Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: João 6.1-15
Leituras: 2 Reis 4.42-44 e Efésios 3.14-21
Autoria: Alfredo Jorge Hagsma e Vera Regina Waskow
Data Litúrgica: 9º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 29/07/2012
1. Introdução
Esta é a sexta vez que esse texto é tratado na série Proclamar Libertação. Na edição de 2006, Nilton Giese fez um resumo das edições anteriores em que o texto foi tratado. Tomamos a liberdade de recuperar esse resumo, tendo em vista que nem todos têm acesso às edições anteriores:
Ulrico Sperb fez a primeira abordagem desse texto no PL 4. Ele acentua que o amor de Deus não é teórico, de discurso. Mas se trata de um amor concreto, de sinais visíveis. Mas apenas consegue ver esses sinais quem segue Jesus, quem é movido pela esperança. A partir daí, ele faz algumas sugestões, como: numa realidade de fome, é justo investir mais em pedras (construções) do que em pão (alimentos)? Fome provoca retardamento mental. O desafio de Jesus é motivar o repartir. Como as igrejas podem fazer uma campanha de alimentação a partir desse desafio de Jesus?
Friedrich Genthner escreve sobre esse texto no PL 10, em busca de consolo para o luto, de confronto com a doença, de solidariedade com os pobres em meio à fraqueza. Diante dessas questões, o autor destaca Jesus como o pão da vida. “Onde Jesus está no centro, ali há colaboração, casas abertas para reuniões, recursos, crescimento espiritual, compartilhar de dádivas, preocupações, conflitos, muita oração e comunhão.”
Dulce Engster traz sua colaboração sobre esse texto no PL 19. Ela contribui em forma de meditação, a partir de uma análise exegética em que destaca aspectos particulares de João em relação aos paralelos de Mateus, Marcos e Lucas. Por exemplo: somente João menciona que estava próxima a Páscoa dos judeus; os pães e os peixes estão nas mãos de uma criança (menino); somente em João é dito que o pão é de cevada e que Jesus dá ordem aos discípulos para recolher as sobras, para que nada se perca; o povo queria tornar Jesus seu rei, mas Jesus foge para a montanha. A partir dessas particularidades, ela desenvolve sua reflexão trazendo também uma sugestão muito interessante para recontar o texto a jovens e crianças.
Marga Stroeher e Valdemar Schulz desenvolvem sua reflexão no PL 25. Fazem um recorrido exegético muito bom sobre o Evangelho de João e depois sobre o texto, acentuando que em Jesus se decide a fé. A escassez gera abundância. Mas Jesus não quer que a igreja pense em fazer isso por meio do poder. Ele rejeita o uso do poder para resolver a falta de pão. A presença da criança e do repartir quer que sua igreja seja reconhecida pela partilha. Por fim, fazem uma sugestão de celebração para o uso do Salmo e de motivações para as leituras bíblicas, terminando com o hino “Repartir”, que pode ser articulado em gestos.
Em 2006, Nilton Giese diz, no PL 31, que “Jesus ensina que a dinâmica do reino é a arte de repartir. Talvez todo o dinheiro do mundo não seja suficiente para comprar alimento necessário para os que estão passando fome… O problema não se soluciona comprando, mas repartindo! No mundo capitalista, se tem a ideia de que tudo se resolve com dinheiro, mas Jesus aponta para outros valores capazes de fazer muito mais do que qualquer moeda. A fome não é fruto da pobreza, mas do egoísmo e do conformismo”.
2. Exegese
Faremos uso da pesquisa exegética feita pela colega Regene Lamb para sua Dissertação de Mestrado: Criança é presente, Pistas para uma hermenêutica bí¬blica na perspectiva de crianças. As informações exegéticas abaixo são citações literais dessa pesquisa.
2.1 – As referências ao tempo
O v. 1 inicia mencionando o tempo no qual o fato descrito se passa. É um tempo “depois”, que vem marcado e definido por aquilo que aconteceu anteriormente, ou seja, pelos sinais que Jesus fazia com os doentes: João 4.46-54 – a cura do filho de um funcionário real, um menino (v. 49), cujo pai intercede por ele; e João 5.1-15 – a cura de um homem que estivera doente por trinta e oito anos e está sozinho, sem ninguém que o ajude (v. 7).
O v. 4 traz outra referência ao tempo da Festa da Páscoa. Uma informação solta, que precisa ser analisada no contexto maior do Evangelho de João. A Páscoa é a festa comemorada para lembrar o Êxodo, a saída da terra da escravidão, o acontecimento mais importante da história do povo, que narra suas experiências nos textos bíblicos.
O exegeta Schackenburg relaciona também a observação do v. 10: “Pois havia naquele lugar muita grama”, com a localização temporal na primavera, pois só nessa estação do ano a grama seria perceptível. Porém, além do aspecto temporal, consideramos essa informação importante do ponto de vista do cenário, do lugar onde os acontecimentos são vivenciados. Também o v. 12 inicia com uma conjunção temporal: “quando ficaram satisfeitos”, dando destaque para o tempo transcorrido entre a partilha e a saciedade das pessoas participantes. Não foi preciso comer com pressa, e ninguém saiu com fome.
