Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: João 3.14-21
Leituras: Números 21.4-9 e Efésios 2.1-10
Autor: Claiton André Kunz
Data Litúrgica: 4º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 18/03/2012
1. Introdução
Muitas vezes, encontramo-nos em situações muito difíceis e não sabemos como sair delas. Frequentemente, as circunstâncias são tão complicadas, que sequer imaginamos que possa haver uma saída. Um dos maiores problemas nessas horas é que achamos que estamos sozinhos para lutar nessas situações e agimos como se ninguém se importasse conosco.
Mas não estamos aqui falando de um simples problema, como uma situação de saúde, a falta de um emprego, a perda de um ente querido ou outra coisa qualquer, por mais importante que nos seja. Há uma questão que é muito mais séria e crucial em nossas vidas e que diz respeito não apenas aos próximos dias ou meses, mas à nossa eternidade.
A pergunta que todos nós precisamos fazer é: como podemos achar uma saída para o problema da nossa posição diante de Deus, tendo em vista que estamos afastados dele devido ao nosso pecado? É possível fazer alguma coisa? Preciso lutar sozinho para resolver essa situação?
2. Exegese
O texto de hoje encontra-se dentro de uma perícope maior, que relata o encontro de Jesus com Nicodemos, um “dos principais dos judeus”. Nicodemos aproximou-se de Jesus e, ao iniciar seu diálogo e elogiar o Mestre como vindo da parte de Deus, Jesus lhe responde quase à “queima-roupa”: “Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (v. 3). O diálogo prossegue com a incompreensão de Nicodemos à abordagem de Jesus sobre o novo nascimento. Parece que Jesus pretende dar uma resposta definitiva a ele.
Qual a forma concreta pela qual alguém pode nascer de novo, ser gerado novamente, podendo assim entrar no reino de Deus? Sabemos pelo restante das Escrituras que a única forma disso acontecer é por intermédio da cruz de Cristo. Jesus quer chegar justamente a esse ponto com Nicodemos.
Mas como explicar a um escriba judaico sobre a cruz que seria erigida no Calvário somente anos mais tarde? Jesus lança mão, então, da história da serpente de bronze (Nm 21.8-9), com certeza bem conhecida de Nicodemos. Provavelmente, a imagem surge diante dos olhos de Nicodemos: uma grande multidão sendo mordida por serpentes abrasadoras por causa de sua culpa, morrendo sem salvação. “Desse modo” é também hoje a situação do ser humano com sua culpa diante de Deus.
Naquela situação, a salvação para Israel veio por meio de uma serpente de bronze. A mordida fatal das serpentes era curada pela imagem da serpente, que precisou ser levantada, pendurada no alto de um poste, para que todo aquele que estivesse morrendo pudesse vê-la. Disso resultava a salvação: um ato que podia ser feito até pela pessoa mais frágil – “olhar” para a serpente.
Então vem a afirmação categórica de Jesus, baseada na relação tipo/antitipo: “E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado” (v. 14). Assim como aqueles israelitas mordidos pelas serpentes necessitavam olhar para a serpente de bronze para ser curados, assim seria necessário que todo ser humano escravo do pecado olhasse para Aquele que foi feito pecado em seu lugar (2Co 5.21), a fim de ser salvo desse pecado.
A imagem da serpente sendo levantada remete a Cristo, que algum tempo depois seria levantado numa cruz. O verbo hypsoō, usado para “ser levantado”, é cuidadosamente escolhido. O verbo denota tanto ser levantado no espaço como ser exaltado na glória. É interessante notar que, em João, Jesus é glorificado ao ser crucificado (Jo 8.28; 12.23,32,34).
Não havia valor terapêutico na serpente de bronze no deserto. Em si, ela era um mero pedaço de bronze. Quando posteriormente as pessoas lhe prestaram adoração, como se tivesse alguma santidade ou poder em si, o rei Ezequias sabiamente a quebrou em pedaços (2Rs 18.4). Foi a graça salvadora de Deus que curou os israelitas mordidos, quando creram em sua palavra e obedeceram à sua ordem. Esses foram curados de uma doença física e receberam, portanto, mais tempo de vida terrena, mas o Filho do Homem garante vida eterna àqueles que olham para ele. Esta é a resposta para a pergunta de Nicodemos: “Como pode suceder isso?” (Jo 3.9). Experimenta-se o novo nascimento e entra-se no reino de Deus por meio da obra salvífica de Cristo, recebida pela fé.
