As bodas em Caná
Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: João 2.1-11
Leituras: Isaías 62.1-5 e 1 Coríntios 12.1-11
Autoria: Emílio Voigt
Data Litúrgica: 2º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 17/01/2016
1. Introdução
Em edições anteriores de Proclamar Libertação, há vários auxílios homiléticos sobre a perícope. O presente subsídio entende-se como um complemento. O texto previsto é apropriado para o período litúrgico. Glória, bodas, alegria, esperança são elementos comuns entre Isaías 62.1-5 e o texto da prédica. A correspondência com 1 Coríntios 12.1-11 não é tão evidente. Considerando o papel de Maria no episódio, é possível fazer associação entre os dons do espírito e os ministérios de pessoas “anônimas” na comunidade.
2. Exegese
A falta de correspondência nos sinóticos é um argumento para sugerir que a narrativa seria criação do círculo joanino para fazer contraposição ao culto a Dionísio. Na mitologia grega, Dionísio era o deus do vinho, aquele que dominava os segredos do cultivo de parreiras e da produção de vinho. Mais plausíveis, porém, são as correlações com o Antigo Testamento e a literatura judaica. Também se poderia presumir que a acusação de Jesus como beberrão de vinho (Mt 11.19/ Lc 7.34) constituísse um pretexto para a omissão do relato pelos sinóticos.
V. 1-2 – Na tradição judaica, apenas o sábado tem nome definido. Os outros dias são designados como primeiro, segundo, e assim por diante. O terceiro dia corresponde à nossa terça-feira e era dia comum para festas de casamento. Era considerado o dia apropriado para bodas, porque somente no terceiro dia da criação é dito duas vezes: “e viu Deus que era bom”. Há que se considerar, porém, que as celebrações de núpcias poderiam durar uma semana inteira. Os convidados e as convidadas iam e vinham sem muita cerimônia, ou seja, não participavam necessariamente de todo o festejo. É até possível que a chegada de Jesus e seu grupo tenha ocorrido alguns dias depois do início da festa.
Maria, a mãe de Jesus, nunca é citada pelo nome no Evangelho de João. Além das referências nessa perícope, ela é mencionada como mãe ainda em 6.42 e 19.25-27. A cena em Caná (o primeiro sinal) e a cena na cruz (o fim da atuação pública de Jesus) são os dois únicos episódios com a presença de Maria. É estranho que o evangelista não se refira a ela pelo nome, enquanto menciona José (1.45; 6.42) e nomina outras mulheres: Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena (Jo 19.25). Pode haver uma razão simbólica ou teológica nesse procedimento.
Além de Maria e Jesus, também os discípulos foram convidados. O capítulo 1 faz referência às vocações de André, Simão, Filipe, Natanael e de uma pessoa cujo nome não é informado. Depois do episódio de Caná, não há mais relatos de vocação. Em 6.67, o grupo está completo. É provável que, nas bodas, o evangelista já esteja falando dos doze. Isso parece estar implícito na conclusão da perícope: os seus discípulos [os doze] creram nele. O v. 12 pressupõe que também os irmãos de Jesus estavam presentes.
V. 3 – Acabou o vinho! Não se sabe se faltavam condições financeiras, se a família errou nos cálculos, se vieram mais pessoas além do esperado, se as pessoas beberam mais do que o comum. O evangelista não se preocupa com o motivo, mas com a constatação do problema. A falta de vinho representava mais do que um constrangimento. Numa cultura fortemente marcada por padrões de honra e vergonha, o caso traria desonra à família anfitriã. Apoiada no Salmo 104.15, a tradição rabínica afirma que é obrigação do dono da casa alegrar seus filhos e convidados com vinho (b Pes 109a). Não está explícito se a fala de Maria é uma simples constatação ou um pedido para que Jesus resolva o problema. Quando ela conversa com Jesus, o fato parece não ser do conhecimento das pessoas convidadas nem do próprio noivo. Seja como for, Maria tem uma informação e considera relevante transmiti-la ao filho.
