Nascer do alto, nascer da água e do Espírito
Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica: João 3.1-17
Leituras: Gênesis 12.1-4a e Romanos 4.1-5, 13-17
Autoria: Vitor Hugo Schell
Data Litúrgica: 2° Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 05/03/2023
1. Introdução
Em Gênesis 12.1-4a, lemos a respeito do chamado do Senhor a Abrão para que saísse de sua terra e da casa de seu pai em direção à terra que lhe seria indicada pelo próprio Deus. A intenção de Deus é abençoar Abrão, engrandecer seu nome e a partir disso fazer dele uma bênção para todos os povos da terra. Todas as famílias da terra estão, portanto, no horizonte da promessa a Abrão (v. 3). Estabelecendo um claro contraste frente à narrativa da construção da torre de Babel (Gn 11), onde o desejo de chegar até os céus e tornar célebre o nome por conta própria faz colocar a mão na massa para a construção da torre, a bênção a Abrão vem do alto, lhe é concedida pelo próprio Deus e o faz agir por fé. Na sua Carta aos Romanos, o apóstolo Paulo retoma a história de Abrão, então já Abraão, para embasar sua argumentação sobre a justiça da fé. No texto da Carta os Romanos indicado para leitura (4.1-5; 13-17), Paulo cita Gênesis 15.6, que afirma que Abraão creu no SENHOR, e isso lhe foi imputado para justiça. O relato de Gênesis atesta adiante como Abraão age, movido por sua fé, antes de qualquer mandamento da lei. A justiça que vem de Deus provém da fé e é segundo a graça (Rm 4.16). Na conversa com o fariseu Nicodemos, Jesus afirma que ver o Reino de Deus depende de um nascimento “do alto”, como evento sobrenatural possibilitado pelo agir do próprio Deus por meio de seu Espírito Santo. Nisso se estabelece a conexão clara entre o agir de Deus na vida de Abraão, sua alusão na argumentação de Paulo na Carta aos Romanos e o texto indicado para a prédica.
2. Exegese
Após a realização do seu primeiro milagre, de acordo com o relato de João, em uma festa de casamento em Caná da Galileia, onde manifestou a sua glória transformando água em vinho, Jesus permanece com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos ainda por poucos dias na região da Galileia, em Cafarnaum, até que então, estando próxima a festa da Páscoa dos judeus (Jo 2.13), sobe a Jerusalém. Confrontado com a realidade do Templo, que havia sido transformado em casa de negócio (2.16), e consumido pelo zelo pela casa de seu pai (2.17), Jesus expulsa os que ali exploravam os fiéis. O relato de João deixa clara, então, a associação do templo de Jerusalém com o verdadeiro santuário, a saber, o corpo de Jesus, que seria destruído e reconstruído em três dias, como sinal que comprovaria sua autoridade messiânica. O relato faz questão de apontar para a incompreensão dos interlocutores de Jesus e para a fé na Escritura e na palavra de Jesus (Jo 2.22), resultante da lembrança daquelas palavras após a sua ressurreição. É em Jerusalém que acontece o encontro narrado em João 3.1-17 e bem de acordo com o estilo do quarto evangelho, ao diálogo conecta-se um “discurso teológico” mais longo, que elucida a missão de Jesus.
