Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: João 19.16-30 (31-37)
Leituras: Isaías 52.13-53.12 e Hebreus 10.16-25
Autor: Walter Altmann
Data Litúrgica: Sexta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 03/04/2015
1. Introdução
O texto proposto para a pregação é a perícope do Evangelho de João. Como veremos, ele tem uma natureza narrativa que à primeira vista suscita a impressão de ter uma pretensão meramente histórica: a morte de Jesus aconteceu assim como é narrado aqui. Olhando mais a fundo, porém, o significado para a fé já se poderá depreender de algumas sutilezas da narrativa, que, inclusive, a diferenciam dos relatos paralelos nos evangelhos sinóticos. Essas diferenças não deveriam perturbar quem prega, nem esse deverá dificultar a recepção por parte dos ouvintes, detendo-se nelas. Se julgar oportuno ou necessário, quem prega poderá chamar a atenção dos ouvintes de que cada evangelista testemunhou a fé no crucificado a seu modo num determinado contexto e as comunidades diferentes entre si. E que nessa ocasião se pretende ouvir em particular o testemunho de João.
O sentido de uma perícope bíblica deduz-se também do contexto da obra em que está inserida, ou seja, nesse caso, em especial do Evangelho de João. Como comunidade de fé, no entanto, temos ainda o referencial maior da Escritura como um todo. Assim, ainda que a pregação se concentre na perícope do evangelho, as leituras do Antigo Testamento (Isaías) e das epístolas (Hebreus) dão importantes referenciais aos quais quem prega poderá apontar.
A identificação de Jesus com o servo sofredor de Isaías remonta já à comunidade primitiva, conforme vemos na proclamação de Filipe ao funcionário etíope (At 8.32-35). É uma mensagem consoladora para quem padece sob o próprio pecado ou está ferido no fundo do seu ser. Ele pode ser perdoado ou sarado pela inocência e misericórdia de outro alguém que sofre, no caso Jesus.
Quanto à perícope de Hebreus, é bom lembrar que o autor da epístola escreve a uma comunidade cristã já estabelecida, mas atribulada por oposição à fé, até mesmo perseguição. O apóstolo quer consolá-la e fortalecê-la na fé e na prática do amor, mesmo se isso lhe acarretar sofrimento. Reportar-se ao Jesus crucificado lembra-o de que, tendo o próprio Jesus sofrido ignominiosa morte, através da qual a ela concedeu perdão e vida, pode também ela perseverar na fé e no amor, mesmo em meio a tribulações.
2. Exegese
Enquanto os evangelhos sinóticos guardam muita semelhança entre si, o Evangelho de João, embora haja vários paralelismos, tem uma natureza muito própria, quais sejam, por exemplo, os discursos relativamente longos de Jesus. É provável que o autor tenha conhecido pelo menos uma tradição oral com parábolas e episódios narrados nos sinóticos, mas que também incluía uma história como a das bodas de Caná (Jo 2), ausente nos sinóticos. É do Evangelho de João que provém a noção do ministério de Jesus como abrangendo até três anos, pois nos sinóticos ele parece transcorrer no lapso de um ano só. De outra parte, João nada diz acerca do nascimento e da infância de Jesus. Contudo, assim como nos sinóticos, o ponto culminante da obra é a crucificação de Jesus, seguida de sua ressurreição. Sua importância é realçada ainda mais pelos longos discursos e ensinamentos de Jesus nos últimos dias anteriores à crucificação, relatados a partir do capítulo 13 e já sinalizando para o significado e a importância do que está por vir.
A tradição tem atribuído a autoria do evangelho ao apóstolo João, um dos doze, o que tem sido questionado. Na época, não era incomum nem considerado antiético atribuir-se um escrito a uma autoridade incontestável. A maioria dos exegetas se tem inclinado para uma origem do evangelho em espaço geográfico siríaco, não do entorno de Jerusalém, por volta da virada do século I a II. De um modo geral, eles também concordam que a redação de João sofreu algumas revisões no âmbito de uma escola joanina, ainda que não haja consenso quanto à sua extensão e radicalidade. O capítulo 21, que é considerado um adendo ao evangelho original, autoatribui o evangelho ao “discípulo a quem Jesus amava” (21.24), discípulo que se reclinara junto ao peito de Jesus quando esse apontou para o traidor entre eles (Jo 13.25) e que, à diferença dos sinóticos, também está com as mulheres junto à cruz quando da crucificação (Jo 19.26) e igualmente entre as testemunhas privilegiadas da ressurreição (Jo 20). Não há dúvida de que a menção desse discípulo, não referido pelos sinóticos, intenciona realçar a importância dos eventos e a fidedignidade do relato.
