Prédica: João 8.21-30
Autor: Osmar Luiz Witt
Data Litúrgica: Domingo Reminiscere
Data da Pregação: 19/02/1989
Proclamar Libertação – Volume: XIV
I — Introdução
A pergunta sobre quem é Jesus e qual a sua missão nasceu com a própria atividade de Jesus na Palestina e prossegue sendo sempre atual. Cada escritor do Novo Testamento procurou responder esta pergunta para seus leitores. De modo especial o fizeram os quatro evangelistas, ao registrarem os feitos e as palavras de Jesus e a reação das pessoas a ele. E dentre os quatro evangelhos destaca-se a singularidade do Evangelho de João no tocante ao modo de responder à pergunta a que nos referimos. O quarto evangelista articula o testemunho de Cristo assim como ele se apresenta à fé na glória manifesta de Jesus. Por isso, não fala de revelação oculta, mas desde o início Jesus aparece perante o mundo como o enviado de Deus, como o Filho do Pai diante dos seus. (Lohse, p. 180/1.) Jesus, no Evangelho de João, é o Revelador do Pai em unidade eterna com ele (cf. Bornkamm, p. 127/8). É-lhe obediente e somente dá testemunho daquilo que ele lhe ensinou (7.16; 8.28s). Na reação das pessoas ao Revelador do Pai, no posicionamento frente a ele, concretiza-se o juízo final (cf. 3.16; 12.47s e, no texto que queremos estudar, v. 24b).
II — Procurando entender o texto
O assunto que é retomado nestes versículos pode ser encontrado também em 7.33-36. No discurso de Jesus, que se encontra em Jerusalém (7.10), ocorre um confronto com os judeus (o texto não especifica com que grupo, mas em 7.32 são os fariseus e os principais sacerdotes que enviam guardas para prendê-lo), pois estes não compreendem o que ele lhes diz. Jesus atribui sua incompreensão à incredulidade. O confronto se dá em torno de duas questões (vv. 21-23 e vv. 24-30) intimamente relacionadas, cada qual seguindo o esquema de um discurso de revelação: a) Jesus afirma sua partida iminente (v. 21), os judeus não compreendem (v. 22), Jesus dá uma explicação (v. 23); b) Jesus afirma que estão mortos em seus pecados por não crerem (v. 24), os judeus não compreendem e perguntam por sua autoridade para afirmar tal coisa (v. 25a), Jesus dá uma segunda explicação, mais detalhada, assim mesmo enigmática (vv. 25b-29); c) Conclusão (v. 30) (cf. Niccacci e Battaglia, p. 143).
V. 21: A cena tem início como anúncio de Jesus de sua morte iminente, como em 7.33. O anúncio de sua retirada refere-se à crucificação, quando o Filho do homem será levantado (v. 28). Então será tarde demais para que os judeus creiam. Ele não mais poderá ser achado (cf. respectivamente 7.34), e estes perecerão em seu pecado (o singular lembra o pecado por excelência, que é a incredulidade). Assim, o não me achareis de 7.34 é, aqui, reforçado pela citação vétero-testamentária que encontramos em Dt 24.16; Ez 3.19; 18.24. Desta forma é acentuada a urgência da fé.
V. 22: A reação dos ouvintes de Jesus que não o compreendem é, de certa forma, normal e compreensível, pelo tom enigmático do seu anúncio. A explicação, introduzida pelo evangelista no v. 27, também visa dirimir eventuais dúvidas dos seus leitores. Contudo, a indagação suscitada pela afirmação de Jesus (que também tem seu paralelo em 7.35), revela malícia e sarcasmo dos seus oponentes, que querem desacreditá-lo. Em vista disso, o evangelista quer deixar claro que a incompreensão é consequência da incredulidade (v. 24). Os judeus são forçados a se tornarem profetas sem que o saibam. Jesus realmente morrerá de livre vontade (10.17s), contudo, não do modo como supõem, pois eles mesmos, diz Jesus no v. 28, o matarão.
V. 23: A explicação de Jesus para a dúvida dos judeus retoma a distinção entre de cima e de baixo, que aparece também em 3.31ss. Jesus vem de cima, não deste mundo. Ele foi enviado pelo Pai (vv. 26 e 29) de seu senhorio preexistente. Aqui se reflete a teologia do evangelista, para a qual apontamos na introdução: Jesus é o revelador do Pai e por ele foi enviado ao mundo. Os judeus ( = todas as pessoas), ao contrário, vêm de baixo, deste mundo oposto a Deus. Cabe destacar que em João, ‘mundo’ designa antes de tudo o conjunto do que existe fora de Deus (Winkenhauser, p. 265). O mundo são aqueles que buscam sua justificação em si mesmos e em suas tradições religiosas (Abraão, Moisés, o templo, a Escritura). É este o motivo por que os judeus sempre figuram no quarto evangelho como os inimigos de Deus por excelência. (Bornkamm, p. 128.) Assim sendo, existe uma oposição radical entre Jesus e seus ouvintes. Contudo, esta não é uma situação imutável. Crer em Jesus é o que pode mudá-la, pois justamente ele, o Revelador, que vem de cima, é que possibilita às pessoas que vêm de baixo o acesso ao Pai (14.6). Apenas a incredulidade torna definitiva a separação.