2.2 – O lugar
Jesus atravessou o mar da Galileia, que é o de Tiberíades (v. 1b). Jesus passara por Jerusalém (capítulo 5) e agora está de volta ao lugar onde a realidade de doença e carência mobiliza a multidão, pois essa o segue. Jesus retira-se para o monte e senta-se com seus discípulos (v. 3). O monte aponta sempre para a busca de um distanciamento, mas aqui não se torna possível, porque a multidão segue Jesus e não recua diante do monte.
Naquele lugar, havia muita relva (v. 10), que é indicada como possibilidade para que o povo pudesse tomar lugar (em grego: anapipto). Na linguagem dos evangelhos, o verbo anapipto ocorre em Mateus 15.35; Marcos 6.40; Marcos 8.6 (narrativas paralelas a João 6.1-5) e em Lucas 11.37; 17.7; 22.14; João 6.10; 13.12. Refere-se sempre ao ocupar lugar em uma mesa, reclinar-se à mesa; em Lucas 14.10, refere-se ao lugar ocupado por alguém em uma festa e, em João 13.25 e 21.20, ao reclinar-se sobre o peito de Jesus. Predominam os usos desse verbo para indicar mais do que um simples sentar, pois indica explicitamente o ato de tomar um lugar para participar de uma refeição.
Um povo cansado celebra um banquete. Cada qual ocupa um lugar. Ninguém é excluído, mesmo que nem todos sejam contados, como indica o v. 10. O que possibilita a acomodação de uma grande multidão é um espaço em meio à natureza, sem cercas e paredes, sem lugares definidos para os que se consideravam mais importantes. Sem distinguir entre crianças, adultos, mulheres, homens, judeus, gregos, romanos, escravos, libertos. O lugar é definido pela relva. Ela é acolhedora. Pode pinicar um pouco, mas deixa sentar livremente todos e todas indistintamente. Assim ocorre uma partilha em meio a um povo comum e livre. Talvez em outro lugar, a criança não teria sido percebida ou os discípulos teriam tentado barrar o seu acesso a Jesus. As narrativas da partilha dos pães e dos peixes nos sinóticos apontam para uma certa distância entre o local que a multidão se encontrava e um lugar onde se poderia comprar alimentos. Esse lugar onde Jesus, os discípulos e a multidão estão reunidos deve ter sido amplo para permitir que tanta gente se agrupasse de forma ordenada. Nesse local, não há lugares pré-definidos, pré-fixados. Faz-se presente, sim, a ordem social; pelo fato da situação ser inusitada, há mais possibilidade para estabelecer outros tipos de relações. O sinal de Jesus não é direcionado para um grupo específico, com regras pré-definidas. Assim há possibilidade para o protagonismo de mulheres, escravos e crianças. Estar em campo aberto oportuniza fugir da rigidez estabelecida entre as pessoas e os papéis que elas representam. O lugar informal permite uma interação diferente entre as pessoas; elas podem olhar umas para as outras, perceber os detalhes, os cheiros, as roupas, as doenças, o sofrimento e as marcas dos semblantes que cada uma carrega. Podem também conversar, brincar, festejar.
Comer é um momento de comunhão e partilha, constitutivo da identidade das primeiras comunidades cristãs. O comer faz parte dos encontros das comunidades. E esse acontece de forma que todos possam ficar satisfeitos. É preciso ter possibilidade para sentar como numa festa. As informações sobre as condições do lugar são mínimas, mas estão presentes e apontam para uma possibilidade de comunhão de mesa também entre uma multidão, normalmente excluída da participação dos grandes banquetes sociais e religiosos.
Hoje temos pouquíssimos lugares para a reunião de pessoas de forma totalmente igualitária. Predominam os espaços e as acomodações definidas a partir das pessoas adultas com suas mesas e cadeiras ordenadas de tal maneira que apenas os grupos que já se conhecem ficam próximos uns dos outros. Precisamos reconhecer que toda a organização espacial é pensada e executada por pessoas; logo expressa poder.
Aí, nesse lugar (v. 9), está uma criança que tem cinco pães de cevada e dois peixinhos (6.9). Do meio da multidão emerge uma criança que oferece o que tem.
2.3 – As pessoas que interagem na narrativa
Jesus é claramente aquele em torno do qual tudo gravita. Há uma multidão que o seguia. No v. 5, fica claro que Jesus está acompanhado de seus discípulos, a quem ele se dirige. São mencionados nominalmente: Filipe e André, irmãos de Simão Pedro. No v. 9, uma criança é mencionada, e logo depois, no v. 10, é dito que os homens eram cinco mil. No caso, não é dito que mulheres e crianças não são contadas, como se diz explicitamente no Evangelho de Mateus em 14.21 e 15.38. Porém fica claro que elas deixam de ser contabilizadas por usar o termo andres (varões) ao falar dos cinco mil que tomaram lugar. Anteriormente, foi falado sobre a criança. Portanto ela estava lá e interage com os discípulos e certamente também com Jesus.
