Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: João 21.20-25
Leituras: Gênesis 1.1-5, 26-31 e 1 João 1.1-2.2
Autor: Mauro Alberto Schwalm
Data Litúrgica: 1º Domingo após Natal
Data da Pregação: 27/12/2009
1. Introdução
Vejamos três aspectos introdutórios importantes para este estudo:
a) Em lugar do texto do Evangelho de Lucas para o primeiro domingo após o Natal, somos motivados pelo Conselho Editorial a nos ocupar com o personagem do dia 27 de dezembro, de acordo com o calendário de nomes santificados: João, apóstolo e evangelista. Ao invés da visita do garoto Jesus de doze anos aos doutores no templo, portanto, somos convidados a dirigir nossos olhares para a vida do discípulo filho de Zebedeu e seu significado para a tradição cristã. E em lugar da perícope de um dos evangelhos sinóticos temos diante de nós parte de um capítulo considerado acréscimo posterior no quarto evangelho.
b) Tematicamente nos encontramos no contexto litúrgico das celebrações natalinas. Essa época está presente nas celebrações e nos sentimentos das pessoas como uma época de luz em contraposição a trevas; como uma época de ternura em contraposição à dureza de coração; como época de sensibilidade e bons senti- mentos em contraponto a razões e argumentos; como época de fraternidade e confraternização. Embora o Natal já tenha sido celebrado, é esse conteúdo que ainda está movendo as pessoas. Muitas, de fato, movidas pela fé e pela valorização desse significado. Outras tantas porque simplesmente se deixam levar pelas belas luzes, pelas belas melodias, pelos bons propósitos (ou por sedutoras propagandas interessadas em promover o consumo numa “aldeia globalizada”).
c) Finalmente, as leituras do dia complementam o conjunto temático e res- gatam elementos da teologia do Natal. Do primeiro capítulo da Bíblia serão lidos versículos relacionados à luz: porque o Espírito de Deus (fonte de luz) pairava sobre a face das águas, as trevas são superadas; e serão lidos versículos relaciona- dos ao ser humano, imagem e semelhança de Deus, a quem é dado poder sobre a criação. O relato do AT culmina repetindo: “e Deus viu que era bom”. Na primeira Carta de João, é retomado o tema da luz: Deus é luz e nele não há trevas! Portanto andar na luz é ter comunhão com Deus, o qual está na origem da vida, também da vida de Jesus Cristo, nascido de Maria em Belém. Ou seja, criação e redenção se encontram no evento do Natal.
2. Exegese
2.1 – O Evangelho
O exegeta Hermann Strahtmann destaca que o Evangelho de João tem peculiaridades que o diferenciam dos evangelhos sinóticos. Nesse ponto comunga de uma opinião consolidada entre muitos estudiosos do Novo Testamento. Embora tanto os sinóticos como o Evangelho de João requeiram autenticidade histórica, há diferenças significativas nas suas narrativas. Os milagres em João são narrados para evidenciar a messianidade de Jesus, ao passo que nos sinóticos trata-se, antes, de ação misericordiosa em favor das pessoas. Ou seja, no Evangelho de João a autorrevelação de Jesus ocupa lugar central. Para Strahtmann, João não faz questão de acumular elementos narrativos estanques na sua exposição. Ele repete o mesmo tom com base em diferentes elementos, como que para evidenciar algo: “É como se ele tivesse um cristal na mão, o qual move para lá e para cá, deixando-o brilhar por entre os dedos” (Strahtmann, p. 2). Ou como se quisesse “corrigir” a tradição sinótica, apontando sempre de novo para a glória divina de Jesus, sem se restringir aos aspectos narrativos históricos, procurando demonstrar o que a comunidade tem em Jesus e não em primeiro lugar quem ele era (Brakemeier, p. 11).