V. 4 – Jesus responde à interpelação de Maria com uma pergunta: O que há entre mim e ti, mulher? Chamar a mãe de mulher não constituía grosseria ou falta de respeito. É assim que ele irá se referir novamente à sua mãe em Jo 19.26. Nos mesmos termos também se dirige a outras mulheres (4.21; 8.10; 20.15). Não há, contudo, outros casos na Bíblia em que um filho se dirige dessa forma à sua mãe. Teríamos aqui uma particularidade do Evangelho de João? A expressão – “o que há entre mim e ti?” – manifesta uma distância incomum. É com as mesmas palavras que demônios dirigem-se a Jesus no Evangelho de Marcos (Mc 1.24; 5.7).
Há quem defenda que Maria é mantida a uma certa distância, porque a hora de seu filho não havia chegado. A hora que ainda não chegou é referência ao sofrimento, morte e glorificação de Jesus (Jo 7.30; 8.20; 12.23; 17.1). Ou seria essa distância uma afirmação da independência de Jesus? Com isso o evangelista indicaria que Jesus realiza milagres no momento que decidir e de acordo com a sua vontade (que é a vontade de Deus: 4.34; 5.30; 6.38-40)?
V. 5 – A reação de Maria parece estar em descompasso com a réplica de Jesus. Talvez seja uma indicação de que a resposta – a minha hora não chegou – não tem relação com o problema da falta de vinho. A orientação de Maria – “fazei tudo o que ele vos disser” – demonstra autoridade. Se ela era conhecida da família a ponto de poder intervir junto aos serviçais, não o sabemos. Em todo caso, Maria coloca Jesus na posição de anfitrião ou chefe dos serventes. Agora é ele quem dará as instruções.
V. 6 – Uma metreta correspondia a 39 litros, de maneira que cada um dos seis vasos comportava entre 78 e 117 litros. Logo, a quantidade total estaria entre 468 e 702 litros. A água dos vasos servia aos rituais de purificação que aconteciam antes e depois da refeição. O ritual de purificação judaico não era um mero cerimonial. Essa prática mantinha acesa a tradição bíblica de busca por santidade (Lv 19.2). Especialmente os fariseus procuravam levar a sério a identidade de Israel como povo de Deus (Êx 19.6). Aquilo que se esperava dos sacerdotes em Jerusalém os fariseus procuravam aplicar na vida diária. Por isso é preciso ter cautela com a interpretação, muito comum na exegese clássica, de substituição do ritualismo judaico. Segundo essa compreensão, a água dos rituais de purificação seria substituída pelo vinho, que representa a nova ordem de salvação. Há que se perguntar se essa perspectiva alegórica está no horizonte do texto ou se é um construto que, em alguns casos, pode conter um implícito enredo antijudaico. Mesmo que alguém perguntasse como o ritual de purificação seria realizado, já que a água foi substituída pelo vinho, essa não é a preocupação do texto. O foco do relato está no sinal e não em uma possível interpretação alegórica ou polêmica da água.
V. 8 – Tudo o que Jesus faz é ordenar que se encham os recipientes com água e que se leve uma prova do líquido ao mestre de mesa. Não há nenhuma palavra ou ação que decreta a transformação da água em vinho. No ambiente greco-romano, o mestre de mesa era a pessoa encarregada para que as bebidas e os alimentos estivessem bem preparados e fossem servidos no tempo certo. Na literatura judaica, não há atestação da existência de um ofício semelhante.
V. 9-10 – O mestre de mesa prova a bebida, sem saber de onde viera. A transformação da água em vinho é revelada agora ao leitor e à leitora do evangelho. A regra segundo a qual se ofereceria primeiro o melhor vinho e depois um vinho de qualidade inferior é desconhecida das fontes literárias. A menção a esse suposto costume tem o propósito de acentuar o predicado do vinho. Além de grande quantidade, sua qualidade é incontestavelmente melhor ao que foi servido anteriormente. A constatação corresponde à aclamação, um elemento característico em narrativas de milagre. Todavia a pessoa que elogia a qualidade do vinho não percebe que está aclamando um milagre. Além dos servos, o evangelista informa que também os discípulos ficaram sabendo, embora não se diga em que momento tomaram consciência do fato.