Comparado aos sinóticos, o relato da crucificação em João é menos dramático, mais sereno. Jesus carrega ele próprio sua cruz, não recebe a ajuda de ninguém (v. 17, cf. Mc 15.21 e par.). Já crucificado, método de execução tremendamente cruel e doloroso, Jesus dá recomendações de cuidado à sua mãe e ao discípulo amado, que passa a ser seu ilho e a abrigá-la e dela cuidar (v. 26-27). Antes de falecer, Jesus não expressa o abandono em que se encontra (“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”, Mc 15.34 e Mt 27.46) nem brada em alta voz, mas simplesmente declara: “Está consumado!”. Ou seja, João, ao reduzir aparentemente a dramaticidade do evento (não relata tampouco acerca do escárnio de quem passa ao largo), coloca claramente ênfase no fato de que o que está ocorrendo ali serve ao propósito salvífico de Deus.
Seria, porém, errôneo deduzir daí que João queria negar o sofrimento de Jesus ou a crueldade dessa morte. Embora ele, ao escrever o evangelho, possa ter tido em mente o ambiente influenciado pelos gnósticos, que desvalorizavam corpo e a matéria para afirmar a superioridade do espírito, ele sabe e quer deixar claro que em Jesus o Verbo eterno “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14). Precisamente nessa unidade do que é diferente, o eterno e o temporal, o espírito e o corpo, o divino e o humano, reside a glória de Deus (Jo 1.14), que podemos ver e dela testemunhar. Assim também na cena da crucificação. Ela é um evento perpetrado por humanos, mas esses servem ao propósito de Deus.
Pilatos, por pressão dos principais dos sacerdotes e clamor da multidão (em João, genericamente designada como “os judeus” [Cf. Jo 19.12], expressão inadequada para transposição direta a nosso tempo, por geradora de preconceito), decide entregar Jesus para ser crucificado (v. 16). E é precisamente ele quem determina colocar no cimo da cruz a inscrição “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus”, informando assim o motivo para a condenação. Outra vez, a enorme e quase irônica tensão entre a pequena e pobre Nazaré, de onde nada de bom podia vir (Jo 1.46), e o título político maior que alguém poderia deter, o de rei. E agora Pilatos já não cede à pressão dos principais sacerdotes, sugerindo ser colocado que Jesus havia afirmado ser rei dos judeus, sem sê-lo. Ao declarar “o que escrevi escrevi”, Pilatos, sem sabê-lo, transformou-se numa “testemunha da verdade de Jesus” (THYEN, p. 736). E mais: ao colocar a inscrição em três idiomas, hebraico (língua sagrada da Terra Santa), latim (língua oficial do Império Romano) e grego (língua franca difundida em todo o Império), “a inscrição tornou-o ironicamente sem querer no primeiro missionário de Jesus para além das fronteiras linguísticas de Israel” (ibidem).
Também os soldados têm participação ativa nos planos de Deus para salvação do mundo. A referência ao Salmo 22.18 em relação à repartição das vestes de Jesus e ao sorteio de sua túnica serve ao propósito de confirmar isso. (Não é necessário nem plausível especular quanto a um sentido simbólico para a túnica como uma peça só, por exemplo a unidade da igreja; trata-se simplesmente de uma justificativa para a necessidade de sorteio.) Analogamente, Is 53.12 pode estar por trás da menção ao fato de Jesus ter sido crucificado entre outros dois, embora João nada diga acerca de sua condição ou razão de sua condenação nem mencione um diálogo de Jesus com qualquer um deles. João vê simplesmente o acontecido como prefigurado na Escritura.