3. Meditação
O que faz ter o suficiente é a ação de graças, o reconhecimento de que o que se tem é de todos e aí há mais do que o necessário. E não há determinação da quantidade que cabe a cada um. Todos podem se satisfazer. A generosidade de Deus é celebrada em continuidade com a dádiva de seu próprio Filho. Por isso, nada pode se perder das dádivas; a comunidade deverá dar continuidade a novas partilhas (v. 12). Jesus é reconhecido como profeta por alguns; por outros, entendido como rei. Mas Jesus foge dessa concepção: “Para saciar a multidão, não partiu de posição de superioridade e força, e sim de debilidade e escassez de recursos da própria comunidade, figurada por um menino. A fonte de abundância que abriu é a generosidade mesma de Deus, capaz de multiplicar o que parece desproporcionado ao objetivo”. A sua ação e proposta ainda não são entendidas. A expectativa das pessoas é de um poder de chefe, que faz por e não de poder que serve partilhando.
O que Jesus quis ensinar à multidão, mas também aos discípulos, é que sua dinâmica é diferente: é a dinâmica do repartir. Jesus quis mostrar a Filipe e aos demais que o problema não se soluciona ao comprar pães e distribuí-los. A saciedade não é somente uma questão de ter pouco ou muito dinheiro, mas uma questão de organização. Um fato importante nesse episódio é que Jesus sacia o povo a partir do povo. O alimento que alguém carregava e que foi apresentado se tornou alimento para todos. Quando não omitimos, quando apresentamos nossos dons a Deus, ele pode transformar algo pequeno em grande, e assim muitas pessoas são saciadas a partir da partilha. A solução nem sempre vem de fora; muitas vezes, pode estar mais perto do que se imagina.
Penso que não há como fugir. O próprio texto nos questiona: O que nós estamos oferecendo a Deus para que ele use em favor de seu povo? Onde estamos estendendo nossas mãos para ajudar, para saciar a fome, o frio, o medo, a angústia, a dor?
4. Imagens para a prédica
Conta a história que uma pequena comunidade estava se organizando para a construção de um templo. O pastor sabia que aquela obra levaria anos para ser concluída. A comunidade era humilde, mas também de um pensamento pouco solidário. Então o pastor pensou que cabia uma atitude de impacto, que fizesse cada pessoa refletir. Certo dia, em uma grande celebração, o pastor anunciou emocionadamente: “Já temos o dinheiro para a construção do templo”. Todos os que ali estavam ficaram boquiabertos e também emocionados. Ao que o pastor completou: “Porém esse dinheiro ainda está em seus bolsos”.
5. Recursos litúrgicos
Confissão de pecados:
Senhor, chegamos em tua presença e te confessamos: temos pecado contra ti e contra pessoas próximas. Temos pecado em pensamentos, em palavras e em ações. Nossas mãos gananciosas têm guardado, enquanto ao nosso lado a fome grita e mata. Nossas prateleiras estão cheias de alimentos, enquanto ao nosso redor migalhas são ajuntadas pelos que têm fome. Senhor, somos egoístas, temos medo da partilha, não temos coragem de dar daquilo que temos, e isso nos faz admitir que não confiamos em ti, que não cremos que tu mesmo nos alimentas e seguirás alimentando. Não cremos que o pão partilhado se multiplicará. Senhor, quanta falta de fé, quanta ganância, quanta pobreza de teu amor, de teu evangelho, quanta pobreza do que Jesus ensinou: amar e servir. Olha para nós, Senhor, com misericórdia e com bondade. Acolhe-nos assim como somos: falhos, pecadores, e por tua graça e teu amor nos transforma. Por isso pedimos, dizendo juntos: “Oh Deus, tem compaixão de nós e perdoa-nos”. Amém.
A poesia abaixo pode ser usada como um poema introdutório:
O pão do povo
A justiça é o pão do povo.
Às vezes bastante, às vezes pouca.
Às vezes de bom gosto, às vezes de gosto ruim.
Quando o pão é pouco, há fome.
Quando o pão é ruim, há descontentamento.
Fora com a justiça ruim!
Cozida sem sabor, amassada sem sabor!
A justiça sem sabor, cuja casca é cinzenta!
A justiça de ontem, que chega tarde demais!
Quando o pão é bom e bastante,
o resto da refeição pode ser perdoado.
Não pode haver tudo logo em abundância.
Como é necessário o pão diário,
é necessária a justiça diária.
Sim, mesmo várias vezes ao dia.
De manhã, à noite, no trabalho, no prazer.
No trabalho que é prazer.
Nos tempos duros e felizes.
O povo necessita do pão diário
da justiça, bastante e saudável.
Sendo o pão da justiça tão importante,
quem, amigos, deve prepará-lo?
Quem prepara o outro pão?
Assim como o pão, deve o pão da justiça
ser preparado pelo povo.
Bastante, saudável, diário.
Bertolt Brecht
Bibliografia
LAMB, Regene. Criança é presente. Pistas para uma hermenêutica bíblica na perspectiva de crianças. Dissertação de Mestrado Profissionalizante. São Leopoldo, 2007.
BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 309. Tomado do Livro de Culto da IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, 2003.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).