2.2 – O capítulo 21
Esse capítulo do Evangelho de João é considerado na exegese um “acréscimo posterior”. Há uma formulação conclusiva do evangelho em 20.30-31. Isso significa que a versão do Evangelho de João que encontramos no Novo Testamento é uma versão revisada e acrescida de conteúdos já nos primórdios da sua transmissão, tendo passado pelas mãos de pessoas que integravam uma assim chamada “escola joanina” (Brakemeier, p. 10). A pergunta acerca da autoria do Evangelho de João é igualmente complexa para a exegese. O evangelho é atribuído ao discípulo João, embora não esteja redigido na perspectiva de uma testemunha ocular, pois a ênfase é notadamente pós-pascal. Brakemeier conclui:
Nossa falta de conhecimento é dolorosa. Mas não diminui o valor desse evangelho. João é um autor que, à luz da antiga tradição evangélica, repensou e reafirmou a fé cristã em seu contexto específico, constituindo-se num dos mais profundos pensa- dores teológicos do Novo Testamento (Brakemeier, p. 10-11).
Lidamos, portanto, com parte de um capítulo que foi acrescentado ainda muito cedo ao Evangelho de João e que é parte importante do testemunho dos primeiros cristãos. No seu todo, o capítulo 21 conta aspectos de um encontro entre Jesus e alguns de seus discípulos às margens do lago de Tiberíades. O v. 14 deixa claro que se trata da terceira manifestação do Ressurreto. Alguns elementos do conteúdo do cap. 21 merecem ser sinteticamente mencionados aqui: a) apenas sete discípulos estavam juntos (onde estavam os outros?); b) Pedro decide pescar e é acompanhado pelos demais (não deveriam estar cumprindo a “grande comissão”?); c) Jesus apresenta-se (novamente num contexto de frustração para os pesca- dores, afinal nada tinham pescado); d) após palavra decisiva de Jesus, eles pescam em abundância e Jesus lhes prepara uma refeição (comunhão); d) nos v. 15-19 há um diálogo entre Jesus e Pedro, no qual se rememora a fragilidade de Pedro (três vezes Jesus pergunta se Pedro o ama) e no qual o mesmo é convocado a apascentar as ovelhas e a seguir Jesus apesar do prenunciado martírio futuro (Pedro como símbolo da tensão entre firmeza e fragilidade?); e) finalmente, o bloco dos v. 20-25, em que se articula uma comparação por parte de Pedro em relação a João.
2.3 – O texto
Até o versículo 19 tem-se a sensação de que tudo se desenrola à beira de um “fogo de chão”. E nem há por que imaginar a cena de modo diferente; afinal, o diálogo está inserido no contexto de uma refeição, “depois de terem comido” (v.15). É no final do versículo 19 que vem o chamado/convite: Segue-me! Imediata- mente, no v. 20, fica claro que o seguimento (caminhada) havia iniciado: Pedro literalmente segue a Jesus. Mas não é o único! Embora não se fale dos demais discípulos, ao menos um – além de Pedro – está seguindo ativamente. Será que esse não captou que o convite tinha sido para Pedro? O “segue-me” do v. 19 foi dirigido diretamente a ele! Pedro inquieta-se e formula uma pergunta. Qual terá sido a motivação de Pedro ao querer saber acerca do futuro do discípulo a quem Jesus amava? O tema do diálogo não era dos mais fáceis, pois tinha a ver com a forma da morte futura. Será que Pedro perguntou zelosa e “pastoralmente” preocupado ou perguntou movido por ranço e mágoa (Strahtmann, p. 256)? A resposta de Jesus é dura e deixa ver claramente que isso não deveria importar a Pedro; afinal, a história dele e a história do outro discípulo eram histórias diferentes. A Pedro cabia segui-lo: segue-me tu (v. 22)! Com isso fica relativizado o questiona- mento de Pedro.
Os v. 23-24 são decisivos para a compreensão do texto. Jesus havia dado a entender, no v. 22, que “o discípulo a quem Jesus amava” (v. 20) talvez não iria morrer. Ou pelo menos assim poderia ser compreendida a afirmação de Jesus. Acerca de como Pedro a entendeu não há a menor referência. Realmente o v. 23 confirma o fato de que essa hipótese havia sido divulgada entre a comunidade na tradição posterior e logo procura corrigi-la com a afirmação de que Jesus não tinha dito que ele não morreria.