Nicodemos, identificado por João como integrante do grupo dos fariseus e um dos principais dos judeus, procura por Jesus à noite, pois o reconhece, a partir dos sinais realizados, como mestre vindo da parte de Deus. No relato, as palavras de Nicodemos resumem-se a esse reconhecimento de Jesus como mestre (v. 2), à pergunta pela possibilidade de um segundo nascimento a partir do ventre materno, ou seja, de modo natural (v. 4), e à pergunta pela possibilidade de um nascimento a partir do Espírito (v. 9). O fato do encontro com o fariseu Nicodemos acontecer à noite (v. 2) estabelece uma conexão contrastante com o capítulo seguinte, com o relato do encontro com a mulher samaritana junto ao poço de Jacó, à hora sexta, ou seja, ao meio-dia (Jo 4.6). A reação de Jesus ao reconhecimento de Nicodemos à sua autoridade de mestre, no v. 3, não esclarece, em um primeiro momento, se tal reconhecimento já seria o resultado do agir sobrenatural de Deus em sua vida. Teria Nicodemos já recebido um novo nascimento do alto, que o fizera enxergar os sinais e reconhecer a Jesus como Mestre? Seria, porém, suficiente reconhecer Jesus como Mestre em Israel e que Deus estava com ele? As perguntas de Nicodemos (v. 4) atestam sua ignorância quanto à verdadeira identidade de Jesus. É típica do quarto evangelho a incompreensão dos interlocutores de Jesus quanto à sua identidade messiânica, assim como o gradativo desvelamento dessa identidade. As imagens utilizadas por Jesus para elucidar a realidade do Reino de Deus seus interlocutores interpretam de forma literal (v. 4 – compare com Jo 4.11-12, 15). No v. 5, o discurso de Jesus sobre ver o Reino de Deus é expandido para a necessidade de nascer da água e do Espírito para poder entrar no reino de Deus. No prólogo do evangelho, em Jo 1.12-13, afirma-se que aquela pessoa que recebe o Verbo de Deus encarnado, que crê em seu nome (sua identidade como Cristo), recebe o poder de tornar-se filho de Deus, o que não acontece por vontade da carne, nem […] do homem, mas de Deus. Também a Nicodemos a mesma lógica é afirmada. As coisas de Deus não são compreensíveis ao ser humano natural. A pergunta do v. 9 sublinha a incompreensão de Nicodemos, à qual Jesus reage com outra pergunta: Tu és mestre em Israel e não compreendes estas coisas? Para além da ênfase na incredulidade em relação ao testemunho de Jesus, os v. 11-13 enfatizam também a origem de tal testemunho. Jesus testemunha a respeito do Pai, daquilo que sabe e tem visto. Suas credenciais como Deus unigênito, que está no seio do Pai e que a esse revela (1.18), assim como a autenticidade do testemunho do próprio evangelista sobre a habitação do Verbo entre nós, cheio de graça e de verdade e da sua glória, glória como do unigênito do Pai (1.14), já haviam sido enfatizadas no prólogo.
O v. 14 inicia uma nova etapa do discurso de Jesus. A missão do Filho do Homem (já identificado como descido do céu no v.13) é interpretada à luz do episódio relatado em Números 21.4-9. O caminho providenciado pelo próprio Deus para a salvação nos tempos de Moisés se torna em ponto de contato para o caminho providenciado por Deus por meio do seu próprio Filho. O olhar para a serpente de bronze como meio de salvação frente ao terror da morte causada pelas serpentes no deserto torna-se analogia para o olhar da fé para Jesus de Nazaré, o Filho do Homem, levantado na cruz como meio de vitória sobre a morte, meio de acesso à vida eterna (v. 14-15).
O v. 16 deixa ainda mais claros o motivo e a finalidade da entrega do Filho unigênito de Deus. Ela é motivada pelo amor ao cosmos e tem a finalidade de conceder vida eterna aos crentes. A conversa com o fariseu Nicodemos se transforma, por fim, em um discurso sobre o amor de Deus por todo o mundo. Sobre o fariseu Nicodemos, o Evangelho de João voltará a falar apenas no contexto da controvérsia entre os guardas, os principais sacerdotes e fariseus, após a festa dos Tabernáculos (7.50) e ainda por ocasião do sepultamento de Jesus (19.39). Antes de João dar sequência ao relato, contando sobre o tempo de permanência de Jesus juntamente com seus discípulos na região da Judeia (v. 22), os v. 18-21 encerram o discurso sobre o envio de Jesus e sua missão apontando para a realidade presente do julgamento, no qual se encontram os que amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más (v. 19; compare também Jo 1.8-11).
