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Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: João 6.51-58
Leituras: Provérbios 9.1-6 e Efésios 5.15-20
Autora: Helga Rodrigues Pfannemüller
Data Litúrgica: 12º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 16/08/2015
1. Introdução
No tempo de Pentecostes, a igreja cristã reflete acerca dos ensinamentos do Jesus Cristo ressuscitado. A leitura de Provérbios exorta-nos à sabedoria do hospedeiro que prepara a sua casa para receber os sem juízo, na esperança de que esses escolham a vida e o caminho da inteligência em vez da ingenuidade. Na Carta aos Efésios, o apóstolo Paulo também exorta os membros de sua comunidade a abandonar a insensatez em que vivem pela sabedoria daqueles e daquelas que vivem de acordo com a vontade do Senhor. Vede, pois, cuidadosamente como andais: não como tolos, mas como sábios (…), não sejais insensatos, mas procurai conhecer a vontade do Senhor (Ef 5.15,17).
2. Exegese
2.1 – Delimitação e contexto
O objetivo do Evangelho segundo João é desdobrar a confissão de que “Jesus é o Cristo, Filho de Deus” (20.31). Conforme está formulado em seu prólogo: E o Verbo se fez carne e habitou entre nós cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai (1.14). Claus Westermann identifica três partes principais de João, que correspondem às três partes da frase em 1.11s:
Cap. 3-6: Ele veio para o que era seu, 7-12: e os seus não o receberam;
13-17: Mas a todos quantos o receberam…
Nossa perícope está inserida dentro da primeira parte. Os capítulos 3-6 giram em torno dos conceitos luz/verdade (3-4) e vida (5-6). Neles Jesus revela–se como o enviado de Deus. Essa primeira parte do evangelho começa e termina com alusões aos sacramentos: Batismo (3.5; 4.10; 13,14) e Ceia do Senhor (6.51- 58). Westermann sugere a seguinte subdivisão dessa primeira parte:
3-4: Ele vem em sua palavra (verdade);
5-6: Ele vem em seus milagres (vida).
Enquanto em 3-4 Jesus dá-se a conhecer através de dois diálogos (Nicodemos e a mulher samaritana), em 5-6 ele revela sua missão através de milagres (curas, multiplicação de pães e peixes). Tanto os diálogos como as curas desembocam em longos discursos de Jesus. Através dos milagres Jesus revela que sua ação salvífica envolve e inclui o âmbito corporal. O capítulo 6 pode ser dividido como segue:
1-26: milagre da multiplicação, Jesus anda sobre o mar;
27-29: discurso sobre o pão da vida;
60-71: reações ao discurso (discípulos escandalizados e confissão de Pedro).
Nossa perícope, cujo tema é a Ceia do Senhor, faz parte do discurso deJesus sobre o “pão da vida”. O discurso, por sua vez, é uma resposta de Jesus à multidão que deseja aclamá-lo rei, por ter sido alimentada por ele. Ele começa advertindo: Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna (v. 27). O final do discurso é justamente a parte que fala do comer a carne e beber o sangue do Filho do Homem. A fala de Jesus provoca reações opostas. De um lado, a incompreensão e o escândalo de “muitos dos seus discípulos”, que o abandonam afirmando: Duro é este discurso; quem o pode ouvir? (v. 60). De outro lado, a confissão de Pedro: Tu tens as palavras da vida eterna; e nós temos crido e conhecido que tu és o Santo de Deus (v. 68ss).
Diferentemente dos demais evangelhos, João não possui um relato da instituição da Ceia do Senhor. Separando a Ceia do contexto direto dos últimos dias de vida de Jesus, João projeta seu conteúdo para dentro da situação pós-pascal, ou seja, para dentro da situação das primeiras comunidades (cf. L. Goppelt).
