Olhar para a cruz
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: João 3.14-21
Leituras: Números 21.4-9 e Efésios 2.1-10
Autoria: Gerson Acker
Data Litúrgica: 4º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 11/03/2018
1. Introdução
É muito conhecida a frase de Antoine de Saint-Exupéry: “O essencial é invisível aos olhos”. Concordamos. A essencialidade do evangelho não é apenas captada pelo olhar. Vai além, transcende. Porém, as perícopes propostas para o 4° Domingo na Quaresma exploram o olhar como impulso da fé.
O texto de Números 21.4-9 apresenta-se no formato “revolta-castigo-intercessão-perdão” e relata a insatisfação do povo de Israel com a vida no deserto, com o longo tempo gasto contornando obstáculos e com a “monocomida” do maná, chegando inclusive a pedir a volta ao Egito (v. 5b). Deus manda serpentes mortais para castigar a rebeldia. O povo se arrepende e pede que Moisés interceda para que a praga seja retirada. Deus atende, não retirando as serpentes, mas providenciando a serpente de bronze para ser erguida numa estaca; assim, quem fosse picado poderia olhar para a cobra de bronze e ser curado. A cura das mordidas está ligada à obediência e à fé. E, por ironia, a fonte de cura é semelhante à do castigo.
Em Efésios 2.1-10, o autor lembra aos seus leitores seu modo de vida cristão atual, contrastando-o com o passado pagão deles, quando esses estavam mortos nos vossos delitos e pecados (v. 1) e seguiam o príncipe da potestade do ar (Almeida) ou, mais claramente, o espírito que agora controla os que desobedecem a Deus (NTLH). Em contrapartida, apresenta a misericórdia de Deus que salva os “espiritualmente mortos” através de Jesus Cristo. Essa ação salvífica é um dom de Deus que vem pela fé e não depende da pessoa, é pura graça de Deus (v. 5b). Esse amor salvador será visto e percebido eternamente (v. 7), pois venceu a morte pelo poder da ressurreição de Cristo. Portanto as boas obras em si e por si mesmas não salvam, de modo que ninguém pode se orgulhar de alcançar a salvação por esforço próprio (v. 9). Por outro lado, como ação do próprio Deus, fomos criados em Cristo para as boas obras como parte integrante da vida cristã.
Seguindo essa linha hermenêutica, o texto proposto para pregação, João 3.14-21, apresenta o amor de Deus como princípio dinâmico para a salvação. O Deus de Jesus é um Deus motivado por um amor tão grande, que envia seu Filho ao mundo, não para condenar, mas para salvar, e para isso é preciso que o Filho do homem seja levantado (v. 14). Nota-se, portanto, uma intencional ligação entre o “erguer a serpente numa haste” de Moisés e a crucificação-ressurreição de Jesus como forma de redenção. É preciso olhar para a cruz para compreender o amor de Deus pela humanidade.
2. Exegese
O Evangelho de João é sem dúvida um escrito que sugere diversas possibilidades quanto à sua ambientação. Sabe-se com certeza que o autor é de origem judaica e escreveu em grego. Em grandes traços, o evangelho polemiza contra o judaísmo e o gnosticismo, tendo sido influenciado por estes em sua linguagem. As antíteses “carne/espírito”, “luz/trevas”, “coisas celestes/coisas terrenas” são alguns exemplos que comprovam isso. Bultmann, em sua Teologia do Novo Testamento, está convencido de que o quarto evangelho exprime uma única afirmação sempre repetida: Jesus é o revelador. É essa maneira de se revelar do Cristo que queremos auscultar na perícope de João 3.14-21.
O recorte bíblico proposto é a parte final do diálogo de Jesus com Nicodemos (3.1-21). Nicodemos não conseguia compreender a liberdade e a espontaneidade do Espírito Santo (o vento sopra onde quer – v. 8) e muito menos compreenderia a entrega do Filho do Homem na cruz. Então, Jesus fornece uma ilustração de Moisés que Nicodemos, como fariseu, conheceria muito bem: o evento descrito em Números 21.4-9. Analisaremos detalhadamente o evangelho proposto, dividindo a perícope em três partes.
2.1 A analogia da serpente (v. 14-15)
A narrativa sobre a serpente de bronze é uma história muito antiga que visa explicar por que havia uma serpente de bronze no Templo de Jerusalém. Essa imagem foi destruída no reinado de Ezequias por causa do culto em torno dela (2Rs 18.4). Por causa da sua capacidade de se regenerar, a serpente simboliza a vida, era usada como símbolo de fertilidade desde os tempos primitivos.
A base de comparação entre João e Números está no fato de que em ambos os casos a salvação se opera mediante o enaltecimento. O termo tem duplo sentido: alude ao enaltecimento de Jesus na cruz e também à ressurreição e ascensão para junto do Pai. Essa referência ao Antigo Testamento e, sobretudo, a visão da cruz como enaltecimento fazem com que João dê à paixão de Cristo um tom de revelação.
A expressão é preciso que o Filho do Homem seja levantado será repetida mais três vezes (Jo 8.28; 12.32,34) e a teologia de crucificação-exaltação joanina será esclarecida à medida que o evangelho continua.
