.
3. Quantos vinham lhe escutar e escreviam pra não esquecer, que falava brilhantemente com a luz do amanhecer.
4. Jesus Cristo aceita o homem que se entrega inteiramente, não aquele apegado ao mundo, que hora é frio, outra hora é quente.
5. Os homens seguiam a lei de Moisés e de Abraão. Só não creram que Jesus Cristo veio nos trazer a salvação.
6. Jesus Cristo é o Rei dos reis, seu mistério é muito profundo. O seu Reino é lá do céu, não é reino aqui do mundo.
Bibliografia
BLANK, Josef. O Evangelho segundo João – 3ª Parte. Petrópolis: Vozes, 1991.
BORTOLINI, José. Como ler o Evangelho de João – o caminho da vida. São Paulo: Paulus, 1994.
KONINGS, Johan. O Evangelho segundo João – amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005.
WEIMER, Tânia Cristina. O último domingo do ano litúrgico – as celebrações desse domingo. Dissertação de Mestrado Profissionalizante em Liturgia. São Leopoldo: IEPG, 2003.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).