2.2 – Conteúdo
V. 51 – “Eu sou o pão vivo…”. A perícope inicia retomando a afirmação de Jesus feita nos v. 35 e 48. Jesus revela a seus ouvintes sua identidade e missão. O autotestemunho de Jesus em João está concentrado nos ditos “Eu sou…”, sempre seguidos de uma palavra figurada determinativa, tomada emprestada das necessidades elementares da subsistência humana, como água e pão (cf. Goppelt, p. 546). A figura descreve aquilo que Jesus veio trazer às pessoas – ele próprio. Nesses ditos, Jesus parte das necessidades mais básicas e evidentes do ser humano (p. ex. fome e sede), mas aponta para além delas. Ao contrário do alimento que buscamos para nos manter vivos, o alimento que ele oferece é “verdadeiro” (v. 55) e sacia a fome e a sede “para sempre”. O “Eu sou” é uma fórmula de revelação: revela ao ser humano algo até então desconhecido e inacessível. Fome e sede evidenciam a busca humana por vida. O pão e a água prolongam a vida terrena, mas não podem evitar a morte. Jesus se oferece, com exclusividade, como “vida eterna”. Apenas ele pode saciar nossa fome e sede de vida: “se alguém dele comer, viverá eternamente”. A referência ao “comer” torna explícito o que já estava subentendido em todo o capítulo: Jesus está falando da Ceia. O pão que Jesus dá é sua “carne”, ou seja, seu próprio “corpo”, sua existência encarnada, sua vida. Na “carne”, o Cristo identifica-se conosco em nossa transitoriedade. Jesus dá sua vida “pela vida do mundo”; morre para que o mundo viva. A morte de Jesus traz salvação.
V. 52 – Os ouvintes de Jesus não compreendem o que ele diz: Como pode este dar-nos a comer a sua própria carne? Quem não compreende/aceita o mistério da encarnação de Deus na pessoa de “Jesus, o ilho de José” (v. 42) não aceitará o mistério de sua morte e muito menos a oferta de sua presença corporal na Ceia. É algo humanamente incompreensível: Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer (v. 44).
V. 53 – A resposta de Jesus é clara: a comunhão com ele na Ceia é necessária para a salvação. Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos.
V. 54 – Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, ou seja, a Ceia concede já agora “vida eterna” e é garantia para a ressurreição futura. Vida/vida eterna é conceito central em João, substituindo os conceitos de reino/justiça de Deus. – Chama a atenção o realismo: aqui não se fala em comer, mas em mastigar, impedindo uma interpretação espiritualizante. A comunhão com Cristo e seu efeito salvífico estão diretamente ligados com a Ceia e seus elementos materiais. Cristo liga sua presença aos elementos da Ceia.
V. 55 – O alimento que Jesus oferece (carne/sangue) é “verdadeiro”, ou seja, o único que pode dar vida. Reconhecer a verdadeira fonte de vida (Jesus Cristo encarnado, que se oferece na Ceia) relativiza a busca humana por vida em outros “alimentos”. Jesus Cristo revela-se como aquilo que o ser humano busca, sem saber, no “pão diário” (comida, bebida, vestes, casa, dinheiro, bens, amigos etc.).
V. 56 – A Ceia proporciona comunhão com Jesus: “quem comer/beber… permanece em mim, e eu, nele”.
V. 57 – A Ceia, ou seja, Jesus proporciona a vitalidade que há somente em Deus: “o pai vive – eu vivo pelo Pai – quem de mim se alimenta viverá por mim”.
V. 58 – Jesus, presente na Ceia, é pão enviado por Deus, mas é diferente do maná recebido no deserto. Aqui aparece novamente a oposição ao “pão diário” que as pessoas tanto buscam. Jesus não despreza essa busca, mas mostra a nossa tendência de garantir o pão diário em primeiro lugar na vida. Se o temos, estamos seguros; se não o temos, desesperamos. Diante da oferta de Jesus, tudo o mais se torna relativo sem perder sua importância.
3. Mensagem
Jesus Cristo não veio ao mundo para suprir mais uma necessidade humana (religiosa, espiritual), mas a única necessidade que temos: a sede de vida. Ele não veio completar o que faltava, mas para colocar-se no lugar do que já existe. Todo o nosso esforço – também nossas orações e nossa espiritualidade – está direcionado para a busca do “pão diário”, que nos proporciona segurança e felicidade. Também Deus deve servir a esse propósito. Em João 6, Jesus revela essa nossa tendência (instinto) natural e mostra o que realmente importa: trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna (6.27). O que importa é a salvação, é isso o que Jesus veio trazer.