3. Meditação
Nicodemos segue algumas pistas e sinais miraculosos que constam no “currículo de Jesus”. Ele havia purificado o Templo e é bem provável, ainda que João não entre em detalhes a esse respeito, que soubera dos eventos ocorridos na “casa de oração”. Como fariseu, alegra-se pela reprovação do mestre à espiritualidade formal e vazia do Templo, dos líderes aristocratas da classe sacerdotal, maculada por conchavos políticos com Roma em troca de favores. Sua turma dava o dízimo da hortelã, do endro e do cominho (Mt 23.23) e queria ver a espiritualidade ativa no dia a dia, que a lei tivesse efeito na vida real e em detalhes, nas ruas, casas e praças, e não somente no Templo. Para Nicodemos, a simpatia para com Jesus pode ter tido a ver com isso: dá para ver sua piedade, os sinais que realiza. Ele combate a bagunça instaurada no culto oficial do Templo com seus vendilhões. Se a partir do episódio do Templo, por um lado, seria positivo ser visto com Jesus, a partir da crítica do mestre à piedade de fachada dos fariseus, por outro lado, isso não pegaria tão bem! Na dúvida, para não se expor, ele vai a Jesus à noite.
A Nicodemos o Mestre reage de forma um tanto enigmática. Ninguém poderia ver o Reino de Deus se não nascer de novo. Jesus não estava dizendo a Nicodemos: “Se estás vendo que faço verdadeiros milagres, é porque já enxergas o Reino de Deus, assim como ele é!” Não. Mesmo tendo reconhecido o mestre que realiza sinais, Nicodemos ainda não tinha visto o Reino, não havia reconhecido o Cristo. Nicodemos chama Jesus de Mestre e o procura à noite! Os milagres ainda não o convenceram que estaria diante do Messias! O que seus olhos viram ainda não o levaram a crer que Jesus era o próprio Messias e não somente mais um mestre!
É claro que ninguém poderia voltar ao ventre materno sendo velho! Tão impossível quanto voltar ao ventre materno é a compreensão das coisas de Deus, sem que essa seja presenteada pelo próprio Deus, de forma sobrenatural, vinda do alto! Tão ridículo e ingênuo quanto pensar em entrar na barriga da mãe para receber a chance de uma vida nova e justa deveria ser ao ser humano imaginar-se capaz de ver o Reino de Deus, de ver em Jesus o Messias, por seus próprios esforços. Na explicação do terceiro artigo do seu Catecismo Menor, Lutero escreve: “Creio que, por minha própria inteligência ou capacidade, não posso crer em Jesus Cristo, meu Senhor, nem chegar a ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo Evangelho, iluminou com seus dons, santificou e conservou na verdadeira fé […]”. Nascer de novo, do alto, não é uma questão de escolha humana, mas de receber de forma sobrenatural o presente de Deus, e ter os olhos abertos à fé. Ler a Bíblia pode ser uma escolha humana, mas compreender a Bíblia de forma existencial é obra que o Espírito realiza em nós! Compreender um texto bíblico com a razão ainda não significa experimentar sua realidade de forma concreta. Não basta ser mestre em Israel! São interessantes textos como o de Lucas 24.24-25 e 31, que enfatizam os olhos fechados dos discípulos e a demora em crer em tudo o que os profetas falaram! O próprio conceito neotestamentário de fé foge da ideia de comprovações, empirismos, do ver para crer! Antes, a fé bíblica é apresentada como certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos (Hb 11.1). Jesus diz aos discípulos após o encontro com Tomé: Felizes os que não viram e creram (Jo 20.29).
Como ninguém pode entrar novamente no ventre materno, assim também ninguém pode entrar no Reino se não nascer da água e do Espírito. Em outros momentos se fala do Batismo com Espírito Santo e com fogo – não com água. O Espírito traz nova vida e o fogo queima, é juízo que consome o que é mau. Ao falar da água e do Espírito, é possível que Jesus esteja lembrando Nicodemos, ou pelo menos tentando fazê-lo lembrar, das palavras de Ezequiel 36.25-27, às quais como “mestre em Israel”, deveria conhecer: Darei a vocês um coração novo e porei um espírito novo em vocês; tirarei de vocês o coração de pedra e lhes darei um coração de carne. Porei o meu Espírito em vocês e os levarei a agirem segundo os meus decretos e a obedecerem fielmente às minhas leis. Na visão profética de Ezequiel, os ossos secos recebem nova vida quando o Espírito é soprado! A água afoga o velho ser humano e o Espírito de Deus capacita para um novo viver! A água afoga, mata e o Espírito Santo ressuscita, vivifica. O dilúvio lava a terra do pecado e a pomba anuncia que um novo começo é possível!