2.2 A salvação (v. 16-18)
Central na teologia joanina e cristã é a convicção de que o amor de Deus é o princípio dinâmico para a salvação universal. O amor divino é tão grande que Deus manda seu Filho para salvar o mundo, não para julgá-lo.
João usa a palavra “mundo” em diversos sentidos. No v. 17 o uso é generalizado. Toda a criação é objeto do amor salvífico de Deus. Porém, tal salvação pode ser acolhida ou recusada. Embora Jesus tenha vindo para salvar e não para condenar, a resposta humana desempenha importante papel para determinar a salvação e a condenação. Parece até que não é tanto Deus quem julga, e sim a própria pessoa, pela decisão que adota em relação à fé. Crer significa reconhecer e acolher a fé em Jesus Cristo como Salvador. Sua aceitação ou recusa implica salvação ou condenação, a luz ou as trevas.
2.3 O paradoxo luz e trevas (v. 19-21)
João define os incrédulos como os que “amaram mais as trevas”. Não se trata somente de fazer o mal, o que é natural do nosso ser pecador. O problema é amar o mal e tê-lo como orientação profunda de vida. Por isso o evangelista está convencido de que quem tem uma prática má termina odiando a luz. Portanto a condenação é um processo que vem de dentro, consistindo em não crença na luz que é Jesus, acompanhada pelas más ações realizadas nas trevas. Curiosamente, a oposição luz-trevas faz memória ao prólogo (Jo 1.4-5).
Observa-se aqui uma expressão aparentemente curiosa: “praticar a verdade” (v. 21). Na nossa maneira corriqueira de nos expressar, a “verdade” não é para se fazer, e sim para se conhecer. Para João, pelo contrário, a verdade não é uma noção que se aprenda, tampouco simplesmente uma realidade cognitiva, ainda que divina; é o plano salvífico de Deus para ser acolhido e construído.
3. Meditação
No diálogo com Nicodemos, Jesus chega ao ponto decisivo de sua resposta à pergunta feita pelo fariseu: o local a partir do qual se nasce da água e do Espírito. Jesus vai falar da cruz. Nada mais luterano do que apontar para a cruz e, sobretudo, para o crucificado como fonte de perdão, salvação e nova vida. O envio do Espírito não poderia acontecer antes do sacrifício do Filho e sua exaltação. É isso que Nicodemos precisa compreender a partir da história da serpente de bronze.
No tempo do deserto, a salvação para Israel veio por meio da serpente de bronze. A mordida letal das serpentes era curada pela imagem da serpente. A cura acontecia através de uma coisa que pudesse ser feita também pela pessoa mais frágil: olhar para a serpente. Como pessoas cristãs, somos “mordidos” pelo pecado e nossa salvação depende de voltarmos nossos olhos para o Cristo erguido no madeiro. Eis o cerne da perícope: Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho Unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna (v. 16).
Em nossa vida, topamos com limites. Ficamos doentes, somos acometidos por medos, culpas, dúvidas e depressões. Nossa existência abarca, em grande parte, conviver com sombras das quais não conseguimos nos livrar, apesar de nossos esforços. Em tudo isso, desejamos sempre a liberdade de uma realidade redentora.
De uma forma diferente, a passagem de João 3.14-21 quer nos ajudar a refletir sobre como nós entendemos e experimentamos a redenção. Como pessoas cristãs, entendemos, às vezes, a redenção em sentido demasiado transcendente. Um olhar para a Sagrada Escritura revela outra coisa: a redenção começa aqui e agora. A história de Jesus é exemplar nisso. Ele veio para nos remir, salvar e curar. Ele curou enfermos, endireitou encurvados, perdoou os pecados aos pecadores e deu às pessoas desanimadas e “mordidas pela serpente” nova disposição e coragem de viver. Isso mostra que podemos experimentar a redenção em nossa vida como algo terapêutico e libertador.
A redenção é concreta. Quando o ser humano sente-se amado incondicionalmente, fica livre da compulsão e da necessidade de se mostrar através de realizações e obras. Portanto redenção significa olhar para aquele que por mim morreu na cruz e ficar livre de todas as depreciações incidentes sobre a minha própria pessoa. É reconhecer: eu tenho valor!
Quem olha para o Cristo levantado na cruz, crendo nele como luz, não é julgado. É muito interessante como o juízo de Deus é apresentado de forma tão misericordiosa. A intenção de Deus não é condenar, mas salvar. Tal postura serve perfeitamente como modelo de atitude para a vida cristã: não julgar, não condenar, mas proporcionar acolhimento e salvação. Quem nele crê não é julgado (v. 18). Como é estranho que, ao contrário do que diz essa frase, geralmente pregamos nas igrejas que também os que creem terão de sofrer o juízo que virá sobre o mundo. Com base na palavra de Jesus, cada pessoa que crê tem o privilégio de viver e morrer com a certeza de não ser julgado.