Por que uma tal correção se fazia necessária? Provavelmente por causa do confronto com a realidade da morte do referido discípulo. É possível imaginar o desconforto na comunidade (ou entre alguns de seus membros): “Mas Jesus não tinha dito que provavelmente aquele discípulo não ia morrer? Como é que agora ele está morto?” (Ou eventualmente diante da morte iminente) Argumentação: “Calma, irmãos e irmãs. Ele não disse isso assim, com essa clareza toda. Ele disse que poderia, se assim quisesse, permitir que vivesse até a sua volta. Dessa forma ele lembrou Pedro de que ele não deveria se importar com isso e que deveria fazer o que lhe cabia: seguir!” O v. 24 funciona como elemento de legitimação: “isso acerca do que estamos” (quem? integrantes da escola joanina?) “compartilhando foi testemunhado por ele e por ele escrito. E é verdadeiro! Afinal, é o próprio discípulo acerca do qual se disse que talvez não morreria que repassou essa narrativa”.
O v. 25 repete e retoma o final do capítulo 20.30-31. Com essa repetição procura-se confirmar que a tradição só conseguiu “guardar” uma parte de tudo aquilo que se comunicava acerca de Jesus e do grupo dos seus seguidores. De certa forma dando a entender também que esse capítulo 21 resgatava um elemento importante relacionado à tradição de João, apóstolo e evangelista, e que existiam muitas outras narrativas, mas que não seria possível resgatá-las todas nesse evangelho. Com isso é reforçada a posição de destaque de João enquanto evangelista no contexto da tradição cristã.
2.4 – A tradição joanina
João é conhecido como o discípulo a “quem Jesus amava”; ele foi o discípulo que se encontrava aos pés da cruz e que recebeu a incumbência de zelar pela mãe de Jesus. Esse último aspecto recebe grande destaque na tradição católica: ao jovem discípulo amado, ao qual se atribui ter sido solteiro e optante pela abstinência sexual (virgindade), coube zelar e cuidar da “virgem Maria”, mãe de Jesus, até o final.
No Evangelho de João é narrado que ele correu mais rápido do que Pedro para chegar ao túmulo vazio depois da notícia dada por Maria Madalena. Era filho de Zebedeu e irmão de Tiago. Atribui-se a João a fundação das sete pequenas comunidades da Ásia, as mesmas às quais se reporta no livro do Apocalipse, o qual teria redigido quando de seu banimento na ilha de Patmos. Em suas cartas, ele fala de Deus como “luz”, como “amor”. Estima-se que João tenha falecido em avançada idade (por volta de 94 anos) e que tenha sido sepultado em Patmos. De acordo com a tradição, João foi o único dos apóstolos que não morreu em consequência de martírio (embora tenha sobrevivido milagrosamente a uma tentativa por parte do imperador Domiciano, razão pela qual foi banido).
Conforme assinala Jerônimo, quando João já era muito ancião, se fazia levar às reuniões dos cristãos, e o único que lhes dizia sempre era isto: “Ir- mãos, amai-vos uns aos outros”. Uma vez lhe perguntaram por que repetia sempre o mesmo, e ele respondeu: “É que esse é o mandamento de Jesus, e se o cumprimos, todo o resto virá além disso”. Uma narrativa que se atribui a Clemente de Alexandria conta que ele havia colocado um de seus jovens discípulos sob os cuidados de um bispo. Esse o instruiu e batizou. Depois disso, o jovem teria acabado por se juntar a um bando cruel de salteadores. Quando o queria reencontrar, João ouviu do bispo que o mesmo estava perdido e morto espiritualmente, mas lhe disse onde o poderia encontrar. João teria ido a seu encontro e o teria trazido de volta ao seio da fé com as seguintes palavras: “Meu querido filho, por que foges de teu pai? Não temas, pois eu quero interceder por ti junto a Deus e estou disposto a morrer por ti, da mesma forma como o Senhor morreu por nós. Deixa essa vida para trás, meu querido filho, pois Deus me enviou a ti”. Na tradição posterior, a águia aparece como símbolo ao lado do apóstolo e evangelista João, em alusão à sua teologia, que aponta para o alto, para os céus.