Maria, mãe de Jesus, estivera presente lá no início do ministério de seu ilho nas bodas de Caná. E dissera aos criados, referindo-se a Jesus: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2.5). Agora, na cena da crucificação, ela se encontra outra vez junto a ele (diferentemente dos sinóticos, aqui “junto” à cruz). Com ela havia mais duas ou três outras mulheres (o texto dá margem a ambas as interpretações), além do discípulo amado. Especulou-se que esse pudesse representar a cristandade gentílica, enquanto Maria representaria a cristandade judaica. Mais plausível é que o discípulo amado confira veracidade e apostolicidade ao evento acontecido, enquanto o conjunto de personagens caracteriza a comunidade de fé. Ao pé da cruz, essa pequena comunhão de pessoas configura a comunidade messiânica, em que todos “são um” (Jo 17.11 e 21) e creem em Jesus como salvador.
Também a cena em que Jesus declara ter sede e os soldados lhe servem vinagre tem referência bíblica direta, a saber: o Salmo 69.21. Assim, os soldados tornam-se mais uma vez partícipes ativos do evento da redenção, porque não simplesmente praticam um gesto aleatório (pouco importa se com o propósito de infligir-lhe uma agrura a mais pelo gosto amargo do vinagre ou se, ao contrário, para com seu efeito amenizar sua dor), mas acabam cumprindo a Escritura, e isso é o que importa para o evangelista.
Por fim, o gesto de Jesus ter inclinado a cabeça e rendido (literalmente, “dado”, “entregado”) o espírito não deve ser visto como a derrota ou o fracasso final de um ser humano esvaído das últimas forças, mas, ao contrário, é ele quem mantém até o fim a iniciativa e, ao morrer, dá seu espírito. Afinal, conforme Jo 7.39, o Espírito seria dado apenas quando Jesus tivesse sido glorificado, o que acontece exatamente na crucificação. E, uma vez dado, ele “vos guiará a toda a verdade” (Jo 16.13) [cf. THYEN, p. 744-5].
Ou seja, na crucificação, Jesus é glorificado, e os demais personagens têm seu devido lugar na história da salvação.
3. Meditação
Pregar na Sexta-feira da Paixão é, ano após ano, um desafio renovado. Quem prega e quem ouve a pregação estão sempre confrontados com o âmago mais profundo e decisivo da fé cristã. Nem por isso é fácil fazer jus a ele. Ao contrário. Talvez a repetição anual nos dificulte perceber o quanto de escandaloso encontra-se precisamente nesta mensagem: de que na morte desse justo nós pecadores tenhamos vida.
Como transmitir essa mensagem de modo a que não pareça uma mera repetição piegas do que sempre vem sendo dito nem um absurdo que alguém de bom juízo não tem como assimilar? Eis o desafio.
Numa sociedade competitiva como a nossa, somos propensos, induzidos até, a pensar que “somos o que conquistamos”. Somos nós, através de nossos atos, que nos desenvolvemos no que somos. Valorizamos ao extremo nossas conquistas, diminuímos o valor de tudo quanto temos recebido ou até o esquecemos. Competir passa a ser mais importante do que partilhar. Pensamos que é melhor depender de nosso mérito do que experimentar a graça.
Mas isso não é verdade; é apenas uma grande ilusão. Em verdade, “somos o que recebemos”. Já a vida nos é inteiramente um presente, para o qual nada pudemos contribuir. A partir daquele momento, tudo que é essencial para sobreviver e nos desenvolver passamos a receber. Já num sentido restrito, nada espetacular, mas antes “normal”, é da natureza das relações entre pai e mãe, de um lado, e filhos e filhas, de outro, que se produza uma transferência de bens de um lado a outro. As crianças aprendem não apenas com os pais, mas dos pais, isto é, algo que é deles. Conhecimento, experiência e também bens se transferem aos descendentes. Ampliando, observamos que a relação entre pessoas em geral é uma constante transferência de bens, materiais, espirituais, culturais, simbólicos. E, não por último, dependemos de toda a criação, pela qual Deus nos supre “abundante e diariamente de todo o necessário para o corpo e a vida” (Lutero, Catecismo Menor).
