Por quem se decide o teu coração?
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: João 6.56-69
Leituras: Josué 24.1-2,14-18 e Efésios 6.10-20
Autoria: André Martin
Data Litúrgica: 14º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 26/08/2018
1. Introdução
O texto previsto para este 14º Domingo após Pentecostes já foi trabalhado pelo colega P. Guilherme Lieven no PL 36. Os textos sugeridos apontam para a decisão em favor de Jesus Cristo, o enviado de Deus, o pão que desceu do céu. Essa temática irá nos conduzir no estudo que proponho. As palavras de Pedro, ao final do texto proposto para a pregação, quando Jesus pergunta aos doze se eles também querem ir embora, são cruciais para a interpretação que daremos ao texto: Simão Pedro respondeu: Quem é que nós vamos seguir? O senhor tem as palavras que dão vida eterna! E nós cremos e sabemos que o senhor é o Santo que Deus enviou.
No texto de Josué 24.1-2,14-18, Josué admoesta o povo a decidir a quem iriam servir, afirmando que a sua casa serviria ao Senhor, tendo como resposta do povo que não poderiam decidir diferente, haja vista tudo o que Deus já fizera por eles. Em Efésios 6.10-20, entendo o uso dos muitos imperativos também como admoestação/orientação do apóstolo Paulo para a comunidade em Éfeso no tocante ao viver a fé em Cristo.
2. Exegese
O texto que nos é proposto para a pregação no 14º Domingo após Pentecostes está incluído no bloco dos sinais diversos de Jesus e também das controvérsias em torno da sua figura e pregação (Jo 5.1-9.41).
A leitura de Jo 6.56-69 abrange o final do discurso de Jesus na sinagoga em Cafarnaum (Jo 6.56-59) e também a controvérsia acerca dos ensinamentos de Jesus, considerados por muitos difíceis demais para serem entendidos, culminando na prova da fé dos doze discípulos e na sua decisão em seguir a Jesus Cristo (Jo 6.60-69).
O Evangelho de João tem um propósito muito claro, explicitado no final, em 20.30-31: Jesus fez diante dos discípulos muitos outros milagres que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que vocês creiam que Jesus é o Messias, o Filho de Deus. E para que, crendo, tenham vida por meio dele. Nesse afã também precisamos ler o texto que nos é proposto para a pregação. O objetivo é tirar qualquer dúvida que ainda possa existir acerca de quem é Jesus Cristo. Ele é Filho de Deus, o Verbo que se fez carne. Nossa fé não se baseia apenas num Cristo imaginário ou, mesmo que real, num Cristo cuja presença sentimos apenas na esfera espiritual. Nossa fé se baseia num Cristo cuja presença real temos na Santa Ceia. Nós comemos da sua carne e bebemos do seu sangue.
v. 56-59: O evangelista João busca responder à pergunta pela vida verdadeira. Como e onde encontrá-la. Neste aspecto, a partir do texto percebemos que no comer da carne e no beber do sangue de Cristo encontramos essa vida. A verdadeira vida surge da comunhão com Cristo. Essa comunhão com Cristo nos prova que ele é real; que o contato do divino com o humano é autêntico e que buscar a Deus por meio de Cristo faz com que sejamos literalmente habitados pelo Espírito Santo. Em Cristo temos a vida e tão somente nele, pois ele é o enviado do Pai. Quem come deste pão, Jesus Cristo, viverá para sempre, tem a vida eterna. Lembramos que vida eterna não é somente entendida no sentido cronológico, quantitativamente, mas também no sentido qualitativo.
v. 60-69: O discurso de Jesus é considerado duro por aqueles que o seguem. Os judeus tinham pavor de consumir sangue e Jesus fala em comer da minha carne e beber do meu sangue. Champlin também lembra que deve ter sido difícil para os judeus aceitarem o discurso de Jesus em que ele assume sua messianidade, pois eles o conheciam e também a sua família: um carpinteiro nazareno.