O dia de João Apóstolo e Evangelista está fixado tão próximo do Natal justamente porque se trata de uma época de revelação do amor e da luz que procedem de Deus em favor da criação, mensagem à qual João dedicou a sua vida. E está em contraposição ao dia de Estevão, que foi o primeiro mártir e que é lembra- do justamente no dia 26 de dezembro. Nascimento de Cristo, martírio de Estêvão e dia do apóstolo e evangelista João compõem assim uma tríade interligada de conteúdos: a alegria do Natal quer ser proclamada em associação ao tema do seguimento que não foge às tribulações.
A celebração dos dias festivos relativos aos apóstolos e evangelistas perdeu seu espaço na tradição protestante. Talvez em parte porque tais “dias” não coincidem com domingos (é o caso com este auxílio), quando a comunidade normalmente celebra culto, ou porque seria algo antes de perfil “católico”. Certo é que, desde o século 18, houve um afastamento gradativo dessas datas no contexto do protestantismo. O artigo 21 da Confissão de Augsburgo (disponível no site da IECLB), porém, menciona a importância de relembrar como os mesmos foram auxiliados pela fé e tornaram-se assim exemplos para a vida cristã. A cor litúrgica dos dias dedicados aos apóstolos e evangelistas é a cor vermelha, relembrando, por um lado, o martírio da maioria deles e, por outro, a paixão que os movia por ação do Espírito Santo.
3. Meditação
3.1 – João 21.20-25
É impossível meditar sobre esses versículos sem ter em mente e como pano de fundo o capítulo 21 em seu todo. No contexto de uma revelação de Jesus após a sua ressurreição tem lugar um diálogo entre Jesus e Pedro. Curiosamente, o “personagem João” apenas aparece como alguém a respeito de quem se fala, mas ele mesmo não participa do diálogo. A respeito dele é dito que “seguia” (v. 20). Se seguia e ouviu o diálogo, como será que se sentiu? Será que alimentou a esperança de que “ficaria” (vivo) até que Jesus viesse? Caso tenha alimentado tal esperança, como foi comum naqueles primórdios, qual o problema? Certamente nenhum… O problema era, de fato, de Pedro, o qual precisava contar com o martírio, ao passo que ao discípulo amado aparentemente seria concedida a graça de poder viver até o fim! Não é de descartar, portanto, certo desconforto por parte de Pedro no enfrentamento desse tema.
Mas uma correção é necessária no rumo da história. De duas uma: ou João já havia morrido quando o cap. 21 foi incluído, ou estava diante da morte. E Jesus ainda não havia voltado. Como entender essa incongruência? Quer dizer, nem chega a ser incongruência. É preciso ler direito. E essa reinterpretação hermenêutica já precisou ser feita bem cedo no contexto daqueles que tinham se unido em torno da tradição joanina. No diálogo com Pedro não há uma afirmação cabal de Jesus acerca do futuro de João. Afinal, o futuro de ambos pertence a Deus, seja como for! Essa é a mensagem que dá lastro à narrativa.
Quero destacar alguns aspectos que me chamam a atenção nessa narrativa do final do Evangelho de João:
a) Embora o convite para seguir tenha sido dirigido, em primeiro lugar, a Pedro (v. 19), esse não segue sozinho! João sente-se igualmente chamado e entende o convite dirigido também para ele. Ele seguia atrás de Pedro, mas se sentia parte daquele corpo, daquele grupo. Quando Jesus disse “segue-me” a Pedro, não foi um convite exclusivamente particular, pessoal. Afinal, eles integravam uma pequena comunidade, comunhão. E João o interpreta de modo correto ao sentir-se incluído. Há aí um potencial significativo para pensar acerca do convite para seguir. Mesmo que eu não ouça meu nome, posso sentir-me incluído. Esse é um aspecto que contrasta com a tendência humana de desejar sempre receber convites nominais, pessoais e particulares. Creio que é um dilema com o qual muitos pastores/as convivem. Membros muitas vezes não se sentem atingidos quando não são massageados em seu ego. No Batismo, somos chamados pelo nosso nome!