No entanto, pode alguém por meio de sua morte dar vida a outra pessoa? Ou, perguntando inversamente, pode alguém ter vida pela morte de outra pessoa? Esse é o desafio maior ao pregarmos na Sexta-feira da Paixão. Ora, nossa relação com Deus segue o mesmo padrão, apenas elevado ao infinito, ao eterno. Diante dele não serve para nada o que conquistamos, mas exclusivamente o que recebemos. Foi essa a descoberta libertadora que fez Lutero em meio à desesperadora angústia de não conseguir fazer tudo quanto ele supunha que Deus lhe estivesse exigindo. Quando descobriu que podia viver “por fé” e não lhe era exigido viver “por obras”, sentiu-se como que adentrando livremente as portas abertas do paraíso. E é precisamente o evangelista João que nos deixou a lapidar afirmação: “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3.16).
Tudo o mais que recebemos desde o nosso nascimento pode ser limitado, e de fato é. Inclusive a vida que nos foi dada terá seu fim com a morte. Mas a entrega total do Filho de Deus é para nós também um presente total que, inclusive, desfaz todas as nossas limitações e apaga todos os nossos pecados. Todos, sem exceção, ficam sem efeito. A própria morte é derrotada e substituída pela vida eterna.
Como bem diz MALSCHITZKY (p. 170) em seu auxílio homilético a esse texto: “Como fios em um tapete, o Verbo e a carne, o humano e o divino, o sofrimento e a glória vão sendo entrelaçados para trazer à luz a história da redenção”.
4. Imagens para a prédica
Podemos ter vida pela morte de outro alguém?
Lembro da tragédia da Boate Kiss. Conheço quem perdeu um ilho que havia conseguido sair a tempo da boate, mas voltou mais de uma vez para salvar outras pessoas. Veio a falecer em consequência da intoxicação.
Não é incomum casos em que alguém consegue salvar outra pessoa de afogamento, mas acaba afogando ele próprio.
Em ambos casos foi dada a vida para que outras pessoas vivessem.
Também podemos lembrar o exemplo de uma criança com doença grave que requer um tratamento custoso, para o qual os pais se dispõem a empregar todos os seus bens. Não chegam a ponto de dar a própria vida, mas há, ainda assim, a disposição de entrega de tudo quanto lhes pertence como meio de vida.
5. Subsídios litúrgicos
Sugiro que já no início do culto, no final do introito (ou da saudação), se levante a pergunta se é possível dar a vida por outras pessoas entregando a sua própria ou se é possível ter vida pela morte de outra pessoa, mencionando que sobre isso se pretenderá meditar e refletir neste culto.
O culto deverá ser desenvolvido então de forma a propiciar breves momentos de meditação silenciosa, talvez após a leitura de cada um dos textos bíblicos e também antes de começar a pregação e inclusive ao terminá-la.
A escolha dos hinos recairá sobre aqueles que propiciam a reflexão e centrados no sentido da vida e na paixão de Cristo.
A oração final deverá incluir a gratidão por todos os bens que nos são dados em nossa vida e o pedido de que eles sejam experimentados como realidade em todo o mundo.
Antes da bênção de encerramento, pode ser expressa a confiança de podermos ir de regresso aos nossos lares e cotidiano em confiança pelas dádivas do perdão e da vida recebidas em Jesus.
Bibliografia
ALTMANN, Walter. Lutero e libertação: Releitura de Lutero em perspectiva latino-americana. São Leopoldo e São Paulo: Sinodal e Ática, 1994. p. 61-76.
BRAKEMEIER, Gottfried. Observações introdutórias referentes ao Evangelho de João. In: Proclamar Libertação VIII. São Leopoldo: Sinodal, 1982. p. 7-15. MALSCHITZKY, Harald. Sexta-feira da Paixão. João 19.16-30. In: Proclamar Libertação 25. São Leopoldo: Sinodal, IEPG, 1999. p. 170-174.
THYEN, Hartwig. Das Johannesevangelium. Tübingen: Mohr (Siebeck), 2005.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).