Olhar para Aquele que carrega os pecados e é alçado à cruz traz consigo a vida, um novo tipo de vida – a vida eterna (v. 15). Essa é a primeira vez em que ocorre nesse evangelho a expressão frequente “vida eterna” (zōē aiōnios). Somente Aquele que é o Verbo Eterno (Jo 1.1) e cuja vida está nele (Jo 1.4) é que pode conceder a vida eterna. A palavra eterna aqui não significa uma “eternidade” em termos filosóficos, contraposta ao tempo, nem tampouco significa mera “infinitude”. Na verdade, vida eterna significa que a vida da “era futura, do mundo vindouro” invade a era presente e pode ser experimentada por todos aqueles que “olham” para a cruz.
Devido à importância dessa afirmação, Jesus repete-a no versículo 16, aprofundando-a e cristalizando-a no verso que talvez seja o mais conhecido de toda a Bíblia e que com razão tem sido chamado de “evangelho no evangelho”. Sua intenção é expor, em termos de aplicação universal, a lição ensinada a Nicodemos.
Deus ama o mundo tão intensamente, tão incompreensivelmente, tão profunda e poderosamente, a ponto de entregar o seu próprio e único Filho. O “mundo” aqui significa toda criatura alienada de Deus, hostil a Deus, pervertida (cf. Jo 1.5,10,11). Nesse sentido, o amor de Deus não tem limites e engloba toda a humanidade. O seu amor não foi apenas para um grupo ou para um povo, mas foi dado para que todos, sem exceção ou distinção, ao colocar sua fé nele, pudessem ser resgatados da destruição e abençoados com a vida eterna.
O versículo 16 ainda deixa claro que “perecer” (apolesthai) é a única outra alternativa além de ter vida eterna ou ser salvo. Por mais que a graciosa mensagem desse versículo seja a possibilidade da salvação em Jesus Cristo, ainda assim diz que toda pessoa está perdida sem o amor salvador de Jesus.
Tanto no versículo 15 como no 16, deixa-se clara a única ação agora exigida da pessoa: “crer nele”. Esse crer já estava no “olhar” para a serpente de bronze. Não é nenhuma realização, como se pudéssemos fazer qualquer coisa meritória para a nossa salvação. É um ato executável pelo mais humilde e fraco. Quem realmente crê e olha com fé para a cruz dá-se a si mesmo como perdido e reconhece sua libertação unicamente no Filho de Deus, que foi levantado numa cruz.
3. Meditação
Quando Nicodemos dirigiu-se a Jesus naquela noite (Jo 3.2), o Mestre advertiu-o afirmando que lhe era necessário nascer de novo para que pudesse ver e entrar no reino de Deus. Embora Nicodemos fosse mestre em Israel (v. 10), parece que ele não compreendeu exatamente a dinâmica da salvação. Sua pergunta bem objetiva é: “Como pode suceder isso?”.
Esta é a pergunta que também nós precisamos fazer: Como pode alguém nascer de novo? Como pode alguém entrar no reino de Deus? Como pode alguém ter a vida eterna? Podemos aqui dar algumas respostas:
3.1 – Não por esforço ou mérito próprio
Ninguém consegue nascer de novo ou entrar no reino por seu esforço próprio. Nossa natureza, conforme descrita por Jesus, é que nós amamos mais as trevas do que a luz; praticamos o mal e por isso aborrecemos a luz e não nos achegamos a ela (Jo 3.19-20). Essa é a nossa natureza. Já o salmista havia descrito isso (Sl 14.1-3; 53.1-3), e Paulo o reafirmou: “Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, a uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.10-12). Depois Paulo é ainda mais categórico: “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). Devido ao nosso pecado, estamos separados de Deus, pois nossas iniquidades nos separam dele (Is 59.2). Dessa forma, não há nada em nós que possa ajudar para a salvação, a não ser o pecado do qual precisamos ser perdoados.
3.2 – Pelo amor gracioso de Deus
Se não há nada em nós que possa contribuir para a salvação, é necessário que alguém outro a proporcione para nós. Por isso Deus tomou a iniciativa de amar o mundo e dar seu Filho. O Filho precisa ser “dado”, entregue e de certa forma abandonado por Deus na cruz, porque de “tal maneira Deus amou o mundo” (Jo 3.16). Paulo afirma que dificilmente alguém morreria por um justo, embora, nesse caso, talvez ainda valesse a pena. Mas Deus provou seu amor para conosco dando seu Filho para morrer na cruz, quando nós ainda éramos pecadores (Rm 5.7-8). Que grande amor!
Até nessa questão a pergunta de Nicodemos parece ressoar: “Como pode suceder isso?”, “Como pode alguém amar assim?”. Amar dessa forma somente é possível para Deus, pois faz parte de sua essência: Ele não apenas tem amor, Ele é amor (1Jo 4.8).