b) Pedro preocupa-se por causa do discípulo amado. Talvez tenha havido um pouco de mágoa em sua pergunta, afinal ele continuava sendo o mesmo Pedro que negou e a quem Jesus perguntou repetidamente se o amava. Mas pode ser que estivesse de fato zeloso: “Eu, Pedro, intrépido, creio que vou dar conta desse recado; mas e este? Mais jovem, mais frágil, será que terá de sofrer do mesmo jeito?” Eu não sei e não posso determinar o que prevaleceu. Mas a resposta de Jesus impede de continuar as especulações, sejam as de Pedro, sejam as minhas: “O que te importa? Segue-me tu!” João recebe destaque por ter seguido sem ter sido nominado e sem fazer perguntas… Mas é significativo relembrar, nesse ponto, que esse é o mesmo João que, de acordo com Mc 10.35-45, queria poder sentar-se com seu irmão Tiago ao lado de Jesus em seu reino e que precisou ouvir, naquele contexto, que nem a Jesus cabia determinar algo nesse sentido.
c) Ler a Bíblia significa interpretar. A gente sempre lê com certo lastro de informações e experiências determinantes. Já os primeiros cristãos tiveram de fazer correções e releituras. Na verdade, o suposto erro não estava na Bíblia, na palavra atribuída a Jesus. Estava na leitura que tinha sido feita, e essa precisava ser corrigida! Talvez alguns seguidores de João ou membros das comunidades estivessem valorizando esse episódio mais do que deveriam… Da mesma forma, muitas leituras precisam hoje ser corrigidas. Ler a Bíblia é como pilotar um barco em águas caudalosas: o rumo de nossas leituras sempre precisa ser corrigido para evitar que a corrente leve para a direção equivocada.
d) Finalmente, quero destacar a forma como se lidou com o legado de João para a comunidade: “sabemos que seu testemunho é verdadeiro”. Coloca-se aqui um selo de credibilidade, de resgate do valor e significado da herança joanina. Lembro-me da declaração de escrivães em muitos documentos que se reportam a originais aos quais não se tem acesso ou que certificam um acontecimento: “o referido é verdadeiro e dou fé”. Aqui se está “dando fé” a um documento: o Evangelho de João.
4. Imagens para a prédica
Penso que, para a pregação neste domingo, com ênfase temática na figura do apóstolo e evangelista João, sem exceder na abordagem de elementos de uma tradição que soa estranha às peculiaridades protestantes, mas que faz jus ao princípio destacado no artigo 21 da Confissão de Augsburgo, poder-se-ia lançar mão de aspectos já mencionados, que retomo brevemente aqui.
a) Havia uma relação afetiva especial entre Jesus e João. Os evangelhos não detalham essa afetividade. Talvez o seu elemento culminante seja, de fato, a vinculação materno-filial entre João e Maria por parte de Jesus aos pés da cruz. Partindo do princípio de que seres humanos são diferentes entre si e ocupam-se diferentemente de suas tarefas, posso entender que João – talvez de fato marcado mais profundamente por uma “inteligência afetiva” – tenha sido a melhor opção e escolha para que no momento da morte Jesus pudesse entregar seu espírito na paz do necessário amparo à sua mãe. Eu evitaria maiores especulações em torno dessa afetividade, a qual pode ser entendida no contexto de uma relação fraterna e media- da pelo coração. Creio que cada um de nós sabe de suas próprias relações, que algumas podem ser mais marcadas por afeto do que outras… Além disso, convém lembrar que isso não garantia para João um lugar especial, seja à direita seja à esquerda do trono de Jesus em seu reino, e isso ele precisou ouvir e aprender apesar do especial afeto. Mc 10.35-45 serve de alerta e contraponto em tempos de ufanismo e hybris teológico-entusiástica: não há “relações especiais” que garantam lugares destacados no que respeita à salvação. Não por último, lembro-me de muitas relações “político-afetivas” que geram danos coletivos por causa de favorecimentos particulares, as quais precisam ser denunciadas e combatidas.