O termo “escandalizar”, usado por Jesus, deriva de um termo grego cujo significado é “fazer tropeçar”. Jesus pergunta se o seu discurso se torna pedra de tropeço. E continua afirmando que se só o discurso já escandaliza e faz com que queiram abandoná-lo, que dirá o virem subir ao céu, ao lugar onde ele estava antes. Embora não haja uma referência direta à ascensão de Jesus, o texto parece aludir ao fato, corroborando a sustentação de que Jesus é, de fato, o Messias e que somente por ele temos a vida plena e perfeita comunhão com o Deus que nos dá esta vida plena. Jesus retoma que as suas palavras são de procedência divina, pois elas vivificam.
Jesus sabe que muitos vão abandoná-lo, mas nem por isso abranda o discurso. O texto nos indica que a debandada dos seguidores de Jesus foi geral. A situação chega a tal ponto que Jesus se dirige aos seus doze e pergunta se também eles querem ir embora. Claro que também Jesus deve ter ficado desapontado com a multidão que o abandonava por considerarem o seu discurso muito duro. Pelo visto, o povo buscava apenas o maná, alimento para o corpo; não tinham interesse no pão que desceu do céu, o messias Jesus Cristo. Jesus está num momento limítrofe e interroga seus discípulos para sondar a profundidade de sua fé. Jesus coloca seus doze na situação de escolha: querem ficar comigo ou querem me abandonar e seguir suas vidas? O que escolhem?
Nesse momento Simão Pedro toma a palavra, justamente ele que em outros momentos faz colocações superficiais ou dando mostras de que não entendeu muito do que Jesus trazia. Mas nesse momento crucial para Jesus, onde ele deve ter experimentado a decepção com a multidão que deixara de segui-lo, Simão Pedro faz uma profunda declaração, uma profunda confissão de fé: Quem é que nós vamos seguir? O senhor tem as palavras que dão vida eterna! E nós cremos e sabemos que o senhor é o Santo que Deus enviou.
Pedro, como porta-voz dos doze, afirma que não há mais escolha para eles. Pela convivência com Jesus viram tudo o que ele fez e ouviram tudo o que pregou, por isso não veem mais outra perspectiva de alguma fonte da qual possam beber da água da vida. Apenas em Cristo a sua sede é defi nitivamente saciada. Apenas em Cristo eles recebem o pão da vida e participam da verdadeira comunhão com Deus. Pedro, de forma singela e muito honesta, retorna a pergunta a Jesus e diz: A quem nós vamos seguir? Ele mesmo dá o indicativo afi rmando que apenas Jesus tem as palavras da vida eterna. Somente ele é o Messias, o santo que Deus enviou. A decisão estava tomada, com certeza, já antes dessa afirmação de Pedro, mas nesse momento de crise no ministério de Jesus, ela aflorou de forma muito profunda e decisiva.
3. Meditação
Foi num momento crítico de seu ministério em que muitos o abandonavam que Jesus coloca seus discípulos para pensar e decidir se queriam permanecer com ele ou se também queriam ir embora. Momentos críticos não faltam também para nós. No momento em que escrevo, o que mais se ouve é sobre a crise política que se abateu sobre o Brasil. Aliás, essa crise política está profundamente arraigada numa crise de valores. Roubar, corromper, tirar vantagem, isso já parece fazer parte de nossa cultura enquanto brasileiros. Interessante é que o Brasil é um país majoritariamente cristão.
Como fica a pregação de Jesus Cristo em nossa situação? A vida plena é buscada? A comunhão com Deus é vivida?
A pergunta de Pedro soa alto: a quem vamos seguir? Parece que opções a serem seguidas não faltam. O caráter profético da mensagem de Cristo parece que deu lugar, muitas vezes, a uma massagem no ego das pessoas ou satisfação de desejos intrinsicamente humanos e egoístas. O deus mâmon, que satisfaz os desejos imediatos e luxuriosos, tem seguidores por todos os lados.
Parece ser imperativo que a pergunta de Pedro ecoe e nos leve à reflexão. Quando participamos da Santa Ceia, comendo da carne e bebendo do sangue de Cristo, participando plenamente da comunhão dos santos, devemos ter claro que esse momento é, sim, uma resposta à pergunta de Pedro. Ansiar pelo sacramento é ansiar pela vida plena que apenas em Jesus Cristo podemos ter. No mesmo Evangelho de João, no capítulo 14, Jesus, também em diálogo com seus discípulos, afirma que nos deixa a sua paz, não como o mundo a dá, mas a paz que experimentamos na comunhão com Deus. Não estamos sozinhos, o Espírito Santo está conosco.