3.3 – Pela obra de Cristo na cruz
Embora o amor de Deus seja imensurável, ele não anula a justiça de Deus. Dessa forma, alguma coisa precisava ser feita para que o preço pelo pecado fosse pago. Ezequiel já afirmara: “Toda alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18.4). Pa¬rece que não há saída para o pecado, pois também Paulo declarou que “o salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). Mas Deus, assim como proveu uma saída para o povo no deserto, que estava morrendo devido às serpentes, proveu uma saída para o ser humano condenado à morte devido ao pecado. Essa saída implicava que Cristo fosse levantado numa cruz: sempre que alguém “olhar” para ele por meio da fé será salvo de sua condição pecaminosa e consequente condenação. Assim, crendo na obra de Cristo na cruz, não apenas somos salvos do pecado, mas recebemos juntamente a bênção da vida eterna.
Como está sua vida em relação a tudo isso? Como Nicodemos, você também não compreende “como pode suceder isso”? Entregue sua vida a Jesus e creia que ele pode livrar você do pecado e da condenação que o mesmo traz.
4. Imagens para prédica
* Olhar para Cristo tornou-se concreto na vida do jovem Charles Spurgeon. Sem paz, infeliz na vida, ele chega, num certo dia de janeiro, a uma pequena capela e, na palavra de Isaías, ele capta o chamado pessoal do pregador: “Meu jovem, você está aflito. Você jamais sairá da tristeza até que olhe para Cristo. Olhe! Olhe! Olhe! Basta olhar!”. No final de sua vida, Spurgeon testemunha: “Olhei para ele até quase gastar meus olhos, e ainda no céu pretendo continuar olhando com alegria inefável”. Por uma vida inteira, esse fundamento permaneceu sólido.
* Numa das galerias de Paris, há uma estátua notável. O escultor, como em geral todos os artistas famosos, era muito pobre e viveu e trabalhou num sótão. Ao terminar a estátua, olhou-a cheio de orgulho e afeição: quantas noites perdidas, quanto sacrifício e quanta paciência representavam aquela estátua! Bastante cansado, deitou-se. Naquela noite, caiu sobre Paris uma geada fortíssima. O escultor, acordando no seu quarto frio e desconfortável, lembrou-se da estátua tão recentemente terminada e teve receio de que a geada fosse estragar o trabalho que fizera com tanto esmero. Correndo os olhos pelo quarto, nada via com que pudesse proteger sua tão sonhada estátua. Sem hesitar um momento sequer, levantou-se e, tirando a roupa de cama com que se cobria, agasalhou com o máximo cuidado a bela escultura. Pela manhã, o escultor foi encontrado morto, mas sua estátua ainda hoje existe. Morreu para perpetuar a obra de suas mãos. Irmãos, somos a obra das mãos do Grande Artista. E Ele, semelhante a esse escultor, morreu também para nos dar vida eterna. Há, porém, uma diferença: o escultor que morreu preservou apenas sua estátua do mau tempo daquela noite; o Divino Escultor, porém, ressuscitou e vive para todo o sempre, podendo proteger-nos de todos os perigos.
5. Subsídios litúrgicos
Para uso na liturgia, seguem algumas sugestões:
Leitura bíblica:
Efésios 2.1-10
João 1.1-14
Atos 16.27-34
Frases de impacto:
* O plano e o propósito de Deus em salvar são tão eternos quanto ele próprio (Eric Alexander).
* Cristo não é apenas o Salvador, mas também a própria salvação (Matthew Henry).
* Nossa salvação é tão bem projetada, tão bem harmonizada, que Deus pode ter misericórdia dos pobres pecadores e estar em paz com eles, sem nenhum prejuízo em sua verdade e justiça (Matthew Henry).
* O plano de Deus para a salvação não é uma decisão para remediar uma situação; ele antecede a obra da criação (J. A. Motyer).
* Nenhum pecador jamais foi salvo por ter dado o coração a Jesus. Não somos salvos por ter dado, mas sim pelo que Deus deu (A. W. Pink).
* Nossa salvação é uma dádiva inteiramente gratuita de Deus (Benjamin B. Warfield).
* A graça de Deus não encontra homens aptos para a salvação, mas os torna aptos a recebê-la (Agostinho).
* A vida eterna é uma joia de valor muito alto para ser comprada com a riqueza deste mundo (Matthew Henry).
* A vida eterna não tem início com a morte; ela começa com a fé (Samuel Shoemaker).
Testemunhos:
Se houver na comunidade alguma pessoa que tenha tido alguma experiência marcante em termos de uma decisão de seguir a Cristo, pode ser-lhe solicitado que compartilhe a sua experiência.
Bibliografia
BOOR, Werner de. Evangelho de João I: comentário esperança. Trad. Werner Fuchs. Curitiba: Esperança, 2002. 262 p.
BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. Trad. Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 1987. 355 p.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).