b) O Evangelho de João é tido como o evangelho do amor de Deus, sobretudo por causa do versículo 16 do capítulo 3. O evangelista coloca toda a sua ênfase na comunicação de que em Jesus se cumpre o propósito de Deus para a humanidade desde a criação, pois o verbo se fez carne (Jo 1.14) e trouxe luz para dentro de uma realidade de trevas (Jo 1.5,9). Se concordarmos com inúmeros exegetas, essa é a peculiaridade de João: apontar para Jesus Cristo como aquele que nos possibilita a vinculação com Deus (não por nascimento natural: Jo 1.13; 3.5-7; Jo 20.31). Ou seja, João dá destaque à perspectiva vertical da fé (Jo 6.27-33). Considerando que o evangelista e apóstolo João é descrito na tradição como um teólogo “mais voltado para o céu” e que a ele foi associada a imagem da águia, talvez se possa fazer referência a esse elemento. Não se pode esquecer, porém, que à verticalidade se amalgama a horizontalidade da fé, sem a qual a pregação e a celebração perdem conexão com a realidade. Por que a águia sobe aos céus? Para ter uma visão mais ampla e localizar melhor seu objetivo no solo. Toda pregação acerca do amor de Deus perderá seu sentido se não se voltar para seu objetivo (Jo 13.34-35; 1Jo 2.7-11).
c) João seguiu, mesmo sem ser instado explicitamente para tanto. Creio que essa é a principal imagem/mensagem que o texto passa. O diálogo principal estava acontecendo entre Jesus e Pedro, embora João fosse o “discípulo amado”. Apenas posso fazer um exercício de imaginação especulativa, sabendo da limitação de tal exercício: João sabia do papel de liderança de Pedro, por isso encara com naturalidade que o chamado a ele dirigido nominalmente também a ele se estende. Pedro recebe a orientação “segue-me”. João é parte do grupo dos seguidores. Portanto o que vale para Pedro também vale para João. E seu afeto igualmente fala alto: “se Pedro segue, é óbvio que eu também vou seguir”. Lideranças da comunidade nem sempre conseguem “convidar” todas as pessoas nominalmente. E sempre há aqueles que somente se sentem incluídos quando ouvem seu nome. Integrar o corpo de Cristo também implica seguir o chamado mesmo quando o próprio nome se dilui na coletividade. Uma relação afetiva também implica solidariedade nas causas comuns. Muitas vezes, vi situações em que pai ou mãe precisavam sair de casa para o trabalho e precisavam deixar seus pimpolhos para trás, os quais os seguiam choramingando mesmo diante da ordem contrária, para ficar em casa. João não seguiu choramingando. Mas não queria ficar para trás. Seu lugar era ao lado de Pedro no seguimento ao Mestre.
5. Subsídios litúrgicos
Canções relacionadas ao tema do seguimento:
“Deus chama a gente pr’um momento novo” (Cancioneiro O Povo Canta, PPL, p. 44); “No caminho de Emaús” (Cancioneiro O Povo Canta, PPL, p. 112); “Senhor, se tu me chamas” (Cancioneiro O Povo Canta, PPL, p. 262).
Introito:
“Como é bonito ver um mensageiro correndo pelas montanhas, trazendo notí- cias de paz, boas notícias de salvação! Ele diz a Sião: ‘O seu Deus é Rei!’” (Is 52.7 – tradução Bíblia na Linguagem de Hoje).
Acolhida:
O dia 27 de dezembro é o dia que a tradição cristã desde cedo dedicou ao evangelista e apóstolo João. Queremos dedicar um pouco de nossa atenção no dia de hoje a esse importante personagem da história da fé em Jesus, pois ele foi um mensageiro de notícias de salvação, enfatizando que Jesus é o Filho de Deus, que ele “é a luz verdadeira, a luz que veio ao mundo e ilumina todas as pessoas” (Jo 1.9). João, o discípulo amado, exalta o amor de Deus por nós e nos convida ao amor recíproco em seguimento a Jesus. Louvado seja Deus por esse seu servo, cujo testemunho nos inspira na fé!