Se é certo que não precisamos ver para crer e que o Espírito Santo nos abre o entendimento e nos chama à fé, também é preciso ressaltar que importa “olhar para o lugar certo”. A história de Jesus precisa ser contada e a partir disso o Espírito abre os olhos para a realidade de que Jesus, o filho do homem (bem humano, muito humano, que morre na cruz como ladrão) é, de fato, o Filho Unigênito de Deus, por intermédio de quem tudo foi feito, sem o qual nada do que existe teria sido feito (Jo 1.3) e por meio de quem Deus prova o seu tão grande amor pelo mundo. Se a história de Jesus fosse contada por fotografias no Instagram e no Facebook, não teria como acreditar que aquela imagem era do filho Unigênito de Deus! Nenhuma foto no palácio de Herodes em um grande banquete! Melhor encontrá-lo, de fato, na surdina da noite! Nenhuma foto de viagens à Roma, capital do império. Haveria fotos dele com gente bem comum! Alguns maquiados ou mascarados também estariam lá! Mas não seria bonito de ver! Não curtiríamos! Como acreditar que ali estava o Messias? A loucura do Evangelho é justamente essa! Na cruz está o Filho de Deus e o caminho ao céu passa por essa cruz, inevitavelmente! O que é dito em João 3.14 quer ajudar Nicodemos a entender! Ele deveria olhar para aquele que seria crucificado, deveria olhar na direção certa. Olhar para a serpente no deserto salvaria da morte pelo veneno das serpentes. Olhar para o Jesus crucificado, o Filho Unigênito feito pecado por nós (2Co 5.21), salvaria da morte eterna como salário do pecado! Que do alto nos seja concedido este olhar. Amém.
4. Imagens para a prédica
De forma muito elucidativa podem ser contrastados os encontros com Jesus nos capítulos 3 e 4 do Evangelho de João. Enquanto Nicodemos, o homem fariseu de reputação ilibada, mestre em Israel, encontra-se com Jesus à noite, uma mulher samaritana com um passado de desilusões amorosas encontra-se com Jesus ao meio-dia. Também a incompreensão de Nicodemos em relação às coisas do Reino de Deus pode ser comparada à incompreensão da mulher samaritana a respeito da água que se torna em uma fonte a jorrar para a vida eterna no capítulo seguinte do evangelho (Jo 4.10-15) ou ainda em tantos outros episódios relatados nos evangelhos, de forma geral, os quais deixam clara a falta de compreensão até mesmo dos próprios discípulos de Jesus em relação ao Reino de Deus. A água e o Espírito, de onde se nasce para a entrada no Reino de Deus, são agentes constantes nas narrativas da história da salvação de Deus. Desde as narrativas mais antigas do Antigo Testamento até os textos proféticos mais recentes, a água e o Espírito estão presentes. A água que afoga (no dilúvio, no mar Vermelho, p. ex., no batismo) também lava, purifica e mata a sede. O Espírito que purifica, queimando como fogo, também sopra livremente como o vento, dando nova possibilidade de vida ao que está morto.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados: A confissão de pecados deve reconhecer a incredulidade revelada em tentativas de conquista “de uma nova oportunidade de vida” por esforços próprios (por boas obras, por superstições e crenças das mais variadas, pelo consumo, por dinheiro ou fama, por exemplo), assim como a dificuldade em enxergar as situações e pessoas com os olhos da fé, com o olhar de Jesus. Liturgia da palavra: O hino 170 do LCI lembra a história narrada pelo texto da prédica e incentiva ao encontro pessoal com o Senhor, enquanto o hino 462 do LCI pede que o Espírito Santo, como grande ensinador, revele a Cristo, o Salvador.
Bibliografia
BEASLEY-MURRAY, George R. John. In: HUBBARD, David A.; BARKER, Glenn W. (Eds). Word Biblical Commentary. Waco, Texas: Word Books, 1987. v. 36.
BOOR, Werner de. Evangelho de João I. Curitiba: Evangélica Esperança, 2002. (Comentário Esperança).
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)