Se isso for verdade, necessariamente também é verdade o seguinte: “O que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do único Filho de Deus”. Percebe-se aqui a centralidade da fé como meio da redenção. A fé é dádiva de Deus, mas que apesar disso não exclui nossa vontade própria. Ninguém chega à fé e permanece nela sem uma decisão em sua vontade pessoal. Seja como for, negar-se a crer é uma decisão da própria pessoa. Em última análise, essa rejeição origina-se no orgulho do ser humano, que pensa que não necessita desse amor, porque não quer admitir sua perdição (v. 20). Dentro dessa lógica dogmática, quem não quer aceitar o ato redentor de Deus na entrega do Filho está forçosamente sujeito ao juízo e, consequentemente, já está julgado, ainda que isso venha a ser definitivamente manifesto apenas diante do trono celestial (Ap 20.11).
O amor salvador de Deus, expresso na cruz, nos redime de todos os pecados. Porém, quem rejeita esse amor salvador entrega-se a si mesmo à perdição. O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz (v. 19). A luz veio ao mundo, ela quer brilhar nas trevas, iluminar, salvar da escuridão, conceder na luz a vida. Porém, fica evidente que as pessoas amam mais as trevas do que a luz. Para Jesus, essa terrível predileção das pessoas pelas trevas é o que as afasta de Deus.
O convite deste evangelho é uma mudança ética concreta pessoal e relacional: “praticar a verdade” (v. 21) para novamente nos aproximarmos da luz. Nós pensamos que importa reconhecer a verdade, sabê-la, entendê-la. No cristianismo geralmente também buscamos apenas essa percepção racional da verdade. Usamos um conceito de verdade que significa apenas um pensamento correto. O evangelista João, porém, usa o termo “verdade” para expressar a realidade efetiva da vida em contraposição a toda a aparência e a todo o encobrimento da realidade pela mentira. Praticar a verdade, portanto, em primeiríssimo lugar, significa arrepender-se. É deixar a escuridão que nos encobre e olhar para a luz, na qual obviamente são expostos os nossos pecados. Por isso arrependimento verdadeiro, sem restrições, acontece unicamente diante da cruz. A pessoa arrependida de seus pecados, que volta seu olhar para o Cristo Crucifi cado, é verdadeiramente gerada do alto por graça e nascida de novo, respondendo assim à pergunta de Nicodemos.
4. Imagens para a prédica
No processo de tornar a prédica mais criativa e vívida, a imagem da serpente poderia ser bastante explorada. Pode-se contrapor a ideia de que a serpente produz o veneno que mata e, simultaneamente, através do veneno se produz o antídoto. Uma analogia à cruz de Cristo: ela expõe o nosso pecado e, simultaneamente, dela provém nossa salvação, desde que olhemos para ela. É em Cristo levantado numa cruz que nossos olhos devem estar focados.
O próprio verbo “olhar” pode ser muito útil, dada a importância dele na perícope de João 3.14-21. O convite do olhar para a cruz/luz também tem uma dimensão de lei e evangelho, pois revela nosso pecado e nos apresenta a redenção de Deus através da entrega do Filho Unigênito. Caso se opte por essa abordagem, a pequena fábula abaixo pode ser útil, pois usa a figura da “serpente”, da “luz” e explora a tendência de “amar mais as trevas”.
“Uma cobra estava perseguindo desesperadamente um vagalume. E a cobra seguia o vaga-lume, que voava, voava… e ela se arrastando loucamente. O vagalume, cansado da perseguição, parou e falou para a cobra. – Posso lhe fazer três perguntas? A cobra respondeu: – Sim. O vagalume, então perguntou: – 1º: Por acaso eu faço parte da sua cadeia alimentar? A cobra respondeu. – Não. – 2º: Eu te fiz alguma coisa? A cobra respondeu. – Não. – 3º: Então, por que você está me perseguindo? A cobra respondeu: – A sua luz me incomoda”.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados: Amado Cristo, nós nos voltamos à tua cruz e, assim, enxergamos o nosso pecado. Confessamos-te a nossa predileção por seguir a escuridão. Confessamos-te as nossas más ações e todo mal que cometemos contra nossa integridade e a de nosso próximo, sobretudo quando julgamos de forma cruel. Perdão por nos afastarmos da prática da verdade e por faltar verdade nas nossas palavras, nos nossos gestos e nos nossos relacionamentos. Olhamos para ti, Senhor, e humildemente suplicamos teu perdão. Que tua luz brilhe sobre nós. Amém.
Oração do dia: Querido Deus, teu amor pela humanidade é tão imenso que entregaste teu Filho para que tenhamos vida eterna. Ajuda-nos para que aqui e agora já possamos sentir os sinais da tua redenção. Que a proclamação da tua Palavra nos sensibilize, para que compreendamos e vivamos a verdade do evangelho sem nunca deixar de olhar para a cruz. Por Jesus Cristo, que contigo e o Espírito Santo, vive e reina eternamente. Amém.
Bibliografia
BERGANT, Diane; KARRIS, Robert (Org.). Comentário Bíblico. São Paulo: Loyola, 1999. v. 3.
FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. São Paulo: Loyola, 1995. v. 2.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).