Decidir-se pela comunhão com Deus a partir de Cristo nos traz a vida plena, nos faz compreender o discurso de Jesus. Esse discurso não é mais pesado ou duro, ele salva.
Não há mais crise ou dificuldade? Claro que isso permanece, mas na orientação do apóstolo Paulo à comunidade em Éfeso, ele a desafia a se tornar cada vez mais forte, vivendo unida com o Senhor e recebendo as forças do seu grande poder. Só assim poderemos andar pelo vale da sombra da morte e não temer mal algum.
Todos ouvimos falar de Jesus, sabemos que é o Filho de Deus, testemunhamos a sua vida, aclamamos e aplaudimos seus ensinamentos, sabemos que suas palavras dão vida, participamos da comunhão dos santos. Resta-nos suplicar a Deus que, dia após dia, nos fortaleça na fé em Cristo, para que a vida plena prometida por Jesus, experimentada na Santa Ceia, se desdobre em gestos concretos para que a partir de nós, como instrumentos do agir do Santo Espírito de Deus, vivamos e promovamos a vida eterna, plena, em abundância, que Jesus prometeu e que só por meio dele podemos alcançar e vivenciar.
Que com todos os caminhos e possibilidades que se colocam à nossa frente, nosso coração se decida, a cada novo dia, pelo caminho de Jesus Cristo, pois somente ele nos leva à comunhão verdadeira com o Pai.
4. Imagens para a prédica
Todos nós nos escandalizamos com a situação da corrupção, para ficar apenas em um aspecto das muitas mazelas que nos assolam no Brasil. Compartilho duas observações feitas por Charles Darwin quando de sua passagem pelo Brasil no século XIX: “Os brasileiros, até onde vai minha capacidade de julgamento, possuem somente uma pequena daquelas qualidades que dá dignidade à humanidade”. “Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos aqui podem ser subornados.”
Claro que são palavras fortes e generalizadas, mas creio que poderiam ser usadas para “chocar” a comunidade presente no culto. Afinal de contas, a pregação de Jesus também “chocou” a multidão que o seguia. Emendaria a pergunta de Pedro: A quem vamos seguir? A quem estamos seguindo? Quem ou o que orienta o nosso dia a dia? Lembrar que é Jesus quem tem as palavras que dão vida eterna. Buscar exemplos da comunidade onde a vida plena é experimentada, nos encontros dos grupos, na diaconia, enfim, exemplos concretos e conhecidos da comunidade onde pessoas, motivadas pela sua fé em Cristo, proporcionaram a vida plena apregoada por Jesus.
Quando em meio a tantos exemplos ruins, mesmo em meio a um país majoritariamente cristão, percebem-se exemplos concretos de mudança de vida e realidade, só nos resta reconhecer que isso somente é possível quando se coloca o reino de Deus em primeiro lugar, se busca em Deus, pela força do Espírito Santo, a armadura da qual fala Efésios e é declarada assim como Pedro: Cremos e sabemos que Jesus é o Santo que Deus enviou.
5. Subsídios litúrgicos
Sugiro que o culto seja eucarístico. Na Eucaristia, poder-se-ia, claro que dentro das possibilidades que o espaço litúrgico proporciona, dar a cada participante algo em torno de um metro de barbante, com o qual cada participante se uniria à outra pessoa. Seria o sinal de que a vida plena acontece quando cada qual é inserido no convívio da comunhão dos santos, com seu jeito de ser, suas limitações e possibilidades. Penso na forma “andante” de comunhão, onde todos se colocariam no mesmo compasso e, óbvio, as difi culdades seriam resolvidas. Só conseguimos sentir e vivenciar a plenitude de vida quando estamos em sintonia com Deus e com a pessoa ao nosso lado. Enquanto é distribuída a Ceia, sugiro ser executado o hino 443 (HPD 2). É uma proposta louca? Sim, mas é possível!
Sugestão de hinos: HPD 1, 197; HPD 2, 411, 443.
Bibliografia
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado: versículo por versículo. São Paulo: Hagnos, 2002. v. 2.
VOIGT, Gottfried. Die Geliebte Welt. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1980.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).