V. 24: Jesus aprofunda ainda mais o abismo entre ele e seus oponentes. Esta segunda afirmação faz da fé em sua pessoa a condição para não morrer nos pecados (agora no plural, em alusão às consequências da incredulidade, que são as obras más) cometidos. Os ouvintes devem crer que Eu sou. Com este nome o Deus de Israel revelou-se a Moisés (Êx 3.14s) e significa que ele é o único e verdadeiro Deus (Dt 32.39; Is 43.10s). Ao usar aqui esta expressão, Jesus não quer identificar-se com Deus, mas quer dizer que é o único salvador e o depositário da revelação divina, enviado por Deus (Wikenhauser, p. 263), a quem pertence o juízo para a vida e para a morte (cf. Strathmann, p. 141).
V. 25a: À esta auto-definição enigmática de Jesus segue uma nova pergunta dos judeus: Quem és tu? Eles querem saber com que autoridade Jesus pode dizer o que está dizendo. Permanecem presos em sua incompreensão, cegos por sua falta de fé, pois não percebem que ele é o enviado do Pai (v. 27).
Vv. 25b-26: O que segue é a resposta de Jesus. Nela temos uma questão de crítica textual de difícil solução. O texto grego pode ser traduzido de diferentes maneiras: a) Que é que desde o princípio vos tenho dito? (Almeida); b) O que vos digo, desde o começo (Bíblia de Jerusalém); c) Primeiramente, por que vos falo?, De início, o que vos digo, Absolutamente, o que vos digo (Bíblia de Jerusalém, nota T); d) É só princípio, aquilo que vos digo, antes de tudo, (eu sou) aquilo que vos digo, (Eu sou) o princípio, o que justamente vos digo (Niccacci e Battaglia, p. 145).
Aceitamos a tradução da Bíblia de Jerusalém em vista da justificativa apresentada na nota ‘f: Nossa tradução conserva o matiz temporal, que prepara o segundo ‘então’ do v. 28: os judeus, agora, têm oportunidade de conhecer Jesus por- sua palavra; quando o conhecerem ‘elevado’ , será tarde demais. Assim sendo, Jesus não dá uma resposta direta à pergunta dos judeus; se eles não reconhecem agora que Eu sou, quando o Filho do homem for elevado, será tarde demais (Bultmann, p. 265). Desta forma, a rejeição de Jesus implica em um julgamento. Quem o rejeita a si mesmo se julga. Mas ele não julga ninguém (8.15), mesmo porque esta não é a missão que o Pai lhe deu. Ele não veio para julgar o mundo e sim para salvá-lo (3.17). Em razão disso, Jesus se preocupa em dizer ao mundo as coisas que do Pai ouviu.
V. 27: Explicação introduzida pelo evangelista antes da segunda etapa da resposta de Jesus. Ele não quer-deixar dúvidas de que o sujeito do envio do qual Jesus fala, é o Pai.
Vv. 28-29: A crucificação é simultaneamente a exaltação do Filho do homem, pois é seu retorno para o lugar de onde veio (6.62). Esse duplo sentido da elevação fica claro na medida em que Jesus se torna o juiz daqueles que o julgam. O então introduz um novo tempo que é o tempo do Espírito. Então todos saberão que Jesus é o Filho do homem e que seus ensinamentos foram dados pelo Pai. A cruz é a revelação decisiva que põe à luz do dia a iniquidade das pessoas, na qual morrerão, se não crerem. Jesus não busca a cruz nem a exaltação. Estas são consequência de sua fidelidade ao Pai e à missão dele recebida. E é pela obediência à sua vontade, fazendo sempre o que lhe agrada, que Jesus está em união com ele.
Ill — Meditando sobre o texto na vida da gente
Estamos vivendo o tempo da Paixão, quando somos especialmente confrontados com o sofrimento e a cruz de Cristo. Procuramos entender o seu sentido para a nossa vida, no que este texto bíblico pode ser um bom auxílio. A alusão ao retirar-se (v. 21) e ao ser levantado (v. 28) do Filho do homem são, justamente, o coração deste texto.