V. 11 – A perícope encerra com a indicação de que há mais para vir: Jesus deu princípio a uma série de sinais. Aqui começa a se concretizar o que ele prometera a Natanael: “maiores coisas do que estas verás” (Jo 1.50). Princípio não defi apenas o primeiro sinal, mas é também um arquétipo para os sinais que se sucederão. Através dos sinais, a glória de Jesus, que outra não é senão a glória de Deus (1.14), se manifestará cada vez mais. No Evangelho de João, o sinal alcança seu objetivo quando desperta a fé. Por isso o evangelista conclui: “e os seus discípulos creram nele”. Chama a atenção que João usa com frequência o verbo “crer”, porém não utiliza o substantivo “fé”.
3. Meditação
A aparente dureza com que Jesus trata sua mãe e o volume de vinho gerado podem causar embaraço. Não é incomum ouvir questionamentos como: por que os sinais da glória de Jesus iniciam justamente com a transformação de água em quantidade tão exorbitante de bebida alcoólica? Ele não poderia ter feito algo mais “útil”, necessário ou urgente? Muitas vezes, os questionamentos soam até como repreensão à ação de Jesus. Nesse caso, não se está considerando o contexto do texto. Para compreender o episódio, é preciso libertar-se do anacronismo.
O anacronismo consiste em utilizar conceitos e valores de um tempo para avaliar eventos de outra época. No Antigo Israel, o vinho era elemento indispensável nas refeições festivas. A tradição bíblica fala do vinho como algo que alegra e dá ânimo (Jz 9.13; 2Sm 16.2; Sl 104.15; Pv 31.6). É considerada feliz a pessoa que pode adquirir, sem dinheiro, leite e vinho (Is 55.1). Jesus, que foi chamado de glutão e bebedor de vinho (Mt 11.19/Lc 7.34), fala da expectativa de tomar vinho no reino de Deus (Mc 14.25). Obviamente, não se pressupõe que o reino de Deus seja uma eterna farra. Por outro lado, a Bíblia refere-se às consequências danosas do vinho (Pv 23.20s,29s; Is 28.7s) e igualmente desaprova a embriaguez (Is 5.22; Lc 21.34; Rm 13.13). A abordagem, porém, não é moralista nem determinada pelas preocupações atuais.
Do ponto de vista do texto bíblico, festa com vinho é expressão de convivência e alegria. Seguindo essa linha, não há nenhuma perversão em tomar vinho ou cerveja. A pergunta pela conveniência, entretanto, é legítima, pois nem sempre o resultado é a alegria. Não se pode negligenciar as consequências danosas da dependência e do consumo desmoderado. Violência, abuso sexual, acidentes, relacionamentos desfeitos, carreiras interrompidas, vidas ceifadas são alguns exemplos. Nesse sentido, as recomendações apostólicas (Rm 14.21; 1Co 6.12) são oportunas quando praticadas sem moralismo ou legalismo.
Círculos proféticos do Antigo Testamento relacionam abundância de vinho com a expectativa de novos tempos (Am 9.13-14; Is 25.6-7; Jr 31.12-14). Núpcias são igualmente símbolo para dias messiânicos (Is 54.4-8; 62.4-5). A partir dessa perspectiva, o sinal em Caná manifesta uma realidade escatológica: o tempo messiânico iniciou. A glória de Jesus começa a se revelar (epifania). Se o vinho é expressão de alegria e as bodas um símbolo do reino de Deus, faz todo sentido que Jesus realize o primeiro sinal numa festa de casamento.