Salvação/vida eterna têm aquele e aquela que reconhecem em Jesus de Nazaré o Cristo, o Filho de Deus e que conseguem viver a partir dessa verdade. Esse reconhecimento da encarnação João chama de “crer” (6.35,36,40). Aqueles e aquelas entre os quais o encarnado viveu podiam vê-lo com seus olhos, ouvi-lo com seus ouvidos e tocá-lo com suas mãos (cf. 1Jo 1.1ss). Nós não o podemos. Mas o mesmo Cristo permite que nós o recebamos corporalmente; ele liga sua presença aos elementos da Ceia. Confiar nessa presença é condição necessária para a salvação. A presença corporal do Cristo morto e ressuscitado é alimento para a nossa fé fraca e cansada – alimento para a vida eterna.
Como estímulo ao nosso pensar teológico, seja dito que Jesus Cristo vem a nós, comunica-se conosco e concede-nos salvação (perdão dos pecados, vida eterna, justificação) através da Palavra e dos sacramentos. O que diferencia essas duas formas de comunicação/comunhão?
“Tudo o que a Escritura atribui aos sacramentos também seria transmitido na Palavra. Nesse caso, porém, esquece-se a outra maneira da mediação. Pode-se ouvir ou ignorar a Palavra, pode-se levá-la a sério ou deixá-la de lado. No caso dos sacramentos, porém, cada qual está colocado pessoalmente diante da decisão e tem que expor-se ao agir de Deus. A pessoa pode fingir, pode fazê-lo por tradição, mas nem por isso pode subtrair-se à ação de Deus. Por meio do agir de Deus os sacramentos sempre tornam-se palavra real, que têm as características da graça e do juízo” (G. Vicedom, p. 89).
“… a Santa Ceia torna experimentável de modo especial a nova comunhão que resulta da nova aliança entre Deus e o ser humano. Como sacramento, também aqui ela (a Santa Ceia) não oferece nada além do que oferece o anúncio da palavra (de Deus), mas oferece de modo especial: ao anúncio da palavra bíblica juntam-se a visibilidade e a degustabilidade (o sacramento torna-se acessível fisicamente para determinados sentidos), uma ligação específica de individualidade e comunhão (o sacramento é distribuído individualmente às pessoas na comunhão cultual) e o caráter confessional (o sacramento deve ser solicitado expressamente pelo indivíduo)” (Conselho da Igreja Evangélica na Alemanha, A Santa Ceia).
Será essa forma especial de mediação e de comunhão, proporcionada pelos sacramentos, que motivou Paulo a exortar os coríntios com tanta insistência? Eis porque todo aquele que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Por conseguinte, que cada um examine a si mesmo antes de comer desse pão e beber desse cálice, pois aquele que come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe a própria condenação (1 Co 11.27s).
4. Subsídios litúrgicos
Versículo de acolhida ou de envio:
“Buscai, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” (Mateus 6.33).
A leitura do evangelho pode ser introduzida com as seguintes palavras:
Cada vez mais pessoas neste mundo têm fome.
Fome de pão,
fome de realização,
fome de vida.
Jesus diz sobre si mesmo:
Eu sou o pão da vida.
Como isso acontece,
como se pode ver e provar isso,
explica João no sexto capítulo do seu evangelho.
(Tradução livre do livro: “Hinführungen zu den biblischen Lesungen im Gottesdienst”)
Hino:
HPD I, 197
Bibliografia
CONSELHO DA IGREJA EVANGÉLICA NA ALEMANHA. A Santa Ceia – Auxílios orientadores para a compreensão e prática da Santa Ceia na Igreja Evangélica. São Leopoldo: Sinodal, 2005.
GOPPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1982. v. 2.
VICEDOM, Georg. A missão como obra de Deus. São Leopoldo: Sinodal, 1996. WESTERMANN, Claus. Abriss der Bibelkunde. Stuttgart: Verlagsgemeinschaft Burckhardthaus und Kreuz Verlag, 1964.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).