Sob muitos aspectos a situação dos ouvintes de Jesus difere da nossa. Contudo, com eles temos em comum o fato de, sempre de novo, sermos cá de baixo enquanto que Jesus é lá de cima. Esta situação que dificulta compreender sua mensagem não deve, contudo, ser confundida com um dualismo entre o espiritual e o material. Jesus não é deste mundo, pois não faz a vontade deste mundo, antes pelo contrário, é obediente ao Pai e se mantém em união com ele (vv. 28s) para salvar o mundo. As pessoas são deste mundo, pois fazem a vontade dele, i. e., ignoram o senhorio de Cristo e se opõem ao Pai e, conseqüentemente, perdem a vida.
Em razão disso, a palavra de Jesus requer de nós, seus ouvintes, um posicionamento acerca da pergunta: Quem é Jesus? É o que vemos no v. 30, que serve de conclusão ao texto. Se permanecemos em baixo, na oposição ao Pai, sendo um empecilho para que o seu Reino se concretize, elevamos o Cristo à cruz e nos fazemos culpados de sua morte. A cruz foi a última e definitiva resposta dos judeus à palavra reveladora de Jesus, e sempre que o mundo faz da incredulidade sua última resposta, ele exalta o Revelador, ao fazer dele seu Juiz. (Bultmann, p. 266.) Por outro lado, podemos abrir-nos ao Evangelho e despir-nos das garantias que usamos, para ganhar a vida, crendo que Ele é. Jesus revela o Pai e é na cruz que o evento salvífico se realiza. No confronto com a palavra reveladora de Jesus conhecemos a vontade do Pai e é no carregar a cruz que nos mantemos em cima, unidos com ele.
O tempo da Paixão é propício para que nos perguntemos se realmente temos respondido com fé ao confronto com Jesus e sua cruz. Pois Jesus continua sendo crucificado em nossa realidade marcada por dominação e marginalização. Crucificando-o, o mundo o faz seu Juiz. Urge, pois, que respondamos com fé e partilhemos da cruz dos que lutam pelo Reino.
IV — Um esquema para a prédica
A pregação sobre este texto poderá seguir o seguinte esquema:
a. Jesus é o revelador do Pai. Sua palavra objetiva a fé das pessoas: para que o mundo creia que eu sou e que fui enviado pelo Pai para salvar o mundo.
b. Podemos reagir à palavra reveladora de Jesus de duas maneiras: 1) permanecendo em baixo, na incredulidade e oposição a Deus, atitude que leva à morte ou; 2) crendo que Jesus é a revelação de Deus e que em sua cruz ele se torna o Juiz do mundo, atitude que leva à vida,
c. Desafiar a comunidade a uma auto-crítica sobre como ela tem reagido. Considerando a realidade local, apontar onde Cristo está sendo crucificado hoje.
d) Convidar para o engajamento na causa do Reino, o que equivale a tomar parte na cruz de Cristo hoje.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Misericordioso Deus, nosso Pai! Não somos dignos de estarmos na tua presença. Em nossa vida nos opomos à tua vontade de salvar o mundo. Nos fechamos em nossa incredulidade e nos tornamos muitas vezes um empecilho para que o teu Reino se concretize. Senhor, tu és fiel a nós. Ajuda-nos para que te sejamos fiéis também. Teu Filho, que enviaste ao mundo para ser o Salvador, continua sendo incompreendido, desacreditado e crucificado no meio de nós. Perdoa-nos, Senhor! Suplicamos-te em nome de Jesus Cristo, que na cruz venceu nosso pecado, abrindo para nós o caminho de uma nova vida, o qual queremos hoje trilhar. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Anúncio da graça: Tito 2.14.
3. Oração de coleta: Deus, nosso Pai! Ajuda-nos a ouvir e aceitar a palavra da cruz. Fortalece-nos no caminho da obediência e do amor. Nós te pedimos em nome de Jesus Cristo que, contigo e com o Espírito Santo, vive e reina de eternidade a eternidade. Amém!
4. Oração de intercessão: Pela comunidade e pela Igreja para que responda com fé à revelação de Jesus na cruz; pelos que sofrem as cruzes da perseguição e da injustiça por sua fidelidade ao Pai; pelos que sofrem por causa de nossa incredulidade e a consequente prática da injustiça.
VI — Bibliografia
– BORNKAMM, G. Bíblia: Novo Testamento, São Paulo, 1981.
– BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes, 11. ed. Göttingen, 1950.
– LOHSE, Introdução ao Novo Testamento, São Leopoldo, 1977.
– NICCACCI, A. e BATTAGLIA, O. Comentário ao Evangelho de São João, Petrópolis, 1981.
– STRATHMANN, H. e STÄHLIN, G. Das Evangelium nach Johannes — Die Apostelgeschichte. In: Das Neue Testament Deutsch. Göttingen, 1971. V. 2.
– WIKENHAUSER, A. El El Evangelio según San Juan, Barcelona, 1978.