O milagre surgiu de uma necessidade. Não era uma questão de luxo, mas de honra. Muitas festas de núpcias atuais são marcadas por sofisticação em trajes, decoração, cardápio, efeitos visuais e sonoros. Naquela ocasião, a preocupação básica era a satisfação das convidadas e dos convidados com comida e bebida. A carência de vinho deixaria de alegrar as pessoas e traria desonra à família anfitriã. Honra e vergonha eram valores que determinavam o status social. A perda da honra poderia ser equiparada à perda da própria existência. A ação de Jesus resolve duas questões urgentes e necessárias: evita a desonra e favorece a alegria.
Aparentemente, o milagre foi percebido somente pelos discípulos, pela mãe de Jesus e por alguns servos. O mestre de mesa constatou a diferença na qualidade do vinho, mas não tomou conhecimento da procedência. Possivelmente, a maioria não ficou sabendo o que aconteceu nos bastidores. Na compreensão comum, tal proeza merecia e deveria ser divulgada. Tanto vinho com tão boa qualidade, e Jesus não leva a fama! O reino de Deus é muito estranho mesmo. A manifestação da glória de Deus é avessa à propaganda, ao show, ao alarde.
Deus age com discrição e, muitas vezes, nos bastidores. Tal qual em Caná, a presença divina nem sempre é notada. Muitos milagres passam despercebidos, invisíveis aos olhos, inaudíveis aos ouvidos, imperceptíveis ao toque. Esperam ser apreendidos com a percepção da fé.
Maria não é coadjuvante, mas assume um papel ativo, toma iniciativa. Considerando que a sua fala tivesse intenção de motivar Jesus para a ação, vemos aqui a preocupação em manter a alegria e evitar a vergonha da família. Quem se preocupa positivamente com outras pessoas faz toda a diferença. Em nossa vida comunitária, precisamos de pessoas atentas aos acontecimentos e sensíveis às necessidades.
Se em Caná a hora ainda não havia chegado, entrementes já badalou o relógio. Jesus passou pela morte, ressuscitou no terceiro dia e está à direita de Deus. Qual o sentido da hora de Cristo na atualidade? A determinação “façam tudo o que ele disser” pode ser associada à prática comunitária. A comunidade atua sob orientação de Jesus Cristo, faz o que ele diz. É preciso encher os vasos com água, é preciso levar uma prova ao mestre-sala. Quais são as ações da comunidade de Cristo hoje? Obediência demonstra-se em ação e também em confi ança, pois nem sempre se sabe de antemão o que acontecerá.
4. Imagens para a prédica
O casamento em Caná é arquétipo da abundância e da alegria que caracterizam a presença do reino de Deus. A pregação poderia refletir sobre elementos considerados necessários para que aconteça uma festa. Alguns elementos, como aparelho de som, comida, bebida etc., poderiam ser trazidos. Que outros ingredientes e circunstâncias constituem uma festa? É pertinente lembrar que a festa faz parte da vida, mas nem tudo na vida é festa. Além de trabalho e preocupações, há momentos difíceis e até trágicos. A festa duradoura ainda está para vir (Ap 21.3-4).
A partir da atuação de Maria é possível fazer uma reflexão sobre o papel de homens e mulheres anônimas na igreja e na sociedade. Uma pessoa lembrada pelo nome tem sua individualidade intrínseca definida. A pessoa lembrada por um atributo tem sua personalidade determinada extrinsecamente: mãe do fulano, esposa do beltrano, irmã do sicrano. Maria é apresentada como mãe. Sua identidade depende do filho. Como são definidos os papéis e como são conhecidas ou lembradas as pessoas em nossas comunidades? Como valorizamos dons e serviços que não são considerados tão “espetaculares”?
Bibliografia
MEIER, John P. Um Judeu Marginal: repensando o Jesus histórico. Volume dois, livro três: Milagres. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
VOIGT, Emilio. Contexto e surgimento do Movimento de Jesus: as razões do seguimento. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
WENGST, Klaus. Das Johannesevangelium. 1. Teilband: Kapitel 1-10. Stuttgart/ Berlin/Köln, 2000.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).