Oração de confissão:
Penso que a oração de confissão de culpa pode enfocar a facilidade com que nos acomodamos e fazemos de conta que o “chamado” não nos diz respeito, simplesmente porque não ouvimos nosso nome; pode tematizar da mesma forma o risco de uma fé por demais desconectada da vida e enfocada unilateralmente na glória de Deus.
Anúncio da graça:
“Mas, se confessarmos os nossos pecados a Deus, ele cumprirá a sua promessa e fará o que é justo: perdoará os nossos pecados e nos limpará de toda maldade” (1Jo 1.9). “Porque Deus mandou o seu Filho para salvar o mundo e não para julgá-lo” (Jo 3.17).
Oração do dia:
Penso que nesta oração pode-se enfatizar a gratidão pelo serviço que Deus realizou através de João na condição de apóstolo e evangelista; que através do seu testemunho e de todos aqueles que o acompanharam chega até nós uma mensagem convicta de amor e acolhimento e de inspiração para a fidelidade, seja através do evangelho, das suas cartas ou do livro do Apocalipse; pode incluir também o louvor pelo olhar de João na perspectiva da águia (“do alto”).
Oração de intercessão:
Interceder por todos os cristãos da terra para que ouçam o chamado ao seguimento; interceder pela comunidade local, para que siga a mensagem do evangelho numa relação afetiva e de ternura com Deus e com o próximo; interceder para que o louvor a Deus não nos impeça de nos ocupar dos problemas reais do cotidiano, ao contrário, que a visão “do alto” nos ajude na busca da superação do mal em amor na perspectiva dos olhos da águia, na perspectiva dos olhos e do amor de Deus; interceder para que nas festividades de fim de ano a sabedoria prevaleça e sejamos poupados dos excessos prejudiciais à vida.
Envio:
“A Pedro Jesus disse: Segue-me! Mesmo sem ouvir seu nome, também João o seguiu! Agora eu digo a vocês: Vão! Vão na paz de Jesus e no seguimento, tal qual Pedro, tal qual João. Que a luz que vem do alto ilumine os seus passos e clareie a sua visão, para que possam olhar as pessoas e toda a criação com os olhos do amor de Deus.”
Duas sugestões adicionais (“Werdet weise und verständig…”, Gebete aus der Ökumene; p. 8 e 12; tradução própria livre):
Eu quero acender uma luz em nome de Deus:
Ele iluminou o mundo e me deu o sopro da vida. Eu quero acender uma luz em nome do Filho:
Ele salvou o mundo e estendeu a sua mão em minha direção. Eu quero acender uma luz em nome do Espírito Santo:
Ele circunda o mundo e abençoa minha alma com impaciente esperança. Nós vamos acender três luzes para a trindade do amor.
Deus sobre nós,
Deus ao nosso lado,
Deus em nosso meio,
O princípio,
O fim e aquele
Que permanece.
Quebrados pela tensão do nosso cotidiano,
buscamos tua presença na esperança de encontrar restauração.
Muitas preocupações e receios,
inúmeros e diferenciados objetivos nos afastam uns dos outros
e geram divisão em nós mesmos.
Mas nós sabemos
que nenhum galho será completamente cortado da árvore da vida, que a todos nós sustenta.
O Espírito vivaz de Deus
nos chama e reúne a todos
com vistas ao testemunho, à celebração e ao empenho!
Vamos estender as mãos uns aos outros,
assim como Deus estende a sua mão em nosso favor.
Bibliografia
BRAKEMEIER, G. Observações introdutórias referentes ao Evangelho de João. In: Proclamar Libertação. Vol. VIII, p. 7-15. São Leopoldo, 1982.
DUTZ, Freddy (Ed.). Werdet weise und verständig… Gebete aus der Ökumene. 6. ed. Hamburg, 2008.
STRAHTMANN, Hermann. Das Evangelium nach Johannes. (Das Neue Testament Deutsch. V. 4.) Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen. 1968. http:// www.daskirchenjahr.de — http://www.luteranos.com.br (Confissão de Augsburgo)
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).